Media, política, ideologia
A situação de excepcionalidade criada pela pandemia veio dar
oportunidade a que, indo para além das adequadas medidas impostas pela
ciência médica, pelo bom senso e pela salvaguarda da saúde
das pessoas, alguns tentassem passando por cima de realidade tão
óbvia como as profundas desigualdades sociais expostas pela
situação avançar para objectivos mais profundos e
duradouros, promovendo o medo, o alarmismo, o individualismo, o conformismo, a
criminalização da luta, o ataque aos direitos dos trabalhadores,
as limitações às liberdades democráticas e
constitucionais.
[1]
A integração dos grupos de comunicação social
através de "noticias", "análises",
"comentários", "conselhos",
"advertências", etc. nessa campanha mais ou menos
disfarçadamente favorável ao confinamento político e
ideológico, para hoje e para amanhã, se possível para
sempre, é um bom pretexto, se bem que outros nunca vão faltando,
para sistematizar algumas reflexões genéricas sobre os
media
e a sua actual situação
A influência dos media
A ligação dos
media
à sociedade e às pessoas é profunda, quer através
do consumo directo quer, indirectamente, pelo contacto quotidiano com pessoas
que vêem televisão, ouvem rádio, ou frequentam as redes
sociais. Essa ligação ganha corpo através de diversos
caminhos, que se interpenetram e complementam em quatro planos fundamentais:
Informação:
a selecção dos acontecimentos que são escolhidos para
serem notícia, e posteriormente a sua elaboração,
hierarquização e apresentação são submetidas
a estes e não aqueles critérios, facilitando e oferecendo ao
público um determinado, e não outro, "retrato" da
realidade e sua interpretação;
Conhecimento:
para a maioria do público os
media
funcionam como o meio privilegiado ou mesmo único para a
apreensão e a tomada de contacto com as realidades que ultrapassam a sua
experiência quotidiana;
Entretenimento:
esta função dos
media
género predominante nas programações televisivas e
radiofónicas, em publicações especializadas e no
próprio tratamento da informação, atenuando ou
obscurecendo as funções formativa e informativa, ao mesmo tempo
que preenche quase em exclusivo as horas de lazer de grande parte dos
milhões de portugueses
[2]
;
Ideologia:
enquanto transmissores de determinados, e não outros, programas de
informação, conhecimento e entretenimento, os
media,
directa ou indirectamente, são portadores de conteúdo
ideológico, mesmo quando (ou principalmente quando) veementemente se
afirmam alheios a quaisquer tipos de vinculações desse tipo. Como
se ideologia esse inconveniente e perigoso vocábulo...
só houvesse uma: a da esquerda e mais nenhuma.
Significa isto que os
media.
por diversificadas formas e caminhos, constroem uma determinada realidade,
sendo nessa realidade fabricada pelos
media
que as pessoas fundamentam, em grande parte, as suas opiniões, atitudes
e comportamentos. E se durante décadas as televisões generalistas
foram preponderantes nesta função, as chamadas redes sociais
(não confundir com Internet) vêm assumindo um papel cada vez maior
e muitas vezes no pior sentido.
[3]
Ao contrário do que possa parecer, a superficialidade e ligeireza da
generalidade das programações televisivas, por exemplo,
revelam-se
profundamente políticas
e
profundamente ideológicas,
devido à influência que têm nos comportamentos,
opiniões, valores, interesses e atitudes sociais, profissionais,
culturais e cívicas das pessoas.
É preciso desmistificar a ideia de que, por um lado, há uma
informação de classe (como no caso da imprensa operária,
sindical ou partidária) que explicitamente se afirma comprometida com os
interesses dos trabalhadores, dos explorados, dos excluídos, e por outro
lado há outra informação, alheia e "acima" dos
interesses de classe, pretensamente objectiva, neutra, descomprometida.
A grande diferença entre um e outro tipo de informação
é que a primeira se apresenta perante o público afirmando
claramente quais os seus objectivos e as causas que defende, enquanto a segunda
esconde as suas opções por detrás de um mais ou menos
pomposo discurso sobre a isenção, o distanciamento, a
independência, os valores democráticos, etc.
Pode-se dizer que, em certa medida,
toda
a informação é de classe, defende pontos de vista de
classe, o que bem se compreende se tivermos em conta a natureza dos
media
enquanto fenómeno social e a íntima e incontornável
ligação seja ela directa ou indirecta, real ou potencial
entre as temáticas dos órgãos de
informação e a vida humana nas suas várias
dimensões. Não é outra, aliás, a conclusão a
que chegam os sociólogos da comunicação quando reconhecem
a decisiva contribuição dos
media
dominantes, nas sociedades capitalistas, para a formação do
"consenso" em torno de valores sociais como o conformismo e a defesa
do
statu quo.
Mas, nesta matéria, não podemos deixar de ter em conta outras
opiniões menos eruditas mas que, na prática, também contam
e muito.
"Vivemos numa sociedade capitalista"
Na análise da comunicação social um factor essencial tem
que ser considerado logo à partida, revelando-se de significado decisivo
para a compreensão do lugar dos
media
na sociedade: a questão da propriedade. O facto de em Portugal, tal como
acontece nos países capitalistas em geral, todos os chamados
media
dominantes dominam o mercado e dominam as opiniões, quer se trate
de imprensa, rádio, televisão e
online
pertencerem a grandes grupos económicos, define uma realidade que
decisivamente condiciona as funções sociais dos
media
e os próprios contornos do panorama mediático nacional.
[4]
Um elevado grau de concentração leva a que a
informação, o conhecimento e o entretenimento mediáticos
sejam dominados por um pequeno núcleo de pessoas e empresas
representantes de um restrito e privilegiado grupo de grandes capitalistas, o
que faz com que o poder dos
media
e tudo o que isso implica assuma uma ostensiva natureza de classe. Poder que se
produz e reproduz com base em objectivos de natureza económica, mas
também de natureza política e ideológica, claramente
reflectidos em convicções e assumidos em frases que falam por si.
Citemos Paulo Fernandes, patrão do grupo Cofina e de outros importantes
activos noutros domínios,
[5]
que recentemente esteve prestes a comprar o grupo Media Capital, depois de
obtida a autorização da ERC (Entidade Reguladora para a
Comunicação Social), apenas com o voto contra do vice-presidente
daquela entidade, Mário Mesquita. Confessava Fernandes há uns
anos: "Os
media
foram uma oportunidade que nos apareceu, é um sector bastante atraente
porque exige muito menos investimento de reposição, (
)
é possível crescer sem grandes investimentos. (
) A imprensa
é muito rentável, escandalosamente rentável. (...) O
negócio é francamente bom. Para quem vem de indústrias e
de negócios com margens apertadas e onde é preciso estar sempre a
controlar custos, este negócio é um autêntico doce."
[6]
Sobre a compra do
Correio da Manhã,
em 2000, pelo equivalente a cerca de 50 milhões de euros, recorda ele:
"Foi um excelente negócio, mesmo tendo em conta o preço que
se pagou. Foi um preço alto, porque estávamos numa altura em que
os preços estavam inflacionados, mas as melhorias que conseguimos obter
na gestão superaram as nossas expectativas em relação
à avaliação que tínhamos feito. (...)"
Diz ainda, sincero e claro, o proprietário do diário
português de maior tiragem, com o dobro das vendas dos outros
diários todos juntos: "Não estou nada de acordo com as
visões de actores do mercado de que o Estado é que tem de
intervir e limitar o número de intervenientes/operadores. Nós
vivemos numa sociedade concorrencial, capitalista, que premeia os que
são mais competitivos e mais capazes e os que são menos
eficientes vão sair do mercado. (...) O mercado é que tem de
encontrar a sua solução."
Sim, vivemos numa sociedade capitalista. Diz o patrão do maior grupo de
comunicação social, sentem-no na pele os jornalistas. Apenas dois
terços tem contrato de trabalho, dos quais 57% sem termo e 10,5% a termo
certo; 64,7% dos contratos são de 35 a 40 horas semanais, sendo que,
destes, 13,8% trabalha 51 a 60 horas e 9% mais de 60 horas. Dos 25,8% que,
dentro da mesma empresa ou grupo económico, trabalham para mais de um
órgão, mais de metade (66,8%) não recebem
remuneração extra. 80% não têm progressão na
carreira há mais de quatro anos, dos quais 28,4% há mais de uma
década. 57,3% ganham menos de 1000 euros por mês, 11,6% menos de
500 e, desses, 7% menos de 300; simultaneamente, 19,4% recebem mais de 1500
euros mensais, sendo que, desses, 10,8% ganham até 2000 euros, 3,6%
até 2500 e 5% um valor superior a 1500 euros. E é assim que dois
terços já pensaram em abandonar a profissão, nomeadamente
devido aos baixos rendimentos, à degradação da
profissão e à precariedade contratual.
Edição da informação e ideologia
A ligação entre o jornalismo e a sociedade assume um
carácter de
natureza estrutural,
assente no tipo de propriedade dos
media
de maior influência e na sua natureza de classe. Concretiza-se todos os
dias nos diversos meios de comunicação social através de
uma agenda que, para além dos conteúdos julgados convenientes,
adopta um certo tipo de linguagem e de filosofia informativas que, elas
próprias, acabaram por se tornar dominantes, e que os avanços
tecnológicos vieram potenciar.
Podemos considerar uma grande vitória do capitalismo, no plano da
influência e do controlo ideológica através dos
media,
o ter conseguido e estar a conseguir que as formas de elaborar e editar a
informação impostas pelas novas tecnologias arrastem consigo
maneiras de encarar e pensar a realidade que servem os seus interesses
políticos e ideológicos, ou seja, os seus interesses de classe.
A rapidez e a brevidade das notícias, a sua sucessão em catadupa,
a importância dada às transmissões em directo, sem
possibilidade do comentário distanciado e crítico, a
ausência de contextualização dos factos, tudo isto
são modelos de abordagem a que hoje todos nos habituamos. Sem que disso
tenhamos clara consciência, levam-nos a ter da realidade uma visão
superficial, alheia às causas profundas e às consequências
a curto e longo prazo, uma visão sincopada que transforma,
perversamente, a aparente abundância de informação numa
real subinformação, que nos inunda em vagas sucessivas de factos
mas nos faz perder a bóia das ideias.
A uma fragmentação, descontinuidade e superficialidade da
informação correspondem, necessariamente, uma
fragmentação, descontinuidade e superficialidade da
apreensão do real e do conhecimento, com todas as consequências
negativas e perigosas que tal situação acarreta para a
consciência política e social das pessoas.
Grupos económicos (Principais activos)
Cofina.
Paulo Fernandes Jornais e revistas: Correio da Manhã, Record,
Jornal de Negócios, Destak, Destak Brasil, Metro, Sábado,
Máxima, TV Guia, Semana Informática, Flash!, Vogue, GQ.
Televisão: Correio da Manhã TV (CMTV).
Global Media Group.
Kewin Ho Jornais e revistas: Diário de Notícias, Jornal de
Notícias, O Jogo, Diário de Notícias da Madeira,
Açoriano Oriental, Volta ao Mundo, Evasões. Rádio: TSF.
Impala.
Jacques Rodrigues Revistas: Maria, Nova Gente, VIP, TV 7 Dias, Ana, Nova
Cozinha, Soluções, Segredos de Cozinha.
Impresa.
Francisco Pinto Balsemão Televisão: SIC, SIC
Notícias, SIC Radical, SIC Mulher, SIC K, SIC Internacional, SIC.
Imprensa: Expresso, Caras.
Media Capital.
Prisa, multinacional espanhola (dona de
El País, As
, Cadena Ser, etc.), com forte presença em países da
América do Sul
Televisão:
TVI, TVI 24, TVI Internacional, TVI Ficção.
Rádio:
Rádio Comercial, M80, Cidade FM, Vodafone FM, Smooth, Cotonete, dezenas
de rádios regionais.
Trust in News.
Luís Delgado Exame, Exame Informática, Courrier
Internacional, Activa, Caras, Caras Decoração, Telenovelas, TV
Mais, Blitz, Jornal de Letras.
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Notas
(1) Cf. Comunicado do CC do PCP de 16/5/20.
(2) Escusado será dizer que o entretenimento, em si próprio,
está muito longe de ser um mal, antes pelo contrário. O problema
está quando, por exemplo nos canais de televisão generalistas,
ocupa um espaço manifestamente desproporcionado em relação
ao consagrado às artes, às letras, à cultura, à
cidadania, à educação em geral; ou quando o seu
nível atinge graus de mediocridade inaceitáveis.
(3) Por falar de redes sociais, não resisto a transcrever o
mail
que há tempos um amigo me enviou e que me perdoem os leitores
porventura seguidores das redes que as utilizem num sentido útil e
positivo. Dizia: "Finalmente aderi ao
feissebuque...!!!
Actualmente, estou a tentar fazer amigos fora do Facebook
mas usando os
mesmos princípios. Todos os dias saio à rua e durante alguns
metros acompanho as pessoas que passam e explico-lhes o que comi, como me
sinto, o que fiz ontem, o que vou fazer mais tarde, o que vou comer esta noite
e mais coisas. Entrego-lhes fotos da minha mulher, dos meus filhos, do meu
cão, minhas no jardim, na piscina, e fotos do que fizemos no
fim-de-semana. Também caminho atrás das pessoas, a curta
distância, ouço as suas conversas e depois aproximo-me e digo-lhes
que "gosto" do que ouvi, peço-lhes que a partir de agora
sejamos amigos e também faço algum comentário sobre o que
ouvi. Mais tarde, partilho tudo quando falo com outras pessoas. E
funciona
Já tenho três pessoas que me seguem
São dois polícias e um psiquiatra."
(4) Ver no final deste texto a lista dos actuais maiores grupos neste sector,
indicando-se os respectivos donos e principais órgãos.
(5) A Altri, conglomerado de Paulo Fernandes para os negócios da pasta
de papel e da energia (a partir de biomassa), é um dos dois gigantes
nacionais do sector sendo o outro a Navigator. Segundo o
Jornal de Negócios,
"a Altri "registou em 2018 um resultado líquido de 194,5 milhões de euros, o que revela um crescimento de 102,5% face aos 96,1 milhões de lucros conseguidos no ano anterior "
. Segundo
o relatório de 2018, publicado na CMVM
, entre as empresas detidas pela Altri encontram-se as produtoras de pasta de
papel Celbi, Caima e Celtejo. Esta, situada em Vila Velha de
Ródão, foi protagonista em 2018 de um dos mais sérios
episódios de poluição ambiental no rio Tejo, o qual teve
de ser resolvido a expensas da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e da
Empresa Portuguesa das Águas Livres (EPAL), como na altura
foi denunciado pela comissão de trabalhadores da EPAL
.
(6) Cf. Elsa Costa e Silva,
Os donos da notícia
, Porto Editora, 2004, pp. 164-177.
Ver também:
Jornalismo de merda
.
[*]
Jornalista.
O original encontra-se na revista
O Militante
, Edição Nº 367 - Jul/Ago 2020
Este artigo encontra-se em
https://resistir.info/
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