Os primeiros passos da megacrise
A euforia neoliberal dos anos 1990 e os delírios militaristas que se
seguiram são hoje recordações apagadas, seus impactos
mediáticos esgotaram-se. Assim como nesse remoto passado abundavam os
peritos que profetizavam o milénio burguês, agora muitos deles
anunciam a chegada próxima de uma megacrise mundial muito mais poderosa
que a dos anos 1970. Numa nota publicada em Agosto de 2005 Stephen Roach,
economista chefe da
Morgan Stanley,
alertava acerca da iminência da
"primeira crise energética da era da
globalização"
e para os numerosos pontos débeis da economia norte-americana perante o
referido fenómeno
[1]
. Contudo, um mês depois, na mesma
newsletter,
Roach colocava o défice da
balança de transacções correntes dos Estados Unidos no
primeiro nível de periculosidade
[2]
. Por sua vez, em Agosto
The Economist
apontava para outro detonador: a bolha imobiliária mundial com centro
nos Estados Unidos, cujo desinchamento seria inevitável a não
muito longo prazo
[3]
, ainda que durante esse ano a revista também haja enfatizado o
défice de transacções correntes, a dívida
pública, o défice fiscal e outros males da superpotência.
Um percurso rápido pelas principais fontes de informação
económica internacional nos levaria a engrossar a lista de
ameaças:
a fragilidade do dólar, o círculo vicioso comercial-financeiro
estabelecido entre os Estados Unidos e a China (o primeiro acumulando
dívidas e défices e o segundo dólares e títulos do
Tesouro norte-americano) ou a desaceleração da União
Europeia (onde o motor alemão surge com crescentes dificuldades
económicas, sociais e políticas). E olhando para além da
economia assomam as consequências do fracasso da ocupação
do Iraque que poderia desencadear uma reacção em cadeia, ligando
por exemplo a queda do dólar com a reconversão de grandes
reservas dolarizadas em direcção a outras moedas, o encarecimento
recessivo do crédito nos Estados Unidos e a contracção do
seu consumo interno que tem impacto sobre a procura global.
Vários meses antes de concluir o ano de 2005 o FMI prognosticava
novamente a baixa das taxas de crescimento de vários países
centrais (Alemanha, Itália, Inglaterra, Japão, etc). Os
burocratas do Fundo diversificam as culpas: o Katrina, os défices
norte-americanos, a alta do preço do petróleo...
[4]
, deixando entrever que 2006 não seria melhor.
A incerteza aumenta quando são recordados os erros de previsão
que precederam a última megacrise desencadeada a partir do choque
petrolífero de 1973-1974. Os poucos economistas de renome convencidos
de que se avizinhava uma crise mundial de grande envergadura apostavam em sua
maioria nas turbulências monetárias agravadas desde 1971 quando o
presidente Nixon decidiu não entregar mais ouro em troca de
dólares, sepultando assim o sistema monetário construído a
seguir à Segunda Guerra Mundial.
De qualquer forma, essa previsões eram marginais. A maioria esmagadora
de economistas, políticos e comunicadores endossava os mecanismos
keynesianos capazes, segundo eles, de controlar qualquer
perturbação séria. Quando a crise estalou quase todos
previram o princípio de uma era de maior regulação estatal
do mercado no Ocidente acompanhada pelo fortalecimento internacional do bloco
soviético, mas ocorreu o contrário. O keynesianismo
clássico entrou em declínio, emergiu triunfante o neoliberalismo
e as desregulamentações de todo tipo, a URSS desapareceu... em
síntese, produziu-se uma enorme bifurcação que não
entrava na visão conservadora dos peritos. Uma surpresa semelhante
aconteceu na época da Primeira Guerra Mundial, após a qual uma
das principais vítimas foi o capitalismo liberal então
considerado eterno pelos formadores de opinião do Ocidente. Agora que
estamos a ingressar numa era de alta instabilidade predominam novamente os
erros de percepção. O grosso dos meios de
comunicação (administradores do
"sentido comum")
dão por assente que as transformações estruturais do
capitalismo das últimas três décadas são
irreversíveis ao passo que uma minoria cada vez mais influente aponta em
direcção a um certo passado keynesiano. É quase certo que
ambos se equivocam.
EXPANSÃO DO PARASITISMO
Como a economia mundial gira em torno dos Estados Unidos (seu consumo interno
sobredetermina a evolução da procura mundial), torna-se
útil observar as grandes transformações (e
desequilíbrios) que ali estão a ocorrer.
Em primeiro lugar aparece uma surpreendente combinação de
elitização social, consumismo e declínio da cultura
produtiva. Desde a Segunda Guerra Mundial garantia-se a
desconcentração dos rendimentos. Ao longo dos anos 1960 e 1979
os 1% mais ricos da população ficavam com aproximadamente 8% do
Rendimento Nacional. Mas em torno de 1980 mudou a tendência e
desenvolveu-se um processo de rápida concentração,
actualmente ainda em curso. Em 2000 esses 1% já absorviam 16% do
Rendimento Nacional (ver gráfico "Estados Unidos:
concentração de rendimentos"). Ao contrário do que
ensina a ortodoxia económica, a concentração em cima
não engrossou o fluxo da poupança e do investimento e sim o do
consumo, que em termos reais cresceu a 4% ao ano entre 1985 e 2003, equanto o
Produto Interno Bruto crescia a 2,2%
[5]
. A taxa de poupança pessoal foi-se contraindo até chegar agora
a níveis negativos (ver gráfico "Queda da poupança
pessoal nos Estados Unidos) sem ser compensada pela poupança empresarial
nem estatal, que também declinaram. Em consequência, a
poupança nacional líquida (empresarial, pública e
pessoal), que representava em média 7,5% do Rendimento Nacional no
período 1960-2000, caiu para 1,5% durante 2001-2005. Em resultado disto
os investimentos foram cada vez mais financiados por capitais externos.
Paralelamente expandiu-se o comportamento especulativo em detrimento da cultura
produtiva. Entre 1952 e 1979 (época keynesiana) os rendimentos
financeiros representaram em média uns 10% do rendimento das
famílias. Mas entre 1980 e o presente (hegemonia neoliberal) a referida
porcentagem quase duplicou. Recordemos que quando ocorreu a crise de 1929
entre 3% e 4% da população estadunidense estava envolvida em
negócios bursáteis. Essa porcentagem rondava os 50% no ano 2000.
Frente a isso, reduzia-se a massa de operários industriais. Não
se tratou de um fenómeno exclusivamente norte-americano, mas em nenhum
dos países desenvolvidos este se manifestou de maneira tão
aguda. Por outro lado, a flexibilização laboral alentada a
partir da presidência Reagan (1981-1989) deteriorou a longo prazo a
"cultura empresarial"
de importantes segmentos de trabalhadores, travando o dinamismo dos processos
industriais inovadores. A competitividade ganha no curto prazo pelas empresas
(desaceleração das pressões salariais) foi perdida no
médio e longo prazo ao tornarem-se mais caros e menos criativos os
sistemas de inovação. Os produtos norte-americanos
começaram a ser cada vez menos competitivos frentes aos de países
desenvolvidos como a Alemanha ou o Japão, que podiam oferecer maior
qualidade, e em certos casos também melhores preços, mas
também frente a bens tecnologicamente menos refinados fabricados por
países emergentes como a China, com baixos custos, principalmente
salários.
DESEQUILÍBRIOS EXTERNOS
Chegamos assim a uma segunda tendência visível: a
expansão
incessante dos desequilíbrios externos. A balança comercial
foi-se degradando. Ainda nos anos 60 era positiva, mas ao começarem os
70 apareceram alguns números negativos, a princípio modestos mas
em 1977 ocorreu o primeiro grande défice de 27 mil milhões de
dólares, que saltou para 57 mil milhões em 1983 e 109 mil
milhões em 1984, persistiu em geral nesses níveis durante o resto
da década e na maior parte da seguinte e em 1998 saltou para 165 mil
milhões. Começou aí uma vertiginosa carreira ascendente:
378 mil milhões em 2000, 494 mil milhões em 2003, 617 mil
milhões em 2004
[6]
, arrastando na queda a balança de transacções correntes
[7]
cujo défice chegou a representar 5,7% do Produto Interno Bruto
norte-americano em 2004.
No passado, os rendimentos dos investimentos no exterior
contrabalançavam em parte os desequilíbrios comerciais que os
Estados Unidos pagavam entregando dólares, ou seja, com um custo directo
ínfimo. Mas com o correr do tempo esses papeis foram-se transformando
em activos norte-americanos em mãos estrangeiras que produziam lucros,
os quais numa proporção significativa saiam para o exterior. Por
volta de 1950 os activos no exterior dos estadunidenses equivaliam a cerca de
11% do seu Produto Interno Bruto e em princípios de 2005 chegavam a 36%,
indicador da expansão global dessa economia, mas paralelamente cresceram
os activos de estrangeiros nos Estados Unidos. Se também os compararmos
com o PIB norte-americano veremos que representavam 6% em 1950, 22% em 1985 e
78% em 2005
[8]
: dois dólares em activos norte-americanos possuídos por
estrangeiros contra um dólares de activos no exterior em mãos
norte-americanas. Contudo, o balanço entre entradas e saídas de
fundos desses investimentos ainda continua a ser favorável aos Estados
Unidos
[9]
...mas cada vez menos. Em 1960 esse saldo representava 7'% das entradas de
fundos por investimentos no exterior, mas em 1980 havia baixado para 40%, em
1992 para 22% e em 2004 oscilava entre os 9% e os 10% (ver gráfico
"Estados Unidos: Declínio do saldo de negócios com o
exterior).
Este panorama é ainda mais agravado devido à crescente
dependência energética. Desde princípios dos anos 70 vem
caindo a produção interna de petróleo. Em
consequência a economia é cada vez mais sensível aos
vai-e-vens de uma produção mundial que estará a chegar ao
seu zénite, o que acelera a subida dos preços
[10]
.
DÍVIDAS E DÉFICE FISCAL
Às duas tendências negativas descritas soma-se uma terceira. Se
examinarmos as últimas quatro décadas, os superávites
fiscais constituem uma raridade. Desde os anos 70 os défices foram
crescendo até chegarem a níveis muito elevados em
princípios dos 90 e a seguir Clinton despediu-se com alguns
superávites significativos. Mas desde a chegada de Bush filho o
défice regressou, alcançando números sem precedentes: 160
mil milhões de dólares em 2002; 380 mil milhões em 2003;
412 mil milhões em 2004. A combinação de cortes
tributários às empresas e aumentos de gastos militares não
foi compensada com maiores entradas trazidas pela reactivação.
Em consequência a dívida pública, que havia travado seu
ímpeto em finais da era Clinton, avançou de forma incontida e
agora chega aos oito mil milhões de dólares (ver gráfico
"Dívida pública nos Estados Unidos"), integrando uma
dívida total (pública, pessoal e empresarial) superior aos 37 mil
milhões de dólares, equivalente a mais de três vezes o PIB
dos Estados Unidos e superior ao Produto Bruto Mundial. Após o
arrefecimento económico de 2001 a Casa Branca conseguiu com estes
desequilíbrios, com a redução da taxa de juros e com uma
política de crédito fácil impulsionar o consumo e fazer
subir o ritmo de crescimento mas também conseguir expandir o
défice comercial, as dívidas e uma bolha especulativa muito maior
do que aquela desinchada nos princípios da década actual.
Isto tornou os Estados Unidos muito mais dependentes da poupança
internacional. As entradas de capitais externos oscilam entre 2000 e 3000
milhões de dólares por dia, sem os quais o Estado não
fecharia sua contas, as empresas não conseguiriam sustentar seus
investimentos e os consumidores não poderiam continuar a gastar ao ritmo
actual. Resultado: as dívidas privada e pública dos
norte-americanos com o exterior rondavam em 2004 os 4,5 mil milhões de
dólares (em 1995 chegavam a 1,5 mil milhões) e os bancos centrais
estrangeiros que em 2003 compraram 14% dos títulos a longo prazo do
Tesouro adquiriram 28% em 2004
[11]
.
CUMPLICIDADES
Os estadunidenses consomem, importam e acumulam dívidas como nunca antes
haviam feito, alentados por um governo que imprime cerca de 1,5 mil
milhões de dólares por ano
[12]
. O resto do mundo, especialmente os países asiáticos, colocam
esses bilhetes nas suas reservas, trocam-nos por títulos do Tesouro
norte-americano contribuindo para amenizar o défice fiscal da
superpotência (financiando desse modo suas aventuras militares) ou
investem nos Estados Unidos uma parte dos seus dólares. À
primeira vista estaríamos perante uma mega parasitagem que se alimenta
da poupança e da produção do planeta, mas isso é
uma verdade a meias. Chineses, japoneses, alemães ou ingleses
não estão a fazer beneficência em troca de nada. O que
fazem na realidade é sustentar o primeiro mercado do mundo cujo
desinchamento os golpearia duramente. É o lugar onde chineses e
japoneses vendem uma parte substancial das suas exportações, e
onde os europeus colocam grandes massas de capitais. Além disso a
financiarização da economia não é um
fenómeno exclusivamente norte-americano, trata-se de um processo global.
Dois exemplos: a dívida pública do Japão equivale a 140%
do seu PIB e a área mais quente da especulação financeira
os negócios com
"derivados"
(que ascenderiam segundo cálculos recentes, a uns 180 mil
milhões de dólares, cerca de cinco vezes o Produto Bruto Mundial)
[13]
, apesar de ter o seu centro motor nos Estados Unidos, forma uma trama
em que se entremeiam de modo indiferenciado especuladores europeus, japoneses,
chineses, latino-americanos, estadunidenses ou russos.
O DESAJUSTAMENTO FINANCEIRO GLOBAL
Isto leva-nos ao primeiro possível detonador de uma futura megacrise:
o
desajustamento financeiro global.
O défice da balança de transacções correntes dos
Estados Unidos equivale a 70% do conjunto dos défices de
transacções correntes do mundo... e a tendência é
crescente. O fluxo de fundos externos que sustenta a superpotência
não pode manter seu ritmo actual de maneira indefinida, mesmo antes de
declinar poderia sofrer algumas flutuações que fariam ranger um
sistema sumamente frágil. É de bom tom nos meios
académicos e tecnocráticos fazer referência à
necessidade de um ajuste forte nos Estados Unidos apoiado numa marcha
forçada rumo ao equilíbrio fiscal que certamente esfriaria o
consumo e por conseguinte as importações, reduzindo em
consequência o défice da balança de
transacções correntes. Na realidade trata-se de uma
aspiração de difícil cumprimento, porque se isso chegasse
a ocorrer arrastaria para a recessão a economia mundial, chineses e
japoneses enfrentariam a contracção do seu principal mercado e
eles também entrariam em crise. Os europeus (especialmente os
países líderes da região) não teriam onde colocar
parte das suas exportações nem sobretudo uma porção
substancial dos seus excedentes financeiros. Agora entraram num período
de crescimento baixo, mas nesse momento cairiam na recessão. Em
síntese, se o desajuste continua, cedo ou tarde causará uma
sacudida financeira grave, mas se for corrigido a economia mundial
sofrerá uma depressão gigantesca.
O DECLÍNIO DO DÓLAR
Estreitamente vinculado ao fenómeno anterior, mas com vida
própria, há um segundo detonador: o dólar, o seu futuro
incerto. Vem declinando em relação ao euro, ao yen e ao ouro,
para além de algumas recuperações efémeras. O
Japão acumula reservas (na sua maior parte dolarizadas) em mais de 850
mil milhões de dólares, as reservas chineses rondam os 700 mil
milhões de dólares, seguem-nos outros países
asiáticos. Recentemente a Coreia do Sul anunciou a sua vontade de
diversificar as suas reservas, o Japão fez o mesmo, a Índia
já o vem fazendo e a China hesita em começar o processo. Todos
sabem que se venderem dólares maciçamente o preço do
bilhete cairá a pique, o que causaria uma contracção
catastrófica do valor das suas reservas muito antes de poderem
reconvertê-las. Em consequência, tentam uma complicada
operação consistente em deslizar muito suavemente para outras
divisas e activos procurando não provocar o derrube do dólar.
Mas a derrocada poderia começar impulsionada por outros factores, como
por exemplo um avanço significativo da desdolarização do
mercado petrolífero. Se uma parte importante dos importadores e
exportadores deixar de aceitar dólares, privilegiando o ouro,
produzir-se-ia um forte declínio do dólar com suas sequelas
recessivas nos Estados Unidos. O Irão anunciou recentemente a
próxima instalação em Teerão de uma bolsa de
comércio de petróleo a funcionar em euros e a competir com as
de Nova York e Londres que operam em dólares. Além disso, a
crescente convergência entre a China, a Rússia e o Irão
poderia derivar na constituição de um bloco
industrial-energético euro-asiático que apontaria rumo à
desdolarização dos intercâmbios comerciais.
FRACASSO NO IRAQUE
A guerra do Iraque surge como o terceiro detonador potencial da crise.
André Gunder Frank costumava insistir em que todo o poderio
norte-americano assenta em dois pilares: o dólar e o Pentágono
[14]
, apoiando-se mutuamente num jogo de hegemonia global. O primeiro deles mostra
claros sinais de debilidade, o segundo, depois de um arranque mediático
inusitado como super herói da chamada
"guerra contra o terrorismo",
ficou atolado no pântano iraquiano, mas também no do
Afeganistão (que se vai
iraquizando
gradualmente). A expansão dos gastos militares norte-americanos
não se desencadeou a seguir ao 11 de Setembro de 2001 e sim antes (ver
gráfico "Gastos militares dos Estados Unidos"). Um dos seus
objectivos principais era o estabelecimento do domínio dos Estados
Unidos sobre os recursos energéticos mundiais, peça chave do seu
projecto imperial. O alcance dessa meta lhe teria permitido resguardar
baluartes vitais como o da hegemonia financeira (e do dólar como moeda
universal). Mas o desenvolvimento da aventura iraquiana mostra uma grande
potência a alcançar as fronteiras da sua
"sobre-extensão estratégica",
conceito
popularizado pelo historiador norte-americano Paul Kennedy para assinalar como
os impérios quando entram em decadência sem vêm obrigados a
multiplicar suas intervenções militares no mundo com o objectivo
de sustentar suas conquistas mas também como o financiamento dessas
intervenções é cada vez mais problemático (as
guerra convertem-se em multiplicadores de dívidas) ao mesmo tempo que as
movimentações bélicas são cada vez mais ineficazes:
a
solução militar
converte-se assim num catalisador da crise
[15]
.
Uma retirada (derrota) das tropas norte-americanas do Iraque afectaria
directamente o seu poderio económico, empurraria o dólar para
baixo e certamente o preço do petróleo para cima, teria efeitos
recessivos sobre os Estados Unidos que se propagariam globalmente. Em
consequência, as tropas estadunidenses não podem retirar-se...
ainda que tão pouco possam ficar porque suas posições
vão-se deteriorando de maneira irresistível.
A CRISE ENERGÉTICA
O quarto detonador é a crise energética em curso que poderia
desembocar numa explosão inflacionária e recessiva superior
às dos anos 1970. Existe uma causa estrutural que a provoca: o
esgotamento das reservas, agravado pelo facto de que todas as grandes
potências industriais, as tradicionais e as emergentes, são
também grandes importadoras de petróleo. Em fins dos anos 1990
os prognósticos mais sérios assinalavam que entre 2010 e 2012
chegaríamos ao máximo da extracção (o
temível
"Peak Oil"
), mas era uma avaliação errónea baseada na
sobre-estimação da reservas disponíveis, sobretudo as do
Médio Oriente, da Ásia Central e da Rússia. De qualquer
forma, essa proximidade teria bastado para que em meados da década
actual a combinação (confrontação) das
estratégias energéticas dos países centrais, das grandes
empresas petrolíferas e dos especuladores conseguisse fazer subir os
preços do combustível. Mas acontece agora sabermos que o
período anterior ao Peak Oil foi encurtado: as jazidas da Bacia do
Cáspio não são tão generosas como se supunha,
muitas daquelas do Médio Oriente (sobretudo da Arábia Saudita) e
da Rússia estão a ser sobre-exploradas, pelo que já nada
pode deter a corrida de preços.
Contudo, existe um bloqueio global de informação sobre o tema.
Cada subida de preços aparece nos meios de comunicação
como provocada por algum factor circunstancial (Katrina,
declaração infeliz de Bush, alguma turbulência
política no Médio Oriente, etc) mas a realidade não pode
ser maquilhada de maneira indefinida. Além disso as fontes
energéticas de substituição não estão
livremente disponíveis no curto-médio prazo de modo a gerar uma
reconversão rápida. Isto significa que os preços do
petróleo continuarão a subir sem tecto à vista. O
fenómeno já afecta de modo significativo os custos industriais
dos países centrais e em algum momento provocará a
contracção em conjunto dos lucros e do consumo.. O
fantasma da "estagflação", que muitos acreditavam
encerrado no baú das recordações nos anos 1970,
regressaria rejuvenescido.
A BOLHA IMOBILIÁRIA
O quinto detonador é a
bolha imobiliária global
que, segundo
The Economist,
constitui a bolha especulativa mais importante da história, superior de
longe à bolsa global de fins dos anos 1990. Nesse momento a subida
do valor da acções no conjunto dos países desenvolvidos
durante os cinco anos anteriores ao desinchaço representou uns 80% da
soma dos seus PIB. Agora, de acordo com os cálculos dessa
publicação, o incremento do valor das propriedades residenciais
desses países equivale a mais de 100% dos referidos PIBs. Efectuando
comparações parecidas pode-se observar que quando explodiu nos
Estados Unidos a crise de 1929 a sobrevalorização do mercado
bursátil representava 55% do PIB norte-americano
[16]
. O disparador desta onda foi a política do dinheiro barato aplicada
pelo governo Bush como saída para o estancamento de 2001, uma avalanche
de créditos para a habitação com taxas de juros muito
baixas expandiu o mercado de tal maneira que em 2004 o valor total das
habitações residenciais nos Estados Unidos chegou aos 15 mil
milhões de dólares, contra os 7 mil milhões de sete anos
atrás. A quanto ascende a bolha nesse país? Segundo estimativas
conservadoras haveria uns 3 mil milhões de dólares de
sobre-preços que poderiam esfumar-se de um dia para o outro
[16]
. Se estendermos este cálculo ao nível mundial
oscilaríamos entre os 5 e os 6 mil milhões de dólares,
cerca da metade do PIB norte-americano: imaginemos o que poderia chegar a
ocorrer se abruptamente esse capital "desaparecesse".
Para entender o fenómeno devemos retroceder aos anos 1970, quando se
iniciou um processo de financeirização global que nos anos 1990
recorreu a uma sucessão de explosões de bolhas: o Japão
ao iniciar-se a década; a Ásia do Leste em 1997; a
Rússia em 1998; os Estados Unidos em 2000. Cada desinchaço foi
sucedido por um balão de maior magnitude que o anterior, mas a
sucessão está agora a aproximar-se dum ponto que torna
impossível o seu controle.
OUTRAS FONTES DE CRISE
Ainda que a crise não tenha necessariamente de começar nos
Estados Unidos, verifica-se que nos outros dois espaços de alto
desenvolvimento foram-se acumulando tensões que poderiam desencadear
turbulências de alcance mundial. Falar de um cenário de crise na
Europa poderia parecer demasiado ousado mas não é assim. A
Alemanha, seu motor económico, aproxima-se do crescimento zero (menos de
1% em 2005) marcado pelo ascenso das tensões sociais, do desemprego, do
desencanto dos habitantes da ex-RDA (que recentemente protagonizaram uma
importante onda de protestos) e pelo esgotamento dos benefícios da
expansão (colonização) em direcção à
Europa do Leste. Na França e na Inglaterra a situação
não é muito melhor e a Itália concluiu 2005 com um
crescimento da ordem dos 0%. As ilusões acerca da
consolidação da União Europeia arrefeceram, como
demonstraram as últimas eleições regionais. Impactos
externos como a previsível desaceleração da economia
norte-americana ou a continuação do processo de subida do
preço do petróleo podem desencadear a recessão.
Não menos frágil é a situação na Ásia
do Leste, em torno do Japão e da China. Ambos acumularam enormes
reservas (mais de 1,5 mil milhões de dólares) e são
extremamente sensíveis tanto às oscilações do
mercado estadunidense como aos preços do petróleo. A China
está presa ao seu
"êxito"
como economia exportadora e no seu interior crescem as desigualdades sociais e
assim a legitimidade ideológica do seu sistema de poder entrou em
declínio. Uma pausa no seu crescimento poderia desencadear antagonismos
internos da magnitude do seu peso demográfico. O Japão
pôde preservar sua estabilidade nos últimos quinze anos apesar do
estancamento económico mas isso depende muito de variáveis
globais ingovernáveis (custos energéticos, dinamismo das
economias da sua região, evolução das
importações dos Estados Unidos, etc).
Se observarmos a realidade dos países subdesenvolvidos (emergentes ou
declinantes) encontraremos seguramente numerosos factores de crise
(económicos, políticos, sociais) com enorme potencial de
propagação regional e global. Pensemos na área dos
países islâmicos, faixa que se estende desde o Oceano
Atlântico no norte da África até o Pacífico,
atravessando os estados árabes, os da Ásia Central, chegando
à Indonésia. Esta faixa abriga uns 1500 milhões de
habitantes, actualmente sacudidos pela estratégia militar expansionista
dos Estados Unidos. Pensemos na América Latina (não só na
sua região andina) e na Europa do Leste, como a Rússia que ainda
pode dar algumas surpresas. Em síntese, a facilidade que um
especialista em prospectiva encontra actualmente para localizar
prováveis focos de turbulência talvez esteja a indicar que acima
dessas localizações (parciais) situa-se uma dinâmica global
de crise que estaria a chegar ao seu
momento de bifurcação,
de ruptura histórica.
A LONGA GESTAÇÃO DA MEGACRISE
Esse "momento" não é o resultado de uma
conjunção de acidentes de conjuntura e sim a consequência
de um longo processo, iniciado em fins dos anos 1990 com uma crise de
sobreprodução que se exprimiu em turbulências
monetárias, tensões consumistas e finalmente no choque
petrolífero de 1973-74 e na "estagflação" que o
seguiu. Ali ficou concluída a prosperidade gerada pelos remendos
keynesianos do pós-guerra (antecipados nos Estados Unidos nos aos 30),
que haviam conseguido reverter a decadência económica do
período entre guerras. Mas o remédio não restabeleceu a
saúde do capitalismo a longo prazo, como supunha o mito da
regulação estatal, mas sim adiou suas mazelas, ampliando a base
de futuras irrupções parasitárias. Na realidade, o
neoliberalismo não deve ser considerado como a negação da
experiência keynesiana e sim como a sua consequência lógica,
sua etapa necessária seguinte. A articulação e o
desenvolvimento dos pilares da hipertrofia financeira global (fundamento do
edifício neoliberal) não teriam sido possíveis sem o
instrumental e o voluntarismo intervencionista dos estados centrais. Dentre
essas acções devemos incluir a expansão das dívidas
públicas, os gastos militares, a manipulação
política dos organismos financeiros internacionais (com o fim, por
exemplo, de agravar o saqueio da periferia), a multiplicação de
intervenções armadas (primeira e segunda guerra do Golfo, Kosovo,
etc), o refinamento das intervenções dos bancos centrais dos
países ricos... e também a ofensiva "desestatizante"
(colonialista) na periferia, saqueando suas infraestruturas educativas,
sanitárias e industriais. O neoliberalismo não foi outra coisa
senão a instauração planetária da hegemonia
financeira, ou seja "imperialista" (Bukarin definiu o imperialismo
como a política do capital financeiro, convergência
parasitária no mais alto nível do poder burguês no centro
do capitalismo mundial). O fenómeno começou há mais de um
século, atravessou diversas etapas e transformações para
chegar à actual situação. Agora o filho neoliberal
costuma ridicularizar de vez em quando o seu pai keynesiano (que por sua vez
ridicularizava o avô liberal do século XIX) mas vive, reproduz-se,
graças ao património recebido, sobretudo suas estruturas estatais
de intervenção.
UM FUTURO TURBULENTO
O dado mais importante que marca este começo de século é o
declínio dos Estados Unidos, acompanhado por dois fenómenos que o
distinguem de maneira radical de outras decadências imperiais da
história moderna.
Em primeiro lugar, a globalização (comercial, financeira,
produtiva...) expressa como interdependência extrema entre as grandes
potências económicas e mais directamente de todas elas em
relação ao mercado norte-americano, cuja queda arrastará
certamente os demais. Outra interpretação possível
é que aquilo que aparece como "crise norte-americana" (com
impactos globais) é na realidade uma crise global com múltiplos
focos. Isto significa que o mais razoável é esperar que o fim da
unipolaridade em torno dos Estados Unidos não seja o princípio de
outra unipolaridade de substituição (asiática ou europeia)
e sim, antes, um complexo processo de despolarização incluindo
multipolaridades frouxas, lideranças regionais efémeras, etc.
Uma antecipação disto é o surgimento de acordos e
integrações regionais que tendem a criar dinâmicas e
estratégias cada vez mais autónomas em relação aos
Estados Unidos. É o caso da convergência triangular entre o
Irão, a Rússia e a China, com capacidade para atrair um amplo
espectro de países euro-asiáticos. A leitura destes processos
encontra-se dificultada pelo peso cultural do passado. Além disso, as
burguesias que tomam distâncias do Império norte-americano
encontram nesta "independência" uma fonte de legitimidade que
as ajuda a controlar melhor suas populações, sempre agredidas por
políticas económicas que acentuam a concentração de
rendimentos. Como exemplo na América Latina podemos observar os
governos de Lula no Brasil ou de Kirchner na Argentina, que aplicam
duríssimos ajustes neoliberais, alardear certas atitudes supostamente
"anti-imperialistas" (em relação à diplomacia
estadunidense). O novo "progressismo" latino-americano e certas
emergências autonomizantes euroasiáticas exprimem tentativas de
reprodução da exploração capitalista para
além da velha tutela norte-americana, ou procurando suavizá-la ou
delimitá-la graças a diversificações
pragmáticas e cambiantes de alianças e submissões.
Enquanto isso a superpotência tenta sobreviver como tal na medida das
suas possibilidades, defende metro a metro seus privilégios, tenta
ofensivas salvadoras (como a invasão do Iraque) e acentua suas
características mais cruéis.
O outro dado associado ao declínio dos Estados Unidos é que o
mesmo coincide com a etapa do declínio do
ciclo estatizante do capitalismo
iniciado há mais de um século que ganhou um
impulso forte
com a Primeira Guerra Mundial, engendrou os diversos fascismos, assumiu-se como
keynesiano, até iniciar sua fase declinante sob a bandeira neoliberal.
Na sua última etapa ascendente (entre 1945 e 1973) levou o
"estado burguês"
ao seu mais alto nível de desenvolvimento e de hegemonia cultural,
possibilitando a integração "democrática" das
classes inferiores nos países ricos e colocando-se na vanguarda dos
processos nacionalistas periféricos (nestes últimos a
libertação do controle imperialista equivalia à
instauração do controle estatal-nacional, anti-imperialismo e
estatismo foram quase sinónimos nessa época). Mais ainda, as
tentativas de ruptura anti-capitalista ao longo do século XX,
começando pela Revolução Russa, ficaram ideologicamente
prisioneiras do estatismo que a partir do Ocidente dava lições de
eficácia administrativa e racionalidade social (nessa submissão
cultural encontraremos um dos factores decisivos do fracasso do
"socialismo" soviético e das suas diversas variantes). A
racionalidade estatal com máscara socialista levada ao seu extremo
final, à organização total da sociedade, converteu-se no
seu contrário: irracionalidade produtiva, esterilização
do espírito inovador, abuso generalizado, arbitrariedade do poder.
O horizonte de despolarização turbulenta tende a estender-se,
afogando o conjunto de mitos da civilização burguesa. O processo
mal começou.
Ao contrário da onda de crises que decorreram da Primeira Guerra
Mundial, agora não surgem alternativas confiáveis engendradas no
centro do mundo (conservadoras, reformistas ou revolucionárias). Nesse
período a racionalidade estatal (impregnada da lógica militar)
oferecia opções viáveis tanto aos que queriam salvar o
capitalismo como aos que aspiravam enterrá-lo. Agora pelo
contrário despontam outras racionalidades (e rebeldias), alimentadas
pelo próprio processo de modernização global, de
urbanização da periferia, de expansão explosiva das
(inter)comunicações. Renascimento do pluralismo, de formas
colectivistas, solidárias a partir de baixo, cuja complexidade
ultrapassa estruturas e preconceitos autoritários que geram nos altos
comandos dramáticas crises de percepção.
Crises, decadências, nascimentos, renascimentos... vão atapetando
um século surpreendente.
NOTAS
(1) Stephen Roach, "Globalisation's First Oil Shock", Morgan Stanley,
Aug 26 2005.
(2) Stephen Roach, "Global: The Shoestring Economy", Morgan Stanley,
Sept 09 2005
(3) "The global housing boom. In come the waves",
The Economist,
Jun 16th 2005.
(4) FMI , Worl Economic Outlook, september 2005.
(5) Jack Crooks, "Dollar drops: Good news and bad",
Asia Times Online,
Nov 25 2004.
(6) U.S. Census Bureau, Foreign Trade Division.
(7) A Balança de transacções correntes norte-americana
integra a balança comercial, a balança de investimentos
estadunidenses no exterior e de investimentos estrangeiros nos Estados Unidos e
as transferências unilaterais.
(8) Piketty T., Saez E., "Income Inequality in the United States,
1913-1998",
The Quartely Journal of Economics,
Vol. CXVIII, num 1, 2003.
(9) Isto se deve ao facto de que a rentabilidade média nos Estados
Unidos continua a ser mais baixa do que a média mundial.
(10) Jorge Beinstein, "¿Hacia la crisis energética
global?", Mercado, septiembre 2005.
(11) Jack Crooks, art.cit.
(12) Joseph W. Stroupe, "Crisis towers over de dollar",
Asia Times Online,
Nov. 25 2004.
(13) ibid.
(14) Andre Gunder Frank On the internet
(
http://www.rrojasdatabank.org/agfrank/agf_internet.htm
).
(15) Paul Kennedy, "Auge y caída de las grandes potencias",
Plaza James, Barcelona, 1989.
(16)
The Economist,
art. cit.
(17) William Engdahl, "Is a USA Economic collapse due in 2005?",
Studien von seitfragen, July 26. 2004 (
http://druckversion.studien-von-zeitfragen.net/
)
[*]
Economista, argentino, director da revista
Enfoques Críticos,
jorgebeinstein@yahoo.com
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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