A Eurásia toma forma: Como a SCO acaba de inverter a ordem mundial

– Enquanto um Ocidente à deriva observava, a reunião no 20º aniversário da Organização de Cooperação de Xangai foi focada a laser em dois resultados-chave concretos:   moldar o Afeganistão e desencadear uma integração euro-asiática de espectro total

Pepe Escobar [*]

Os participantes da SCO de Dushanbe.

Os dois momentos definidores da histórica cimeira do 20º aniversário da Organização de Cooperação de Shangai (SCO, na sigla em inglês), em Dushanbe, Tadjiquistão, foram os discursos chave dos – de quem mais poderia ser – líderes da parceria estratégica, a Rússia e a China.

Xi Jinping: “Hoje lançaremos os procedimentos para admitir o Irão como membro pleno do SCO”.

Vladimir Putin: “Gostaria de destacar o Memorando de Entendimento hoje assinado entre o Secretariado da SCO e a Comissão Económica Euro-asiática. Ele é concebido claramente para promover a ideia da Rússia do estabelecimento de uma Grande Parceria Euro-asiática que cubra a SCO, a EAEU (Eurasian Economic Union), a ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático) e a Belt and Road Initiative (BRI) da China”.

Em suma, durante o fim de semana o Irão foi consagrado no seu legítimo e primordial papel eurasiano e todos os caminhos de integração da Eurásia convergiram rumo a um novo paradigma geopolítico – e geoeconómico – com um estrondo sónico que obrigatoriamente ressoará pelo resto do século.

Isto foi o segundo soco mortal imediatamente após a ignominiosa retirada imperial da Aliança Atlântica do Afeganistão. Assim que o Talibã assumiu o controle de Cabul em 15 de agosto, o formidável Nikolai Patrushev, secretário do Conselho de Segurança da Rússia [1], disse ao seu colega iraniano, almirante Ali Shamkhani, que "a República Islâmica se tornará um membro pleno da SCO".

Dushanbe revelou-se como a encruzilhada diplomática final. O presidente Xi rejeitou firmemente qualquer "lição condescendente" e enfatizou caminhos de desenvolvimento e modelos de governação compatíveis com as condições nacionais. Tal como Putin, ele enfatizou o foco complementar da BRI e da EAEU e, de facto, resumiu um verdadeiro Manifesto multilateralista para o Sul Global.

Indo directamente ao ponto, o presidente Kassym-Jomart Tokayev, do Casaquistão, observou que a SCO deve avançar no “desenvolvimento de uma macroeconomia regional”. Isto é reflectido no impulso da SCO de começar a usar divisas locais para o comércio, contornando o dólar americano.

Preste atenção a esta quadrilateral

Dushanbe não foi apenas um mar de rosas. Emomali Rahmon do Tadjiquistão, um laico convicto de origem muçulmana e antigo membro do Partido Comunista da URSS – no poder por não menos de 29 anos, reeleito pela 5ª vez em 2020 com 90 por cento dos votos – logo no início denunciou a “sharia medieval” do Talibã 2.0 e disse que eles já haviam “abandonado a sua promessa anterior de constituir um governo inclusivo”.

Rahmon, que nunca foi apanhado a sorrir para a câmara, já estava no poder quando o Talibã conquistou Cabul em 1996. Ele estava destinado a apoiar seus primos tadjiques contra a “expansão da ideologia extremista” no Afeganistão – a qual de facto preocupa todos os estados membros da SCO quando se trata de esmagar jihadistas duvidosos confeccionados nos moldes do ISIS-K.

O cerne da matéria em Dushanbe esteve nos encontros bilaterais – e num quadrilateral.

Tome-se a bilateral entre o ministro dos Assuntos Externos da Índia, S. Jaishankar, e o da China, Wang Yi. Jaishankar disse que a China não deveria encarar “suas relações com a Índia através das lentes de um terceiro país” e fez esforços para enfatizar que a Índia “não subscreve qualquer teoria de choque de civilizações”.

Essa ideia era bastante difícil de vender considerando que a primeira cimeira Quad presencial acontece esta semana em Washington, DC, hospedada por esse “terceiro país” que agora está afundado no modo choque-de-civilizações contra a China.

O primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan, esteve num registo bilateral, encontrando-se com os presidentes do Irão, Bielorússia, Usbequistão e Casaquistão. A posição diplomática oficial paquistanesa é que o Afeganistãonão deveria ser abandonado e sim acoplado.

Essa posição acrescentou matizes ao que o Enviado Presidencial Especial Russo para Assuntos SCO, Bakhtiyer Khakimov, havia explicado acerca da ausência de Cabul na mesa da SCO: “Nesta etapa, todos os estados membros têm um entendimento de que não há razões para um convite até que haja um governo legítimo, geralmente reconhecido, no Afeganistão. E isto, confirmadamente, leva-nos à chave da reunião da SCO: uma quadrilateral com os ministros dos Negócios Estrangeiros da Rússia, China, Paquistão e Irão.

O ministro paquistanês dos Negócios Estrangeilros, Qureshi afirmou: “Estamos a monitorar se todos os grupos são ou não incluídos no governo”. O cerne da matéria é que, a partir de agora, Islamabad coordena a estratégia da SCO no Afeganistão e intermediará as negociações Talibã com altos líderes tadjiques, usbeques e hazaras. Isto finalmente abrirá caminho rumo a um governo inclusivo reconhecido regionalmente pelos países membros da SCO.

O presidente iraniano, Ebrahim Raisi, foi calorosamente recebido por todos – especialmente após o tom poderoso do seu discurso, um Eixo da Resistência clássico. A sua bilateral com o presidente da Bielorússia, Aleksandr Lukashenko, girou em torno de uma discussão sobre “confrontação por sanções”. Segundo Lukashenko: “Se as sanções fizeram algum mal à Bielorússia, ao Irão, a outros países, foi só porque nós próprios fomos culpados por isto. Nem sempre negociámos, nem sempre encontrámos o caminho que tínhamos de tomar sob a pressão das sanções”.

Considerando que Teerão está plenamente informado acerca do papel de Islamabad na SCO em termos de Afeganistão, não haverá necessidade de implantar a brigada Fatemiyoun – informalmente conhecida como o Hezbolá afegão – para defender os hazaras. A Fatemiyoun foi formada em 2012 e actuou na Síria no combate contra o Daesh, especialmente em Palmira. Mas se o ISIS-K não desaparecer, a história será completamente diferente.

De particular importância para o Irão e a Índia, membros da SCO, será o futuro do porto de Chabahar. Isso permanece o gambito cripto-Estrada da Seda da Índia a fim de conectá-la ao Afeganistão e à Ásia Central. O êxito geoeconómico de Chabahar depende mais do que nunca de um Afeganistão estável – e é aqui que os interesses de Teerão convergem plenamente com os desejos da Rússia e da China na SCO.

Aquilo que a Declaração de Dushanbe 2021 da SCO explicitou acerca do Afeganistão é bastante revelador:

1. O Afeganistão deveria ser um estado independente, neutro, unido, democrático e pacífico, livre de terrorismo, guerra e drogas.

2. É crítico ter um governo inclusivo no Afeganistão, com representantes de todos os grupos étnicos, religiosos e políticos da sociedade afegã.

3. Os estados membros da SCO, enfatizando a significância dos muitos anos de hospitalidade e assistência efectiva dada pelos países regionais e vizinhos a refugiados afegãos, consideram importante para a comunidade internacional efectuar esforços activos a fim de facilitar o seu retorno digno, seguro e sustentável à sua pátria mãe.

Ainda que isto possa soar como um sonho impossível, esta é a mensagem unificada da Rússia, China, Irão, Índia, Paquistão e “estões” da Ásia Central. Alguns esperam que o primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan, esteja à altura da tarefa e pronto para actuar em estreita aproximação com a SCO.

Aquela perturbada península ocidental

As Novas Estradas da Seda foram oficialmente lançadas há oito anos por Xi Jinping, primeiro em Astana – agora Nur-Sultan – e depois em Jacarta.

Foi assim que relatei na altura.

O anúncio foi feito perto de uma cimeira da SCO – depois em Bishkek. A SCO, amplamente desprezada em Washington e Bruxelas como uma mero clube de conversas, já estava a ultrapassar o seu mandato original de combater as "três forças do mal" – terrorismo, separatismo e extremismo – e a abranger a política e a geoeconomia.

Em 2013, houve uma trilateral Xi-Putin-Rouhani. Pequim manifestou total apoio ao programa nuclear pacífico do Irão (recorde-se, isto foi dois anos antes da assinatura do Plano de Acção Global Conjunto, também conhecido como JCPOA).

Apesar de muitos peritos o terem rejeitado na altura, havia de facto uma frente comum China-Rússia-Irão na Síria (Eixo da Resistência em acção). Xinjiang estava a ser promovido como o eixo chave para a Ponte Terrestre Eurasiática. O Pipelineistão estava no centro da estratégia chinesa – do petróleo do Cazaquistão ao gás do Turquemenistão. Algumas pessoas podem mesmo lembrar-se de quando Hillary Clinton, como secretária de Estado, estava a tornar-se lírica acerca de uma Nova Rota da Seda de propulsão americana.

Agora compare-a com o Manifesto de Multilateralismo de Xi em Dushanbe oito anos depois, recordando como a SCO "provou ser um excelente exemplo de multilateralismo no século XXI" e "tem desempenhado um papel importante no reforço da voz dos países em desenvolvimento".

A importância estratégica desta cimeira da SCO que teve lugar logo após o Fórum Económico Oriental (EEF) em Vladivostok não pode ser sobrestimada o suficiente. O EEF concentra-se, evidentemente, no Extremo Oriente russo – e essencialmente avança a interconectividade entre a Rússia e a Ásia. É um centro absolutamente fundamental da Parceria da Grande Eurásia da Rússia.

Uma cornucópia de negócios está no horizonte – expandindo-se desde o Extremo Oriente até o Árctico e o desenvolvimento da Rota do Mar do Norte, e envolvendo tudo, desde metais preciosos e energia verde até à soberania digital fluindo através de corredores logísticos entre a Ásia e a Europa via Rússia.

Como sugeriu Putin no seu discurso principal, é disto que trata a Parceria da Grande Eurásia: a União Económica da Eurásia (Eurasia Economic Union, EAEU), BRI, a iniciativa da Índia, a ASEAN e agora a SCO, desenvolvendo-se numa rede harmonizada, operada de forma crucial por "centros de decisão soberanos".

Assim, se o BRI propõe uma muito taoísta "comunidade de futuro compartilhado para a espécie humana", o projecto russo, conceptualmente, propõe um diálogo de civilizações (já evocado há anos Khatami no Irão) e projectos soberanos económico-políticos. Eles são, de facto, complementares.

Europe as Western Peninsula of Greater Eurasia.

Glenn Diesen, Professor na Universidade do Sudeste da Noruega e editor da revista Global Affairs da Rússia, está entre os poucos académicos de topo que estão a analisar este processo em profundidade. O seu último livro conta de forma notável toda a história no seu título: A Europa como a Península Ocidental da Grande Eurásia: Regiões Geoeconómicas num Mundo Multipolar ( Europe as the Western Peninsula of Greater Eurasia: Geoeconomic Regions in a Multipolar World). Não está claro se os eurocratas em Bruxelas – escravos do atlantismo e incapazes de compreender o potencial da Grande Eurásia – acabarão por exercer uma real autonomia estratégica.

Diesen evoca em pormenor os paralelos entre as estratégias russas e chinesas. Observa como a China "está a perseguir uma iniciativa geoeconómica de três pilares, desenvolvendo a liderança tecnológica através do seu plano China 2025, novos corredores de transporte através da sua Iniciativa Belt and Road de um milhão de milhões de dólares e do estabelecimento de novos instrumentos financeiros tais como bancos, sistemas de pagamento e a internacionalização do yuan. A Rússia está igualmente a perseguir a soberania tecnológica, tanto na esfera digital como para além dela, assim como novos corredores de transporte, tais como a Rota do Mar do Norte através do Árctico e, primariamente, novos instrumentos financeiros".

Todo o Sul Global, atónito com o colapso acelerado do Império Ocidental e da sua ordem unilateral baseada em regras, parece agora estar pronto para abraçar o novo sulco, exibido plenamente em Dushanbe: uma Grande Eurásia multipolar de iguais soberanos.

22/Setembro/2021

[1] Ver Uma reacção em cadeia caótica, entrevista de Nikolai Patrushev

Ver também:
  • A Letter to the Taliban, Dr. Ejaz Akram, c/ Pepe Escobar, 22/Set/21
  • [*] Jornalista. Alguns dos seus livros encontram-se aqui.

    O original encontra-se em thecradle.co/Article/analysis/2104

    Este artigo encontra-se em resistir.info

    24/Set/21