A guerra nos Himalaias e o xadrez mundial
Parecia saído de um
thriller
orientalista romântico passado nos Himalaias: soldados a lutar com
pedras e barras de ferro pela calada da noite, à beira de um
precipício a mais de quatro mil metros de altitude, alguns deles
mergulhando para a morte num rio quase congelado e morrendo de hipotermia.
Em novembro de 1996, a China e a Índia concordaram em não usar
armas de fogo ao longo da sua fronteira de 3800 quilómetros, conhecida
como a Linha de Controlo Real (LAC, em inglês) que, ocasionalmente, tende
a descambar em Linha Fora de Controlo.
No entanto, a de agora não foi apenas mais uma rixa nos Himalaias.
É claro que se ouviram ecos da guerra sino-indiana de 1962 - que
começou de maneira bem semelhante, mas que levou Pequim a derrotar Nova
Deli no campo de batalha. Mas, agora, o tabuleiro estratégico é
muito mais complexo, sendo parte do Grande Jogo do século XXI que
está em desenvolvimento.
A situação tem de ser neutralizada. Oficiais militares de
primeiro escalão chineses e indianos, por fim, encontraram-se
cara-a-cara no passado fim-de-semana. E, na terça-feira, o porta-voz do
Ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Zhao Lijian, confirmou que
"houve acordo em tomar as medidas necessárias para promover um
arrefecimento da situação".
O Exército indiano concordou: "Houve consenso entre as duas partes
quanto à cessação de toda e qualquer fricção
no Ladakh Oriental".
No dia seguinte, 1 de Julho, esse progresso foi confirmado numa reunião
por videoconferência dos três ministros dos Negócios
Estrangeiros da Rússia, Índia e China, grupo também
conhecido como os RIC's: Sergey Lavrov, Subrahmanyam Jaishankar e Wang Yi. O
presidente Vladimir Putin, o primeiro-ministro Narendra Modi e o Presidente Xi
Jinping irão encontrar-se pessoalmente à margem da cimeira do
G20, a realizar-se em Novembro próximo na Arábia Saudita.
Esse encontro deverá ser a provável continuação de
uma reunião especial que ocorrerá no próximo mês em
São Petersburgo durante as cimeiras combinadas dos BRICS (Brasil,
Rússia, Índia, China e África do Sul) e da
Organização de Cooperação de Xangai (OCX).
Desde 1947
Como chegámos então até aqui?
O drama nos Himalaias começou há muito tempo, em Outubro de 1947,
quando o Marajá de Caxemira assinou um Instrumento de Adesão -
juntando-se ao domínio da Índia em troca de apoio militar. Como a
maior parte do Raj ("Índia britânica"), a Caxemira
também foi dividida: a região Oeste e Norte agora chamada
Caxemira Azad ("Livre") e o Gilgit-Baltistan passaram a
pertencer ao Paquistão; o Estado de Jamu e Caxemira tornar-se-ia uma
parte autónoma da Índia; e, o que é importante para este
caso, o Aksai Chin, historicamente parte do Tibete, foi incorporado na China.
Em termos pessoais, esta região, o "topo do mundo", sempre foi
uma das minhas favoritas no trabalho de jornalista-viajante. Não apenas
pela sua apoteose geológica inigualável e de parar a
respiração, mas também pelos seus povos os
hunzakut, os baltistanis, os caxemires e os tibetanos.
As duas Caxemiras a paquistanesa e a indiana têm maioria
muçulmana. Por onde quer que nos desloquemos sentimo-nos na Ásia
Central e não na Índia. A árida Aksai Chin é
praticamente despovoada, com a excepção de postos militares
esparsos. O Ladakh Oriental, região integrada na Índia, em termos
históricos e culturais sempre fez parte do planalto tibetano. A
população é budista e fala um dialecto tibetano semelhante
ao do povo de Aksai Chin.
A jogada de Modi
A disputa actual tem origem bem recente, datando de há menos de um ano.
Foi em Agosto de 2019 que o Hindutva o governo hindu nacionalista e para
fascista liderado por Modi revogou unilateralmente partes da
Constituição indiana que estabeleciam Jamu e Caxemira como uma
região autónoma.
O Estado de Jamu e Caxemira islâmico herdeiro de uma longa
tradição cultural e religiosa foi então privado de
um parlamento e de governo local, e separado de facto do Ladakh budista e da
sua extremamente sensível fronteira com a China, ficando sob o controlo
directo de Nova Deli.
Desde 1947, as características de Jamu e Caxemira vêm protegendo a
região da imigração em massa de hindus. A
situação alterou-se agora com o fim da autonomia. Nos planos de
Nova Deli, o jogo é arquitectar uma mudança demográfica,
fazendo com que Jamu e Caxemira passe de região de maioria
muçulmana a região de maioria hindu.
E até mesmo isso talvez não seja o bastante. Na visão do
ministro do Interior indiano, Amit Shah, o governo de Nova Deli considera que
não apenas a Caxemira ocupada pelo Paquistão mas também o
Aksai Chin chinês são parte de Jamu e Caxemira. Nesta perspectiva,
todo o vale de Caxemira é encarado como fazendo parte da Índia.
É fácil imaginar como este plano é recebido em Islamabad e
Pequim.
Acrescente-se ainda a importância estratégica do sistema do rio
Indo, a principal fonte de água do Paquistão: nasce nas montanhas
de Jamu e Caxemira. Não é de admirar, portanto, que para
Islamabad a totalidade da província deva pertencer ao Paquistão e
não à Índia.
Planos militares
Em tempos recentes, toda a Linha de Controlo Real tem vindo a ser palco de
incessante actividade militar.
A Índia reformou o campo de aterragem de Daulet Beg Oldie (DBO),
localizado na antiga rota de comércio que cruza o Passo de Karakorum,
situado o que é de importância fundamental a nove
quilómetros apenas de Aksai Chin. Acontece que esse é o local
exacto onde a Índia se liga fisicamente à China ao
Xinjiang e não ao Tibete.
Paralelamente, a Índia construiu a estrada Darbuk-Shayok-DBO, com 255
quilómetros de extensão, inocentemente descrita como uma via de
pista única na fronteira indo-chinesa. O que isso significa, na
prática, é que Nova Deli tem agora muito mais espaço de
manobra para transportar tropas e equipamento militar através da Linha
de Controlo Real. Não é de admirar que Pequim tenha interpretado
a iniciativa como mais uma pressão indesejável
sobre Aksai Chin.
Enquanto a Índia construía essa nova estrada de acesso militar
ignorava por completo o facto de os chineses já terem concluído
sua própria estrada em Aksai Chin: a rodovia 219, que liga o
ultraestratégico Tibete ao Xinjiang e, em seguida, à
lendária Estrada de Karakorum que começa em Kashgar
(Xinjiang, China), cruza a fronteira e desce serpenteando até Islamabad.
Uma importante parte de Aksai Chin foi de facto cedida por Islamabad à
China em 1963, em troca de apoio financeiro e logístico.
Como seria de se esperar, houve um forte aumento do patrulhamento militar de
ambos os lados. Neste momento, 225 mil soldados indianos estão
concentrados nas margens da Linha de Controlo. Um número desconhecido de
soldados chineses muitíssimo bem equipados contrapõem-se
às tropas indianas. O jornal
The Hindu
mostrou imagens de satélite da movimentação chinesa em
Galwan, pouco antes do choque de tropas na fronteira. Nada menos que três
subdistritos militares chineses subordinados às forças
armadas do Tibete e de Xinjiang participaram nas escaramuças em
Galwan.
É tudo por causa de um corredor económico
A fronteira China-Paquistão na altura do Passo de Khunjerab e toda a
região imediatamente ao Sul, o visualmente estarrecedor
Gilgit-Baltistan, coincide exactamente com aquilo a que os indianos chamam a
Caxemira ocupada pelo Paquistão.
Não há a menor possibilidade de Pequim vir a permitir qualquer
tipo de aventureirismo regional por parte de Nova Deli. Muito especialmente
porque esta é uma parte importante do território do Corredor
Económico China-Paquistão (CECP) um dos principais eixos
das Novas Rotas da Seda, que segue até Islamabad e desce para o porto de
Gwadar, no Oceano Índico.
Num futuro próximo, Gwadar terá solidificado os seus
vínculos energéticos directos com o Golfo Pérsico; e a
China poderá mesmo ampliá-los mais ainda através da
construção de um óleoduto-gasoduto indo até ao
Xinjiang.
Contrapondo-se estrategicamente aos eixos das Novas Rotas da Seda chinesas
encontramos o ambíguo papel desempenhado pela Índia tanto no Quad
(Diálogo Quadrilateral de Segurança juntando informalmente
Índia, Estados Unidos, Japão e Austrália) como no esquema
"Indo-Pacífico" dos Estados Unidos que, em essência,
é um mecanismo visando a contenção da China.
Na prática, e em nome de sua autodesignada "autonomia
estratégica", Nova Deli não é membro pleno do Quad. O
Quad é um conceito tão nebuloso que nem mesmo o Japão e a
Austrália parecem exactamente entusiasmados.
Os "vínculos" de defesa Estados Unidos-Índia são
muitos mas sem nada de realmente significativo, com a
excepção da jogada autodestrutiva de Nova Deli ao cortar as suas
importações de petróleo iraniano. Para aplacar Washington,
Nova Delhi prejudicou prodigiosamente os seus próprios investimentos no
porto de Chabahar a apenas 80 quilómetros de Gwadar que
até recentemente era louvado como sendo o portão das Novas Rotas
da Seda para o Afeganistão e a Ásia Central.
Fora isso, tudo o que encontramos são, como seria previsível,
ameaças: o governo Trump está furioso por Nova Deli comprar
sistemas de mísseis S-400 à Rússia.
Auto-suficiência ou contenção?
A China é o segundo maior parceiro comercial da Índia. Pequim
importa cerca de cinco por cento de tudo o que é produzido na
Índia, enquanto Nova Deli importa menos de um por cento da
produção chinesa.
Há apenas dois meses, num discurso à nação sobre o
COVID-19, o primeiro-ministro Modi insistiu numa "Índia
auto-suficiente" e numa globalização "centrada no ser
humano", focada nas manufacturas locais, nos mercados locais e nas cadeias
de fornecimento locais.
Apesar de toda a bazófia de Modi, o aventureirismo na política
externa é incompatível com a tradição indiana de
não-alinhamento, e desviaria boa parte do esforço
necessário para a construção dessa
"auto-suficiência".
Havia muita expectativa em torno da possibilidade de a Índia e o
Paquistão virem a tornar-se membros plenos da Organização
de Cooperação de Xangai, o que ajudaria a neutralizar muitos dos
seus problemas. Não foi isso que aconteceu. Mas a
Organização de Cooperação de Xangai
juntamente com os BRICS é o caminho a seguir caso a Índia
queira realmente tornar-se um actor importante no mundo multipolar que
está a surgir.
Pequim tem pleno conhecimento das estratégias imperiais de
contenção/cerco. Há mais de 200 bases militares
norte-americanas no Pacífico Ocidental. As Novas Rotas da Seda, ou
Iniciativa Cintura e Estrada (ICE), assentam em nada menos que sete corredores
de interligação inclusive a Rota da Seda Polar. Cinco
delas são rotas terrestres. A única que inclui a Índia
é a BCIM (Bangladesh-China-Índia-Mianmar).
Se a Índia quiser retirar-se, a Iniciativa Cintura e Estrada
continuará a funcionar até ao Bangladesh. O mesmo se aplica
à Parceria Económica Regional Ampla (RCEP, em inglês)
negociada entre 15 países asiático-pacíficos. Todos eles
querem que a Índia permaneça. Nova Delhi teme paranoicamente que
a abertura dos seus mercados faça inchar o défice comercial com a
China. Com ou sem Índia, o RCEP também continuará a
funcionar, assim como a Iniciativa Cintura e Estrada e o Corredor
Económico China-Paquistão.
Nas classes dominantes de casta alta são muitos os hindus que não
conseguem perceber que estão a ser vergonhosamente usados em tempo
integral pelos senhores imperiais, a quem interessa criar uma frente de guerra
com a China.
Mas Modi terá de entrar no jogo da
realpolitik
e dar-se conta de que a Índia não é uma prioridade para
Washington e sim um peão na batalha pelo domínio de espectro
total contra as "ameaças existenciais" representadas pela
China, pela Rússia e pelo Irão, que são exactamente os
três grandes nós da integração euroasiática.
Washington continuará a tratar a Índia como um mero peão
na campanha indo-pacífica visando a contenção da China. A
Índia em tese muito orgulhosa de sua independência
diplomática preferiria usar os seus laços com os Estados
Unidos para se contrapor ao poderio da China em todo o Sudeste Asiático,
e também como forma de conter o Paquistão.
Modi, no entanto, não tem a menor condição para apostar
fortemente na possibilidade de o governo Trump pensar da mesma forma. A
única saída seria sentar-se à mesa de
negociações e conversar com seu parceiro nos BRICS, Xi Jinping,
no mês que vem em São Petersburgo e em Novembro em Riade.
03/Julho/2020
[*]
Jornalista.
O original encontra-se em
consortiumnews.com/...
e a tradução em
www.oladooculto.com/noticias.php?id=824
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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