933% mais estúpidos

Hugo Dionísio [*]

Utilização das sanções aumentou ao longo dos últimos 20 anos.

Os EUA entraram naquela vertigem muito característica dos maus vendedores. Quanto maior a queda nas vendas… Maior o preço que cobram.

Se a estagnação económica, o retrocesso social e a erosão do sistema político ocidental, que observamos ao longo do século XXI, aconselhariam a uma inversão nas políticas internas e externas, direccionando-as para os interesses dos povos e não de ultraminoritárias elites; o que temos constatado é precisamente o inverso: não funciona? Carrega com força. Dá-lhe com mais 933%!

Diz o relatório do Tesouro do EUA (The Treasury 2021 Sanctions Review) que entre o ano de 2000 – 912 sanções – e o ano de 2021 – 9.421 sanções –, o número de sanções aplicadas aos “incumpridores” da “ordem baseada em regras (as deles)” aumentou 933%!!!! 933%!!!??!! Eis o indicador da agressão… e da decadência.

Este número conta a história da erosão do poder hegemónico nos últimos 20 anos e, por si só, daria para fazer um estudo profundo e extenso sobre o quadro psicótico, histérico e esquizofrénico que caracteriza o fanático gangue supremacista e seus capatazes, que domina a política ocidental. Assistimos a uma cavalgada urgente, ofegante e irreversível rumo ao precipício.

Não se pode pedir a um qualquer comentador, cientista “político” (uma espécie de papagaio neoliberal com habitat muito favorável no ocidente) ou “politólogo” (normalmente desprovido da parte do “logo”, ou seja, da lógica e racionalidade) que questione as sanções, a sua legitimidade, ética e até moralidade. “Mas que raio de superioridade tem um qualquer país para punir outro”? Poderiam questionar. Mas, para isso não poderiam passar pelos colégios, institutos de pilhagem (business) e professores por que passam. A susceptibilidade de questionarem a legitimidade das sanções unilaterais (exclusividade do “excepcionalista” ocidente) é inversamente proporcional ao número de avenças na “comunicação social” e ao número de aparições televisivas. A ordens do chefe cumprem-se, não se questionam.

Nº total de sanções à Rússia.

Mas o que poderiam fazer, ao menos – porque até o Tesouro americano o faz –, seria questionar a eficácia da acção em si. Quando se abusa de determinado veneno… A vítima ganha tolerância. E esta é a história que observamos ao longo do século XXI: as vítimas (classificadas como “agressoras” na depravada lógica dos valores neoliberais) foram ganhando tolerância, aprenderam a viver com as limitações brutal e autoritariamente impostas. Daí que, importantes centos do poder mundial, tenham ganho imunidade. Com esta imunidade, outros podem agora beneficiar da vacina.

É o próprio Tesouro a reconhecer – sem nunca sair do seu quadro supremacista – que “se as sanções podem, quando usadas adequadamente, deter e prevenir ameaças à segurança nacional dos EUA, contudo, os EUA enfrentam hoje novos desafios à eficácia das sanções como uma ferramenta de segurança nacional”, acabando com “os EUA têm de adaptar-se e modernizar a arquitectura operacional da forma como as sanções são aplicadas”.

Que orgulho devem ter os “boys” do “arco da governação” por submeterem Portugal e a UE a gente tão “racional e sabedora”. Afinal, foi preciso chegar a um aumento de 933% para constatar que algo não funciona. E, mesmo assim, nem por um momento, no relatório se questiona: “e que tal nos comportarmos como um país civilizado?”

Estes 933% denunciam grande parte dos problemas que nos afectam, como povo, como trabalhadores, como seres humanos. Este número denúncia a violência da vertigem hegemónica. Em cada ponto percentual deste número esmagador encontram-se os corpos famintos, inanimados, subnutridos e violentados de centenas de milhões de seres humanos. Este número desastrado, excessivo, representa a escala da apropriação de capital que o ocidente fez nos últimos 500 anos. Não lhe bastou enriquecer, desenvolver-se primeiro, com a riqueza pilhada aos outros povos. Os 933% demonstram o quão preparadas estão as elites supremacistas ocidentais para lutar pela manutenção do seu modelo de agressão, submissão e exploração dos povos.

E não pensem os incautos locais que estes 933% de agressão sancionatória não se reflectem nos seus ossos, na sua carne. Se olharmos ao que se passa hoje no leste europeu, verificamos que alguns milhares destas sanções resultaram na nossa inflação, na destruição da indústria alemã (hoje em queda aos níveis do Covid – 19) e europeia, na recessão das economias ocidentais. A vítima, uma vez mais classificada como agressora, está imune. Mas o que vale é que somos “liderados” por gente sabedora, que já vai no 11º pacote de sanções sem outro resultado que não seja a nossa desgraça.

Mas neste quadro apocalíptico, não foram apenas a sanções que aumentaram 933%. Assistimos a um aumento paralelo nas doses intermináveis de propaganda do regime (quem ainda não viu os novos “Eu amo a União Europeia”?); na doutrinação em massa, da publicidade ao cinema; na censura, amordaçamento e unanimismo dos órgãos de comunicação; na perseguição da dissidência, nos delitos de opinião; na vigilância, monitorização e condicionamento de todos os nossos passos. A nossa liberdade também se reduziu 933%, e mais do que a individual, perdemos a colectiva, como povo, como país, como nação.

Estes 933% também nos contam sobre uma realidade contraditória. Ao passo que os países vassalos do ocidente colectivo estão 933% mais condicionados (nem a internet 5G já têm liberdade para escolher), existem outros, que finalmente, vêem nesta imunidade ao veneno das sanções, uma possibilidade de libertação colectiva e de posterior desenvolvimento. Acima de tudo, estes 933% de aumento da carga sancionatória representam, por outro lado, um acréscimo da coragem libertadora por tantas e tantas nações e povos. Algo impensável ainda há 30 anos.

E, afinal, foi apenas preciso alguém gritar chega! Alguém com peso e importância. Dado o grito libertador, alguns situando-o em Fevereiro de 2022, passámos a observar uma urgência, muitas vezes pueril – como no caso de Lula –, outras vezes envergonhada – como no caso da Índia – pela fuga ao ditame hegemónico do dólar e da arquitectura de poder que o sustenta.

E é este êxodo que reflectem os 933%. Ao longo dos últimos 20 anos, por cada ponto percentual que subia a carga sancionatória, eram mais os países que aderiam às organizações que, no futuro, constituíram a nova ONU. Desta feita uma verdadeira ONU, a situar-se no sul global e não no centro do imperialismo e do capitalismo mundial, como a que preside Guterres, símbolo do fanático supremacismo cultural, económico e político ocidental.

E por mais que a propaganda ocidental fale de “armadilhas da dívida”, “ameaças à segurança”, a verdade é que são mais e mais as nações, numa corrente imparável, a juntar-se ao movimento emancipatório. É razão para questionar: “ou estes povos são estúpidos e não sabem o que é bom para eles”; “ou estúpidos somos nós por acreditarmos que deveriam dar graças pela miséria a que os submetemos ao longo de 500 anos”.

Como soube bem, na Arábia Saudita, Blinken reunir-se com MBS sem que fosse colocada a bandeira americana ao lado da saudita. Como soube bem Blinken ter saído da China [NR] sem ter visto respondidas quaisquer exigências que levasse na cartilha. Como soube bem, depois de terem brindado Imran Khan do Paquistão com uma “lulada” judicial, os EUA terem agora de assistir à compra de petróleo russo, pelo primeiro ministro que colocaram no lugar do outro.

Os 933% de sanções em relação ao ano 2000 também mostram o desespero que leva à instalação de um regime neonazi, liderado por um escroque que é capaz de mandar o seu povo para a morte, em nome de interesses alheios. E tal como os 933% de sanções não foram suficientes para conter o inexorável, também as armas maravilha do ocidente e o tal treino militar segundo o “padrão NATO”, foram insuficientes para mover as defesas de um país “atrasado”. Tanta arma maravilha e uma contra-ofensiva programada para ter sucesso nos primeiros três dias, foi subitamente transformada numa “maratona”. São assim os incapazes e os incompetentes: quando a realidade não se ajeita, a culpa é dela própria.

No fundo, tal como os 933% de sanções, as acções desesperadas são uma característica das organizações decadentes e sem estratégia, afundando-se num mar tacticista que as arrasta invariavelmente para o fundo. Presos nas suas próprias contradições e insuficiências, os EUA e vassalos encontram-se reféns das suas próprias limitações, incapazes de gerar em si a contradição necessária para o renascimento. Anos de destruição e ofensiva contra as forças democráticas que se opõem ao regime neoliberal – de sindicatos de classe a partidos revolucionários –, resultaram numa lógica sobranceira de exercício do poder, cuja arrogância se repercute na escolha de “líderes” cada vez mais fracos e seguidistas. Não se pode esperar que se forjem lideranças fortes e convictas em regimes unanimistas.

E é aqui, por incrível que pareça, que teremos de agradecer aos 933% de sanções. É na luta, e face às contradições, que se forjam os grandes líderes. Ao passo que no ocidente se idolatram mimados CEOs cuja coragem se mede pela capacidade de despedir e baixar os salários de quem está abaixo, sendo tiranos para os debaixo e vassalos para os de cima, é no sul global que encontramos as grandes lideranças mundiais. Tanta agressão obrigou os países a encontrar dentro de si as forças necessárias, uma ou outra vez.

Daí que este seja o momento de reconhecer a importância de duas acções com enorme profundidade histórica:

Face ao mundo que vemos hoje nascer…. É razão para dizer: estão 933% mais estúpidos!

E pensar que as propostas eleitorais mais propaladas, como não poderia deixar de ser, apostam em 933% mais do mesmo! Ainda temos tanto para sofrer!

19/Junho/2023

[NR] Subtileza diplomática: ao chegar a Pequim o ministro Blinken teve de pisar chão de cimento – os chineses não lhe estenderam o habitual tapete vermelho diante da escada do avião.

[*] Jurista, https://t.me/canalfactual

Este artigo encontra-se em resistir.info

20/Jun/23