A economia indiana desde a independência

Prabhat Patnaik [*]

Cartoon de Dario Castillejos.

O estado pós-colonial na Índia tinha duas tarefas primárias diante de si: uma era ultrapassar a hegemonia do capital metropolitano, de modo que uma estratégia de desenvolvimento em relativa autonomia do imperialismo pudesse ser prosseguida; a segunda era atacar o latifundismo (landlordism) tanto para libertar a população agrária dos seus grilhões como para aumentar o produto agrícola para a industrialização rápida baseada num crescente mercado interno. Estas duas tarefas estavam interligadas: a menos que o crescimento agrícola fosse incrementado consideravelmente pelo ataque ao latifundismo, as pressões inflacionárias e de balança de pagamentos associadas à estratégia de desenvolvimento relativamente autónoma manteriam o crescimento geral constrangido, gerando contradições sociais que forçariam uma capitulação final diante do imperialismo.

O ataque ao latifundismo, no entanto, foi limitado. Ele equivaleu a livrar-se de latifundiários absenteístas, transformando os latifundiários remanescentes em capitalistas agrícolas na terra que eles mantiveram como khudkasht [1], e dando direitos de propriedade sobre quaisquer terras que fossem tomadas aos latifundiários à camada superior dos arrendatários. A concentração da terra, no sentido da proporção de terra possuída por, digamos, os 15 por cento de topo dos latifundiários, permaneceu inalterada, mas a composição destes 15 por cento do topo mudou. E o terreno foi limpo para a agricultura capitalista no campo. Ao mesmo tempo, o investimento do Estado em irrigação, no desenvolvimento de melhores práticas agrícolas e em atividades de extensão foram todos incrementados.

Os principais instrumentos utilizados para ultrapassar a hegemonia do capital metropolitano foram:   proteção generalizada da economia interna; controle sobre o comércio especialmente de produtos agrícolas; manter completamente afastado o agronegócio (e mesmo impedir os estabelecimentos de negócios indianos de terem qualquer relacionamento direto com o campesinato); controle estrito sobre fluxos de capitais transfronteiriços; nacionalização em certas áreas chave, nomeadamente finanças (embora a nacionalização substancial de bancos viesse mais tarde); e o desenvolvimento do sector público como um baluarte contra tal hegemonia. O desenvolvimento de um capitalismo relativamente autónomo, que era o sine qua non desta estratégia foi procurado de modo a ser mantido sob controle pela instituição de uma política de investimento – e cambial – com licenciamento que também cobriu acordos de colaboração com o capital estrangeiro.

Este período dirigista assinalou uma rutura substancial com o sombrio estado da era colonial. A taxa de crescimento tanto do produto interno bruto em geral como o do sector agrícola acelerou-se grandemente. Houve uma notável reviravolta na disponibilidade de cereais per capita: a capitação de cereais disponíveis na Índia Britânica, que fora de 200 kg/ano no princípio do século XX, caiu para abissais 136,8 kg em 1946-47. Este recuo drástico foi revertido e a disponibilidade per capita chegou a perto de 180 kg no fim da década de 1980.

Mas este ritmo de mudança, embora rápido em relação ao período colonial, não podia satisfazer as aspirações do povo. Mesmo em 1973-74, apesar da subida da disponibilidade per capita de cereais e da queda associada na pobreza definida através de uma norma nutricional, 56 por cento da população rural não podia ter acesso a 2200 calorias por pessoa por dia e 60 por cento da população urbana não podia ter acesso a 2100 calorias por pessoa por dia. Da mesma forma, os 2 por cento de aumento anual na magnitude do emprego, se bem que possa ter correspondido amplamente ao crescimento populacional, também significou um crescimento da acumulação de desemprego, o qual alienou especialmente a juventude. A grande burguesia que havia apoiado o projeto de construir um capitalismo autónomo, considerou a taxa de crescimento da economia demasiado sufocante uma vez que havia crescido em medida considerável e tornara-se mais ambiciosa. E mesmo esta taxa de crescimento tornou-se difícil de sustentar devido à crescente crise orçamental do Estado.

A pressão por uma mudança de regime, afastando-se do dirigismo rumo ao neoliberalismo, veio da grande burguesia. Ela via maiores oportunidades para si própria na nova situação integrando-se com o capital financeiro internacional que havia emergido como o elemento hegemónico após os choques do preço do petróleo nos anos setenta. A classe média apoiou-a: foi atraída pelas perspetivas de maior emprego se atividades fossem deslocalizadas das economias metropolitanas para a Índia, como prometia o neoliberalismo. E os trabalhadores, de quais se poderia esperar levantarem-se em defesa do dirigismo, não o fizeram pois aquele regime havia defraudado suas expectativas. Portanto, a partir de 1985, mas especialmente depois de 1991, a Índia moveu-se para um regime neoliberal o que significava fluxos transfronteiriços mais livres de bens e serviços, e de capital, incluindo acima de tudo das finanças. Isto também significou o fim do licenciamento.

Não se tratou apenas de uma mudança de regime económico. Implicou a reafirmação da hegemonia do capital metropolitano sobre a economia indiana, embora num contexto amplamente alterado, com a grande burguesia nele integrada e com segmentos da classe média alta anuindo a esta reafirmação. A contradição entre o imperialismo e a sociedade indiana que havia unido várias classes contra o imperialismo no período anterior à independência, na qual a estratégia dirigista era encarada como uma transição (carryover) agora dividia a própria nação. A linha divisória, em suma, mudou de localização: antes era entre o imperialismo e a nação. Passou a ser dentro da própria nação entre capital financeiro internacional, juntamente com a grande burguesia interna a ele integrada, e os trabalhadores pelo outro lado.

Manifestação de kisans em Delhi, Agosto/2021.

Uma consequência imediata disto relaciona-se com o Estado. Ao invés de ser uma entidade que aparentemente paira acima das classes, ele tornou-se preocupado exclusivamente com os interesses do big business e latifundiários, assim como o capital financeiro internacional no qual o big business se integrou. Uma manifestação desta mudança foi a retirada do apoio do Estado à pequena produção, incluindo a agricultura camponesa, e a abertura deste sector à invasão do agronegócio internacional e da grande burguesia interna. Tal retirada de apoio, como por exemplo o apoio de preços a culturas comercializáveis (cash crops) (a tentativa de retirar apoio para os cereais foi derrotada pela longa agitação kisan[2], que durou mais de um ano), e de subsídios a fatores de produção, incluindo crédito, levou a um declínio agudo da lucratividade da agricultura camponesa. A crise que se seguiu para a agricultura camponesa resultou em suicídios em massa em também na emigração camponesa para cidades em busca de empregos não-existentes, o que apenas inchou a dimensão relativa do exército de trabalho de reserva.

O neoliberalismo, em suma, estava carregado de falsas promessas. Não há dúvida que a taxa de crescimento do PIB na economia subiu, mas a taxa de crescimento do emprego foi reduzida para metade em comparação com a anterior, para cerca de 1% por ano, devido à elevada taxa de crescimento da produtividade que era simultaneamente deslocalizadora de mão-de-obra. Esta aceleração do crescimento da produtividade do trabalho surgiu devido à exposição dos produtores nacionais, não apenas dos exportadores mas mesmo dos que produzem para o mercado interno, à concorrência estrangeira devido à retirada da proteção sob o neoliberalismo. O aumento da dimensão relativa do exército de trabalho de reserva revelou-se não necessariamente como uma taxa de desemprego mais elevada, mas como a partilha de um determinado número de empregos (cada um com um determinado salário) entre um número cada vez maior de pessoas. Contudo, este aumento manteve os salários baixos mesmo dos trabalhadores organizados, pela redução da sua força negocial.

Através do esmagamento do campesinato e dos pequenos produtores, e pela redução da força negocial mesmo dos trabalhadores organizados, o regime neoliberal necessariamente reduzia o rendimento real médio per capita dos trabalhadores do país, o que se manifestou num aumento no rácio de pobreza, pouco importando quão alto possa ter sido o crescimento do PIB. A disponibilidade per capita de cereais que havia ascendido até ao fim da década de 1980, desde então estagnou. A proporção da população rural que caiu abaixo das 2200 calorias por pessoa por dia em 1993-94 era, de acordo com o National Sample Survey (NSS), de 58 por cento; ela subiu para 68 por cento em 2011-12. O NSS seguinte, em 2017-18, veio com conclusões tão sombrias (aparentemente as despesas reais per capita haviam caído 9% entre 2011-12 e 2017-18 na Índia rural) que o governo Modi as suprimiu e até decidiu descontinuar o NSS na sua forma antiga! Na Índia urbana, a proporção de pessoas com menos de 2100 calorias por pessoa por dia havia aumentado de 57 para 65 por cento entre 1993-94 e 2011-12.

A miséria dos trabalhadores, aumentando mesmo no auge do neoliberalismo (e mostrando assim a falsidade da teoria do “gotejamento” ("trickle down")), acentuou-se agudamente à medida que o neoliberalismo entrou numa crise, da qual não existe uma saída clara. Esta crise não é surpreendente. Vimos anteriormente a tendência sob o neoliberalismo para os rendimentos reais per capita dos trabalhadores declinarem em média, mesmo quando a produtividade do trabalho aumenta, o que aumenta a percentagem do excedente económico na produção (de facto, este é um fenómeno à escala mundial). Esta é a razão por trás do acentuado aumento da desigualdade de rendimentos na Índia e alhures durante o período do neoliberalismo.

Uma vez que uma rupia nas mãos dos que ganham o excedente gera menos consumo do que a mesma rupia nas mãos dos trabalhadores, uma tal deslocação de rendimentos tende a criar uma tendência para a superprodução. Esta tendência, mantida sob controlo na economia mundial devido às bolhas de preços de ativos nos EUA, as quais aumentam artificialmente a procura fazendo com que os detentores de bens se sintam falsamente mais ricos, afirmou-se após o colapso da bolha imobiliária americana. A economia mundial tem estado mais ou menos num estado de estagnação desde então, o que também tem apanhado a economia indiana, empurrando-a para um maior desemprego e angústia agravada. As medidas mal concebidas do governo Modi, como a desmonetização e a introdução do Imposto sobre Bens e Serviços (Goods and Services Tax, GST) (cujos trabalhos começaram no Congresso anterior), agravaram ainda mais a situação.

Esta crise não pode ser ultrapassada dentro do regime neoliberal. O único mecanismo possível para ultrapassá-la, a saber, maior despesa do Estado, pode funcionar se esta despesa for financiada ou por um défice orçamental ou pela tributação dos ganhos excedentários de riqueza. Se for financiada pela tributação dos trabalhadores, os quais mais ou menos gastam todo o seu rendimento, então uma espécie de procura seria simplesmente substituída por outro, com nenhuma expansão líquida da procura. Mas tanto um aumento no défice orçamental como um aumento nos impostos sobre os ricos são inaceitáveis para o capital financeiro internacional; se a isso se recorrer sob o neoliberalismo então as finanças simplesmente deixarão o país em massa, provocando uma crise financeira aguda.

Por outro lado, a própria forma de o neoliberalismo lidar com a crise, que é dar concessões fiscais aos capitalistas na esperança de que estes aumentem o investimento, realmente piora a crise: os capitalistas apenas embolsam o dinheiro sem investir mais uma rupia (só o farão se a procura tiver aumentado), enquanto que a redução das despesas alhures para financiar estas esmolas aos capitalistas, realmente reduz a procura.

Sair desta crise – a qual nada tem a ver com a pandemia e que é anterior à pandemia (embora a pandemia a tenha agravado a curto prazo) – exige portanto uma transcendência do neoliberalismo. Mas precisamente para prevenir tal possibilidade, o neoliberalismo em crise fez uma aliança com o comunalismo hindu para mudar o discurso. O objetivo desta aliança corporativo-hinduísta é desviar o discurso das questões da vida material para as alegadas "atrocidades" cometidas, quer no presente quer no passado, por um grupo minoritário infeliz. O seu objetivo é manter as pessoas empenhadas no ódio contra este grupo enquanto sofrem aflições crescentes, mesmo quando o capital internacional e o big business empresas interno aumentam a sua riqueza apesar da crise, pela obtenção de ativos, de direitos de extração de matérias-primas, e de oportunidades de investimento, desde o sector público ao sector da pequena produção.

O grande capital financia o Partido Hindutva para chegar ao poder e apoia-o através dos media que controla; em troca, aumenta a sua riqueza, nomeadamente através de medidas de acumulação primitiva de capital. E qualquer oposição a este processo é abafada através de uma combinação de autoritarismo flagrante, a criação de desunião entre o povo e a utilização de elementos que praticam o banditismo contra dissidentes.

O neoliberalismo, mesmo no seu apogeu, aumenta grandemente as desigualdades económicas, abafa qualquer conteúdo democrático que houvesse no funcionamento do Estado, subverte a autonomia do Estado e aumenta a pobreza absoluta. Além disso, acaba por ficar enredado na estagnação e no desemprego em massa, do qual não há saída. Devido a este beco sem saída, impõe um regime político neo-fascista ao país. Este regime pode ser derrubado [mas] não apenas por elementos democráticos que se unam. Isso naturalmente é necessário; mas a transcendência do neofascismo exige a transcendência da conjuntura que o produziu, ou seja, a crise produzida pela ordem neoliberal, para a qual esta ordem em si tem de ser transcendida. Esta é uma tarefa difícil; só pode ser cumprida através da mais ampla mobilização do povo trabalhador.

14/Agosto/2022

NT
[1] Khudakasht: significa terra cultivada pessoalmente por um proprietário. O cultivo pode ser efetuado tanto pelo próprio como por criados ou trabalho contratado.
[2] Kisan: camponês.

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2022/0814_pd/indian-economy-independence. Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em resistir.info

15/Ago/22