Dívida: Os primeiros 5000 anos

Jorge Figueiredo

Capa de 'Debt: The First 5000 Years'.

Debt: The First 5000 Years, de David Graeber (1961-2020), é um livro ambicioso pelo âmbito da sua investigação – âmbito que não é apenas temporal é, também e sobretudo, conceptual. Este livro só poderia ser escrito por um antropólogo, nunca por um economista vulgar formatado pela teoria económica mainstream. No caso de Graeber, por um antropólogo assumidamente anarquista – o que o diferencia dos marxistas, que muitas vezes tendem a desprezar ou ignorar aspetos subjetivos e superestruturais dos problemas sociais. Por tudo isso, trata-se de um livro diferente do habitual nas histórias económicas.

A investigação de Graeber é extensa (542 p.). Ela incide em aspetos pouco estudados (ou quase inteiramente ignorados) pela teoria económica convencional. Ela principia logo por uma questão que parece auto-evidente mas não é, a de que “as dívidas têm de ser pagas”. No primeiro capítulo, intitulado “Sobre a experiência de confusão moral”, Graeber recorda que este princípio tão arraigado nas mentes de toda a gente não é realmente uma declaração económica e sim uma declaração moral. E afirma: “Se a história mostra alguma coisa, é que não há melhor meio de justificar relações fundadas sobre a violência, para fazê-las parecerem morais, do que reformulá-las na linguagem da dívida – acima de tudo porque fazem imediatamente parecer que é a vítima que está a fazer algo errado. Os mafiosos entendem isso, assim como os comandantes do exércitos conquistadores”. Daí o programa revolucionário único, desde o mundo antigo: “Cancelar as dívidas e redistribuir a terra”. Na Mesopotamia já era assim e então não havia FMI.

“Nossa tendência para ignorar isto é mais peculiar quando se considera quanto da nossa linguagem moral e religiosa contemporânea emergiu originalmente de modo direto destes mesmos conflitos. Termos como “cálculo” (reckoning), ou “redenção” são apenas os mais óbvios, tomados da antiga finança. Num sentido mais amplo, o mesmo se pode dizer de “culpa”, “liberdade”, “perdão” e mesmo “pecado”. Argumentos acerca de quem realmente deve a quem têm desempenhado um papel central na modelação do nosso vocabulário básico do certo e do errado”, diz Graeber.

O segundo capítulo arrasa um dos mitos propalados por todos os manuais de política monetária, o de que o comércio teria tido o escambo (barter) como origem. Aqui Graeber atira-se aos economistas como gato a bofe e é demolidor. “Qual é a diferença entre uma mera obrigação, um senso de que convém comportar-se de um certo modo, ou mesmo que deve alguma coisa a alguém, e uma dívida propriamente dita?”, pergunta Graeber. E responde de forma cristalina: “A resposta é simples: dinheiro. A diferença entre uma dívida e uma obrigação é que uma dívida pode ser precisamente quantificada. Isto exige moeda”.

O MITO DO ESCAMBO

Assim, não é só a moeda que torna a dívida possível: a moeda e a dívida surgiram em cena exatamente ao mesmo tempo. Tal como também tem apontado Michael Hudson, não faltam exemplos através dos séculos para o confirmar. Dessa forma, uma história da dívida é também uma história da moeda – uma não pode existir sem a outra. No entanto, “quando economistas falam das origem da moeda, a dívida é sempre algo como uma reflexão posterior. Primeiro veio o escambo, depois a moeda, o crédito só se desenvolveu mais tarde”. Mas trata-se de uma cronologia profundamente errada martelada na cabeça de gerações de economistas. Na verdade, o escambo é um mito fantástico concebido para apresentar a invenção da moeda como um mero facilitador de trocas. Trata-se na verdade do grande mito fundador da disciplina da teoria económica, que remonta a Adam Smith.

Imposto de palhota.

A demonstração de Graeber é concludente e ele alinha incontáveis exemplos históricos para demonstrar a falsidade deste mito fundador, com exemplos tomados em todos os continentes. Acrescentarei mais um que não está no livro: Quando o colonialismo português na África quis assalariar a mão-de-obra local criou o “Imposto de Palhota”, para os seus proprietários. Mas os nativos viviam numa economia pré-monetária, não dispunham de moeda e nem dela precisavam. Assim, a única maneira que tinham de obtê-la e poderem pagar esta dívida fiscal – escapando às penas da lei – era serem contratados para trabalhar nas plantações. É mais um caso em que moeda & dívida surgiram em simultâneo, confirmando a tese de Graeber.

O terceiro capítulo chama-se “Dívidas primordiais” e trata dos mitos fundadores da Teoria Económica. Graeber recorda aí que os manuais correntes de teoria económica recorrem a exemplos de aldeias imaginárias com trocas por escambo porque é impossível falar de exemplos reais. É bem sabido que os economistas mainstream desde há muito jogaram pela borda fora a teoria do valor trabalho de Smith assim como a sua condenação das sociedades por ações – mas nunca puderam lançar ao mar o mito do escambo porque ele é central em todo o discurso da teoria económica. Em A riqueza das nações Smith tentava fundar uma nova disciplina como ciência, com o seu próprio objeto de estudo – o que se chama agora “a economia” e que muitos chamam “o mercado”. Graeber discute, no entanto, se tais mercados existem naturalmente e afirma que sem moeda (e sem o papel da política governamental) eles não poderiam existir.

Moedas, mercados e impostos são portanto determinados pelos que têm o poder. Graeber cita o exemplo de Madagascar, onde uma das primeiras coisas que fez o seu conquistador (1901), o general francês Galieni foi aplicar um imposto per capita. “Não só o imposto era alto como só podia ser pago em francos malgaxes”, explica Graeber. Por outras palavras, ele imprimiu dinheiro e a seguir exigiu que todos no país lhe devolvessem algum. É divertido (para nós hoje, não para os malgaxes) ver os nomes que lhe atribuíram:   “impôt moralisateur”, “imposto educacional”, ou “taxa moralizadora”. A ideia era ensinar aos nativos o valor do trabalho... Em suma, Estados criam mercados e mercados exigem Estados. Nenhum deles pode continuar sem o outro.

O capítulo “Crueldade e redenção” recorda que quase tudo é aceitável para ser utilizado como moeda:   vinho, sal, galinhas, arenques, etc. Exemplo: plantadores da Virgínia colonial conseguiram aprovar uma lei obrigando os lojistas a aceitarem tabaco como pagamento. Na verdade a moeda “é quase sempre algo a pairar entre uma mercadoria (commodity) e uma unidade de conta de dívida (debt-token). No caso da moeda metálica cunhada pelo poder político ela pode mesmo atingir valor mais alto do que o metal (ouro ou prata) nela contido.

A REDENÇÃO

A ambivalência da moeda como título de dívida e como poder do Estado manifesta-se também na etimologia. Graeber tem observações agudas a respeito: “Por que, por exemplo, nos referimos a Cristo como o “redentor”? O significado primário de “redenção” é comprar alguma coisa de volta, ou recuperar algo de que se abriu mão em garantia por um empréstimo; adquirir algo pelo reembolso de uma dívida. É especialmente impressionante pensar que o próprio núcleo da mensagem cristã, a própria salvação, o sacrifício do próprio filho de Deus para resgatar a humanidade da danação eterna, devesse ser enquadrado na linguagem de uma transação financeira”.

Depois de recordar a famosa “Lei do Jubileu” – a qual estipulava que todas as dívidas seriam automaticamente canceladas no “ano do Sabbath” (depois de sete anos) e que todos os que padeciam o cativeiro de dívidas seriam libertados – Graeber recorda que “Na Bíblia, tal como na Mesopotamia, 'liberdade', referia-se acima de tudo à libertação dos efeitos da dívida”.

O capítulo cinco tem um título que lembra os de livros antigos:   “Um breve tratado sobre os terrenos morais das relações económicas”. Começa por considerar que “para contar a história da dívida, então também é necessário reconstruir como a linguagem do mercado acabou por impregnar todos os aspetos da vida humana – chegando a fornecer a terminologia para as vozes morais e religiosas que contra ela se levantam”. Entretanto, será necessário distinguir entre dívidas propriamente ditas e obrigações – não são a mesma coisa. Graeber, como antropólogo, corrobora a tese com numerosos casos retirados da experiência africana. A etimologia ajuda. Graeber recorda: “Em inglês, 'thank you' deriva de 'think'. Originalmente significa, 'Recordarei o que fez por mim' – o que habitualmente não é verdadeiro – mas em outras línguas (o português 'obrigado' é um bom exemplo) o têrmo padrão segue a forma do inglês 'much obliged' – que realmente significa 'Eu sou seu devedor'. O francês merci é ainda mais ilustrativo: deriva de 'piedade' ('mercy'), como que a implorar por piedade; ao dizer isto você está simbolicamente a colocar-se em poder do seu benfeitor – uma vez que um devedor é, afinal de contas, um criminoso”.

JOGOS COM SEXO E MORTE

“Jogos com sexo e morte” é o título bombástico do sexto capítulo (quem diria num livro sobre a história da dívida...). Graeber aí conta o caso de Neil Bush (irmão do George W.), o qual, durante a tramitação do divórcio com a sua esposa, admitiu múltiplas infidelidades com mulheres que, afirmou, apareciam misteriosamente no seu quarto de hotel após importantes reuniões de negócios na Tailândia e em Hong Kong. E cita um um episódio da audiência em tribunal:

"Tem de admitir que é extraordinário", observou um dos advogados da sua esposa, "um homem ir à porta de um quarto de hotel, abrir, encontrar uma mulher ali e ter relações sexuais com ela".
"Era muito invulgar", respondeu Bush, admitindo, no entanto, que isso lhe tinha acontecido em várias ocasiões.
"Eram prostitutas?"
"Não sei".

E Graeber conclui: “De facto, tais coisas parecem quase normais quando o big money entra em jogo”. Os exemplos que menciona são vastos, desde tempos antigos até à atualidade, eles vão desde a tribo dos Tiv (Nigéria Central) até aos Nuer (Sudão do Sul), aos Lele (Congo ex-belga). Em todos os casos as relações de casamento estão estreitamente relacionadas a relações de propriedade (prendas, dote) e/ou de endividamento.

Quanto às histórias de terror que assombram essas tribos e o povo do Haiti (zumbis, mortos-vivos, etc), elas são explicáveis sobretudo por uma razão histórica muito concreta:   o comércio de escravos que ali grassou desde o século XVIII. Ele está indissoluvelmente ligado à história da dívida e do crédito:

“O Comércio Atlântico de Escravos como um todo foi uma rede gigante de acordos de crédito. Proprietários de navios baseados em Liverpool ou Bristol adquiriam bens com crédito facilitado a vendedores locais, esperando fazer lucro com a venda de escravos (também a crédito) a plantadores nas Antilhas e na América, com agentes comissionistas na cidade de Londres finalmente a financiar o negócio através dos lucros do comércio de açúcar e tabaco. Proprietários de navios transportavam suas mercadorias para portos africanos como a Velha Calabar. A própria Calabar era a quinta-essência do estado mercantil, dominada por ricos comerciantes africanos que se vestiam com roupas europeias, viviam em casas de estilo europeu e em alguns casos enviavam mesmo os seus filhos para a Inglaterra a fim de serem educados”.

Mas não se pense que tais fenómenos foram uma exclusividade do continente africano. Graeber descreve o caso de Bali (Indonésia), hoje um centro turístico, onde o comércio de escravos/as moldou quase todo o sistema social e político.

HONRA E DEGRADAÇÃO

Honra e dívida são conceitos associados. Graeber aponta: “Homens que vivem pela violência, sejam soldados ou gangsters, são quase invariavelmente obcecados com honra e assaltos à honra são considerados as justificações mais óbvias para atos de violência. Por outro lado, a dívida. Falamos tanto de dívidas de honra como de honrar dívidas. De facto a transição de uma para a outra dá a melhor pista de como emergem dívidas de obrigações”. Analisa a seguir os reflexos que isso tem na consciência das partes, tanto do senhor como do escravo, uma vez que a honra é por definição algo que só existe aos olhos de outros.

Mas o que tem tudo isto a ver com as origens da moeda? A resposta de Graeber é surpreendente: tudo. Ele explica: “Algumas das mais genuínas formas arcaicas de moeda que conhecemos parecem ter sido usadas precisamente como medidas de honra e degradação: isto é, o valor da moeda era, em última análise, o valor do poder de transformar outros em moeda. Ele alinha exemplos, que vão desde a Irlanda Medieval, à Mesopotamia. à Grécia Antiga e à Roma Antiga.

A INVENÇÃO DA CUNHAGEM

A invenção da cunhagem foi uma transformação social, a qual é analisada no capítulo “Crédito versus barras de ouro”. Ela se deu independentemente na Grande Planície ao norte da China, no vale do Ganges ao norte da Índia e nas terras em torno do Mar Egeu, entre os séculos 600 e 500 AC. Desde então, por mais de mil anos, estados de todo o mundo começaram a efetuar a sua própria cunhagem. Aquela invenção substituía o sistema de crédito. Contudo, afirma Graeber, “cerca de 600 DC, no tempo em que a escravatura estava a desaparecer, toda a tendência foi subitamente revertida. O cash secou. Por toda a parte houve um movimento de retorno ao crédito”. Verifica-se assim que houve períodos dominados pelo crédito e outros dominados pelo ouro e a prata.

Por que o ouro perdeu a dominância?, pergunta Graeber. A sua resposta é que “O factor único mais importante parece ser a guerra. O ouro (bullion) predomina, acima de tudo, em períodos de violência generalizada. Há uma razão simples para isso. Moedas de ouro e de prata são diferentes de arranjos de crédito devido a uma característica espetacular: elas podem ser roubadas. Uma dívida, por definição, é um registo, bem como uma relação de confiança”. Assim, conclui, “sistemas de crédito tendem a dominar em períodos de relativa paz social”, ao passo que “períodos caracterizados pela guerra e pilhagem generalizada tendem a ser substituídos pelo metal precioso”. Como de costume, Graeber alinha exemplos extensos que vão da Mesopotamia (3500-800 AC), Egito (2650-716 AC) e China (2200-771 AC).

O capítulo seguinte trata das Eras Medievais (600 AC-1450DC) na Índia, na China, no Oriente Próximo, no Extremo Oriente e na Europa (há que admirar o conhecimento enciclopédico de Graeber). Vem a seguir o capítulo referente à da Era dos Grandes Impérios Capitalistas (1450-1971), com cinco partes: “Cobiça, terror, indignação, dívida”; “O mundo do crédito e o mundo do juro”; “Moeda-crédito impessoal”; “Então o que é o capitalismo?” e “Apocalipse”.

Finalmente, o último capítulo tem o título muito exato de “O começo de algo ainda a ser determinado (1971-presente)”. De facto, desde que em Agosto de 1971 Nixon tornou o dólar inconvertível, tornando-o uma moeda puramente fiduciária, ninguém sabe realmente o que vem aí. O desvanecimento das reservas-ouro do banco central dos EUA, através de trapalhices obscuras é um facto abordado por Graeber com um nível de minúcia raramente visto em textos de economistas mainstream. É notável uma das conclusões a que chega Graeber:   “Em parte, estes sistemas funcionam porque ninguém sabe como eles realmente funcionam” (!). Parece honesto dizer isto, embora vá contra os diáconos da teocracia do livre mercado. Estes estão longe de recordar “o papel da guerra e do poder militar” na “estranha capacidade de criar moeda a partir do nada”. Além disso, prossegue Graeber, “A criação de bancos centrais representou uma institucionalização permanente daquele casamento de interesses entre belicistas e financeiros que começara a emergir na Renascença italiana e que acabou por se tornar o fundamento do capitalismo financeiro”.

Em suma, trata-se de um livro estimulante e de grande erudição. Não se trata de um manual para quem quer respostas prontas e instantâneas e sim para quem tem a ambição de ir tão fundo quanto possível no entendimento das questões analisadas. Tal como as obras de Michael Hudson e Prabhat Patnaik, este livro de David Graeber é uma lufada de ar fresco num mundo infestado com as patacoadas das teorizações vulgares. Ele deveria ser lido pelos bons estudantes de ciências económicas. No entanto, não é provável que faculdades dominadas pela ideologia neoliberal o recomendem.

28/Agosto/2023

Ver também:
  • pt.wikipedia.org/wiki/David_Graeber
  • Edição brasileira: Dívida: os Primeiros 5. 000 Anos
  • Esta resenha encontra-se em resistir.info

    29/Ago/23