Três estratégias no movimento alter-globalização
Entre as tendências ideológicas autonomistas e os renovados
impulsos keynesianos e estatistas que começam a brilhar no firmamento
latino-americano, há mais coisas em comum do que o que estão
dispostos a admitir os seus apoiantes. Basta recordar a questão
fundamental: a sua oposição às experiências de
rupturas revolucionárias radicais.
O capítulo latino-americano do Fórum Social policêntrico
realizado em Caracas pôs a nu as polémicas e debates que o
atravessam sobre o seu futuro, agora que se abriu uma nova conjuntura
internacional.
No Fórum participaram mais de 80 mil pessoas. Cerca de 53 mil
individualmente, 19 mil como delegados das mais diversas
organizações e o resto como jornalistas, colaboradores e
voluntários. As delegações da Venezuela, Brasil e
Colômbia foram as mais numerosas.
UM NOVO CONTEXTO INTERNACIONAL
A participação crescente de movimentos sociais e
organizações norte-americanas é um dado novo nos
Fórum e parece expressar o novo clima político anti-bélico
que emerge naquele país do norte.
O seu símbolo, Cinthia Sheehan, a mãe de um soldado morto no
Iraque que acampou em frente do rancho de Bush em sinal de protesto, teve uma
presença destacada em Caracas. O contingente norte-americano, de que
faziam parte organizações sociais e políticas
organizadoras dos movimentos e manifestações anti-guerra, volta a
unir as lutas e rebeliões dos países dependentes e oprimidos com
as aspirações pacifistas de crescentes parcelas da sociedade
norte-americana.
Durante as jornadas do Fórum, uma nova escalada diplomática teve
lugar entre a Venezuela e os EUA, quando o governo local descobriu
acções de espionagem que envolviam altos chefes militares e
decidiu expulsar o adido naval norte-americano, ao que os EUA replicaram
anunciando uma medida semelhante contra a chefe de gabinete do embaixador
venezuelano em Washington. Ainda que uma intervenção militar
seja hoje praticamente impossível, não se pode subestimar as
declarações de Rumsfield quando comparou Chávez a Hitler,
ou as do general James Hill, comandante das Forças Armadas
estadunidenses para a zona sul da América, quando disse que
estamos perante uma nova ameaça emergente na América
Latina, que se observa na Venezuela e Bolívia. Ao lado do
narco-terrorismo, da guerrilha, etc. aparece agora o populismo radical. E isto
é uma ameaça para os interesses dos EUA.
Ou as recentes afirmações da secretária de Estado
Condoleeza Rice, que apelou à comunidade internacional para criar
uma frente unida contra o presidente venezuelano, Hugo
Chávez, que apresentou como um desafio para a democracia e
um perigo para a região, pelas suas relações
com Fidel Castro.
Estas declarações pretendem criar o terreno ideológico e
político propício a uma eventual ofensiva sobre o continente,
ainda que, possivelmente, os seus esforços imediatos não estejam
dirigidos para uma intervenção directa, mas à
criação de forças locais de oposição (no
estilo dos contra nicaraguenses) ou de sustentação moral e
financeira das direitas eleitorais, para recompor as suas fileiras hoje
maltratadas, tanto na Venezuela como na Bolívia.
Mas a histérica reacção da administração
norte-americana revela que a sua actuação no conjunto da
região usa métodos defensivos se os compararmos com as
últimas décadas de indiscutível domínio e de
preponderância das relações íntimas com as
camarilhas políticas locais, durante os anos 90. O novo contexto,
está marcado pela guinada à esquerda das massas, por
rebeliões populares e novos governos em alguns países que se
mostram independentes do imperialismo, sobretudo o de Chávez e,
haverá que verificar no futuro o alinhamento de Evo Morales. A
América Latina é hoje um laboratório de experiências
e debates que repuseram o imaginário socialista e a capacidade de
transformar a sociedade, depois das derrotas e das frustrações da
experiência estalinista e da indiscutível hegemonia do discurso
neoliberal. O novo contexto parece propício para adicionar ao famoso
Não, esse grito de rebelião e recusa, o Sim de uma alternativa
real e efectiva, capaz de opor-se ao capitalismo.
OS GOVERNOS DE CENTRO-ESQUERDA NA AMÉRICA LATINA
Chávez comete um erro fundamental: confunde as necessidades
diplomáticas com as caracterizações políticas. No
seu discurso dos Movimentos Sociais no Poliedro de Caracas chamou a Lula de
grande companheiro e disse que é preciso
apoiá-lo porque estamos num processo. Generalizando a
sua teoria das circunstâncias afirmou que não se pode pedir
a Chávez que faça o mesmo que Fidel. Não se pode pedir a
Lula que faça o mesmo que Chávez. Ou a Evo o mesmo que Kirchner.
Estamos todos no mesmo processo, ainda que cada um nas suas
circunstância.
Na Venezuela é comum ouvir falar da existência duma frente
anti-imperialista continental, ainda que dificilmente ela possa ser
compatibilizada com a política externa da Casa Rosada na Argentina ou do
Palácio do Planalto no Brasil. É difícil acreditar que a
participação nas tropas de intervenção da ONU no
Haiti, a distância ou nula colaboração com Cuba ou a
intervenção na Bolívia, em concordância com os
desejos norte-americanos de estabilização regional, possam ser
compatíveis com a participação, mesmo que só
implícita, em qualquer coisa de semelhante a uma frente
anti-imperialista continental. É evidente que existem profundas
diferenças entre as políticas implementadas pelos governos do
Uruguai, Brasil ou Argentina (e não só na política
externa) e as medidas adoptadas pela Venezuela. Qualquer confusão sobre
isto poderia colocar, como já fez com importantes dirigentes do
movimento social e dos direitos humanos da Argentina, os movimentos de luta no
campo dos exploradores e os seus representantes políticos, se não
na totalidade pelo menos no seu núcleo fundamental, a alinharem na
continuidade com os governos neoliberais.
HIERARQUIAS E DIVERSIDADE
Há um ano, aquando do V Fórum de Porto Alegre, Ignazio Ramonet,
tal como François Houtart
[1]
, figura destacada no Conselho Internacional do Fórum, entre outros
líderes do movimento, alertaram que o evento corria o risco de se
transformar em turismo revolucionário, reuniões
folclóricas, que a fragmentação dos debates em
milhares de propostas deixaria sem hierarquia nem capacidade de decisão
o Fórum, pelo que se deviam escolher acções
prioritárias a levar à prática por todos os participantes.
Tal como outros intelectuais, eles viram, nas acções do governo
da Venezuela, os caminhos para concretizar os desejos e utopias das assembleias
de cidadãos.
Hugo Chávez no seu discurso à assembleia dos Movimentos Sociais
que teve lugar sexta-feira, 27, no Poliedro de Caracas, retomou o fio condutor
de Ramonet alertando para os mesmos problemas (folclorização e
turismo) e propôs acções conjuntas a nível global
contra o imperialismo e o seu chefe, Mr Danger. Evidentemente, a
incapacidade do Fórum em estabelecer agendas prioritárias
impediu, até agora, acções comuns anti-imperialistas de
carácter mundial, sistemáticas e efectivas, que mergulhem as suas
raízes nas lutas dos povos coordenadas globalmente. Para António
Martins
[2]
, membro do AATCC-Brasil, o Fórum foi um espaço aberto e um
laboratório de ciência social, onde se reelaboram permanentemente
teorias da transformação. Coloca em contacto diversas teorias e
escolas sociais, e não o faz do ponto de vista académico ou
apenas de cúpulas partidárias, rompe as barreiras entre a
ciência e a militância, pondo a dialogar intelectuais e activistas
de todos os continentes, com diversas teorias e experiências, num mesmo
nível de debate. Nesse aspecto, o Fórum tornou-se uma
referência mundial para governantes e representantes políticos de
todos os lugares.
Há aqui coisas realmente certas. As grandes insurreições
nas ruas, a partir de Seattle em fins de 1999, foram um impulso decisivo para o
aparecimento deste fenómeno novo. De facto, a existência de um
espaço onde se pratica o livre debate de ideias e o intercâmbio
de experiências é uma novidade do movimento de luta social
anticapitalista, favorecido pelas novas condições internacionais,
surgidas nos finais dos anos 90. Inclusive, permitiu o conhecimento e a
articulação de novas organizações e redes de
acção internacional que seriam impossíveis sem este
espaço.
As próprias organizações revolucionárias que
são uma pequena minoria no Fórum, onde predominam as
expressões políticas e ideológicas reformistas, os
programas redistribuitivos têm podido avançar, graças a
este espaço, nos propósitos de reagrupamento político e
organizativo, opondo-se periodicamente às visões
não-classistas do mundo globalizado, às omissões
maioritárias a toda a proposta de ruptura radical com a sociedade
existente, aos modelos neo-keynesianos, às relações
preferenciais que muitos líderes do Fórum mantém com os
governos social-liberais da Europa ou da América Latina ou às
visões angelicais sobre as reformas necessárias no campo das
finanças internacionais, da ONU ou pela paz mundial. Apesar disso, o
espaço do Fórum debate-se com uma crise, que é o produto
combinado do seu crescimento numérico e político e das suas
debilidades ideológicas.
Atrás da opinião de que não há sujeitos
sociais 'históricos', mais capazes do que outros para encabeçar a
transformação do mundo e que, portanto, não
há campanhas que sejam, a priori, mais relevantes que as outras,
que não há direcções nem partidárias
nem intelectuais autorizadas a definir estas campanhas em nosso nome, fora dos
nossos espaços de diálogo
[3]
, rejeitaram-se campanhas e definições comuns concretas, visto
que os Fórum só podem ajudar a construir actores
colectivos, lugares de encontro e diálogo, mas não
são a instância mais adequada para tomar
decisões. Assim, sob a suposta luta contra as
hierarquias, o Fórum é incapaz de definir os pontos
fundamentais de uma agenda de luta mundial imediata, baseada na
oposição à guerra imperialista do Iraque e à
guerra preventiva concebida pela administração Bush,
que continua através da ofensiva contra os países que ele
considerado eixos do mal, como o Irão, a Venezuela, a
Síria ou a Coreia do Norte, ou sobre movimentos e partidos como o Hamas
ou as FARC.
A ideia de que não cabe tomar decisões em nome dos outros
é um pouco paradoxal, visto que não se deixa de o fazer: recusar
formas democráticas de decisão para executar planos globais de
luta, concretos e efectivos. Ao mesmo tempo, o apelo à diversidade e
à igualdade de problemáticas oculta o núcleo e os
fundamentos dos males que atravessam a sociedade contemporânea, pejada de
injustiças, guerras, degradação social e moral e
catástrofes ecológicas em nome da democracia e do mercado. A
preocupação legítima por questões deste
género, ecológicas ou de outra índole, não se
subestima nem se menospreza quando são incorporadas na luta mais vasta e
abrangente contra o imperialismo belicista e o capitalismo predador.
A passividade e a abstenção servem directamente os senhores da
guerra, ou indirectamente os seus aliados diplomáticos que exercitam um
discurso pacifista mas são seus cúmplices, ou mesmo parceiros
comerciais da guerra, como é o caso da Alemanha, da França, e de
outros países civilizados. Muitos líderes do
Fórum, que mantêm estreitas relações com este tipo
de governos social-liberais, pretendem a sua continuidade como um lugar de
debate, de intercâmbio cultural e artístico e, assim, evitar
declarações e medidas que possam comprometer ou pôr em
sérios apuros os seus sócios. Ninguém pode recusar alguns
dos êxitos que os dirigentes do Fórum mencionam, mas eles poderiam
servir como uma plataforma superior para a luta anti-imperialista. É
que tudo o que não progride acaba por estabilizar e, inclusive, por
retroceder.
Samir Amin apontava este desafio quando sustentou no Fórum de Caracas
que tal como a natureza, a política tem medo do vazio. As
mudanças no mapa da América Latina, e a crescente instabilidade
no Iraque e no Médio Oriente, abrem um novo espaço um novo
espaço para os que se opõem à actual lógica de
dominação mundial comandada pelos EUA. Finalmente, mais
paradoxal ainda resulta o facto de os dirigentes da CUT e do PT ou da
socialdemocracia europeia, que tão influentes são no
Fórum, na sua prática habitual não mostrarem esse desapego
tão consequente para com as hierarquias e as decisões em
nome dos outros, como o fazem no Fórum Social Mundial.
ENTRE A AUTONOMIA E O ESTADO
O Fórum Mundial, desde a sua primeira realização em 2001,
incluiu uma grande componente autonomista. Não se tratava apenas de
manter a autonomia do Fórum face aos diferentes governos e partidos mas,
fundamentalmente, da convicção de que as mudanças
essenciais nas relações sociais provinham do que comumente se
denomina sociedade civil e não do estado. Estavam ali como
testemunhas das experiências falhadas e do posterior derrube, tanto do
estalinismo, como do estado benfeitor e do estatismo praticado e proclamado
pela socialdemocracia.
A ideia do poder constituinte como elemento comunista subversivo e
criador face ao poder instituído, coisificador das
relações sociais e opressor de Tony Negri, ou a teoria do
anti-poder de Holloway tornaram-se um senso comum para os
movimentos sociais de quase todo o mundo, sobretudo no período em que a
asfixiante onda de governos neoliberais que inundava o mundo nem sequer
permitia pensar a acção estatal como factor de troca e
libertação. Nesse sentido, os autores autónomos fizeram
época, reflectindo um período marcado pela deserção
absoluta do estado e pela mercantilização de toda a vida social,
como as pensões de reforma, os serviços públicos
essenciais e até o tempo livre.
Agora o estado regressou, aqui e agora, e a sua capital é Caracas. O
estado foi novamente assumido como o instrumento fundamental de mudança
e a supina ideia de tomar o mundo sem tomar o poder, depois de bom
par de anos, parece um grito dissonante, ingénuo, uma
recordação de como o movimento popular foi colocado na defensiva,
sem capacidade real de manobra na luta de classes. Mesmo que esse eco nem de
longe tenha desaparecido do cenário mundial, pelo menos na
América Latina parece ter ficado fora de moda.
Emir Sader, Ramonet e outros intelectuais encabeçam a exigência de
se ter em conta os governos latino-americanos quando se pensa que outro
mundo é possível. Para Sader fracassaram igualmente
os movimentos sociais que pretenderam manter-se no campo da luta social,
substituindo a luta política ou pretendendo prescindir dela. (...) Na
própria Venezuela, os participantes da FSM encontraram um processo
político em que, efectivamente, se promove a prioridade do social, se
limita a livre circulação do capital financeiro, se opõe
à hegemonia imperial belicista, se promove activamente a
integração latino-americana, tanto nos plano político e
económico em geral, como em aspectos decisivos como o energético
e a democratização dos meios de informação
[4]
.
Assim estamos: enquanto uns exigem olhar para o século passado para
superar os limites do reformismo estatista, do populismo e do seu culto ao
estado com as suas promessas, mitos e desencantos, outros exigem ver para
além das resistências sociais e passar ao terreno dos
projectos políticos se se pretende superar a intranscendência.
Entre as tendências ideológicas autonomistas e os renovados
impulsos keynesianos e estatistas que começam a brilhar no firmamento
latino-americano, há mais coisas em comum do que estão dispostos
a admitir qualquer dos seus defensores. Basta recordar a questão
fundamental: a sua oposição às experiências de
rupturas revolucionárias radicais. Seja porque o poder instituinte se
torna, ao estilo Foucoultiano, isto é pela própria natureza do
poder, um novo Leviatan opressor, ou porque as rupturas radicais terminam
eventualmente em ditaduras estalinistas, as vias revolucionárias para a
transformação do mundo foram declaradas obsoletas e perigosas.
As coincidências teóricas tiveram a sua
concretização em acordos políticos concretos, como o apoio
político ao Sim, no referendo sobre a União Europeia em
França ou o apoio ao governo de Lula no Brasil.
A EXPERIÊNCIA VENEZUELANA
Para os indefectíveis defensores do papel hegemónico do estado
como Sader que continuaram a defender o PT, inclusive quando o barco
já estava afundado , sem o estado não há
possibilidade de mudanças. Mas omite-se o tipo de estado que pode
efectuá-las. A Meca mudou-se do Brasil para a Venezuela. Em parte
é compreensível. O governo venezuelano manteve uma
política externa independente. Chávez foi corajoso ao sentar-se
com Fidel, ao comercializar e ao estabelecer relações com o
Irão, a Rússia, a China ou com quer que seja, mesmo que isso
desagrade à América do Norte. Nesse campo, Kirchner, Lula ou
Tabaré Vasquez não lhe chegam nem aos calcanhares. Também
é verdade que os últimos anos do governo venezuelano, sobretudo
depois do golpe falhado e da derrota do
lock-out
petrolífero, adquiriram uma dinâmica social que operou
importantes mudanças. As missões, as reformas na saúde, o
combate ao analfabetismo, são indicadores de uma nova política
social, que recebeu o apoio da imensa maioria dos pobres do campo e da cidade.
Mas, naturalmente, isto não altera o carácter de classe do estado.
O processo revolucionário da Venezuela tem pendente um caminho claro na
ruptura com a propriedade privada dos meios de produção
estratégicos, os meios de comunicação que foram o
berço do golpismo imperialista, e a reforma agrária, instrumentos
indispensáveis e insubstituíveis para re-empreender um processo
de re-industrialização e recuperação produtiva da
renda petrolífera. O socialismo do século XXI só pode
progredir se partir destas medidas básicas. E isto, naturalmente, exige
aprofundar o processo revolucionário, assimilando as
lições de todo o século XX, em que movimentos
revolucionários, mais ou menos profundos, ocorreram na Argentina, Peru,
Brasil ou México, sem que no essencial fossem modificadas as
relações sociais fundamentais.
Em segundo lugar, o tipo de estado a que aspiram os socialistas desde Marx,
é aquele que se constrói com a força e a
participação dos de baixo, da imensa maioria dos explorados, e
que começa quando se torna efectiva essa participação, ao
voltar-se a um não-estado, um aparelho que se vai dissolvendo e
entregando os seus poderes políticos, que são reabsorvidos pela
sociedade de que tinha estado separada e inclusive irreconciliavelmente em
confronto
Na Venezuela o estado é tudo, (ou o quase tudo) ao passo que a sociedade
é débil. Esta característica histórica construiu
desigualdades entre o poder estatal e as massas, introduziu elementos
cesaristas e caudilhistas permanentes e deu aspectos autoritários e
repressivos ao sistema democrático bipartidário de
adecos e copeyanos
[N do T.: partidos tradicionais e de direita]. O poder do caudilho só
pode surgir da vontade popular, mas para que o mito perdure, essa vontade deve
ser entregue ao chefe. Quanto mais se reforça essa autoridade,
inclusive se este adopta, como Chávez, medidas progressistas e
anti-imperialistas, menos capacidade adquirem as massas para o auto-governo.
Chega um ponto em que o governo de um homem, um cesarismo progressista perante
o poder imperialista, se torna um travão para o desenvolvimento da
polis
moderna, do governo democrático das massas. O caudilho não tem
controlo nem contrapeso. Os partidos podem ser mediadores das questões
presidenciais, mas nunca podem limitar ou controlar, e muito menos recusar, o
seu poder.
A consequência da debilidade histórica do que pode denominar-se de
sociedade civil fez com que as massas tenham intervido em momentos
específicos e determinados do processo revolucionário, como no
golpe de 2002 ou no
lock-out
de 2002-2003, mas a grande maioria das iniciativas permanentes de
organização e participação de massas foram
adoptadas a partir do governo e do estado. As missões, os
círculos bolivarianos, os conselhos comunais. Inclusivamente, a
formação da UNT (União Nacional dos Trabalhadores) foi
apadrinhada desde cima, ainda que a sua formação fosse catalisada
pela participação operária na luta contra o
lock-out.
Mas existe uma dialéctica de
organização-cooptação, baseada na
ampliação do espaço de influência partidária,
que ao mesmo tempo gera uma tendência dinâmica, autónoma e
de auto-governo onde cresceram organismos, e núcleos autónomos em
comunidades, no campo e os movimentos indígenas, mas também uma
dependência estatal e subordinação política.
É um movimento contraditório e um processo vivo que ainda
está em desenvolvimento. A co-gestão operária, reduzida a
poucas empresas, foi alcançada graças ao protagonismo dos
trabalhadores contra o
lock-out
patronal, e inclusive num momento apoiada pelo governo, mas logo foi travada e
desmantelada na PDVSA (petrolífera estatal), ou congelada no sistema de
electricidade. Enquanto o estado se arroga a representação dos
trabalhadores, alguns deles exigem participar na gestão das empresas.
As denúncias sobre a corrupção do aparelho de estado, a
recusa maciça dos partidos de mudança oficiais e o
boicote de governadores, alcaides ou funcionários às medidas que
o povo exige, demonstram até que ponto o aparelho estatal é
alheio à população, um agente classista sobre ela,
sustentáculo hierárquico de um sistema heterónomo de
relações sociais. Não é casual que apenas a figura
presidencial seja apelativa e respeitada, sem a qual o processo não
avançaria. A relação bonapartista do executivo com as
massas expressa a debilidade e não a força do regime, e convida
ao desenvolvimento de organizações autónomas da classe
trabalhadora, dos camponeses e do povo pobre para desenvolver e facilitar o
poder popular e o auto-governo das massas.
A experiência do socialismo real no países de Leste
deveria ser suficientemente esclarecedora sobre os perigos de alimentar e
justificar o burocratismo, o substitucionismo e tomada de decisões de
cariz vertical, inclusive daquelas medidas progressistas que se fazem em nome
do anti-imperialismo ou do socialismo do século XXI. Seria
irónico que pudéssemos extrair conclusões adequadas no
Leste, mas fossemos incapazes de manter uma linha socialista consequente e
independente na América Latina. A urgência de ficar no lado certo
da luta contra o império não deveria ser a desculpa para passar
um cheque em branco ao nacionalismo de esquerda venezuelano nem ao socialismo
de estado cubano, que com tanto valor e coragem (e a simpatia e o apoio que nos
merecem) tem de enfrentar um poder imperialista mil vezes superior. Ao
contrário, uma concepção libertária, genuinamente
socialista tal como a formulou Lenine em
O Estado e a Revolução,
para além dos seus pontos débeis, poderia servir mil vezes mais
o socialismo, tanto em Cuba como na Venezuela, do que um seguidismo
acrítico e uma concepção estatal e burocrática.
Em resumo, trata-se de superar a antinomia entre o autonomismo ou o estatismo
burguês. Ao primeiro falta-lhe a projecção política
estatal sem a qual é impossível derrotar o imperialismo e
caminhar na transição para o socialismo. Esta começa ser
a grande lição que pode deixar a experiência de mais de dez
anos de luta dos zapatistas no México, que depois de erros fundamentais
na sua estratégia autónoma começam a ensaiar alternativas
de organização política a nível nacional; ou a do
Equador, onde os movimentos indígenas e camponeses entregaram o seu
próprio poder aos militares e a políticos cata-ventos, o que
significou uma derrota que ainda hoje os movimentos sociais estão a
pagar. Ou, finalmente, a experiência da Argentina, onde pareceu que as
práticas autónomas e experiências dos moradores dos bairro
ou produtivas podiam substituir com êxito a construção de
ferramentas políticas anti-capitalistas, ainda que a
recomposição do estado e da classe dominante haja reconduzido
essas experiências com relativa facilidade e, inclusive, cooptado muitos
dos seus membros.
O segundo caso, o estatismo reformista, nega a superação da
propriedade privada, a socialização dos meios de
produção e a gestão directa e democrática de todos
os assuntos públicos por parte das massas, única possibilidade de
criar um novo tipo de estado que inaugure o caminho da sociedade comunista.
Por isso, os seus partidários deslumbram-se com a mais medida
mínima que um qualquer governante de centro-esquerda possa tomar, com a
esperança de que ele seja dois ou três milímetros mais
à esquerda que Menem, Fernando Henrique Cardoso ou Battle, ou recriam a
ilusão de uma mudança por cima entre o nacionalismo
de esquerda e o socialismo e prestam culto ao poder emancipador do estado.
Há uma terceira variante que é necessário recuperar de
acordo com a nova época que vivemos. Trata-se de voltar a situar, como
centro de uma estratégia socialista, a transformação
revolucionária da sociedade e a transição para um
não-estado, assegurada pela extensão de novas
relações sociais no interior das sociedades mais desenvolvidas.
Nem apoliticismo ingénuo em nome de um falso anti-autoritarismo, nem
fetichização do estado capitalista ou burocrático.
Há que pensar as vias para uma ruptura radical com o estado capitalista
e o poder económico, social e cultural da classe dominante, e as formas
de transição estatal mediante a acção consciente e
a participação directa das massas, única forma de entender
hoje em dia o socialismo.
Notas:
[1] A mundialização das resistências e das lutas contra o
neoliberalismo, François Hutart
www.lahaine.org/index.php?p=12757&more=1&c=1
[2] Que outro mundo é possível, Martins António, 2006
[3] Idem
[4] Fórum Social Mundial: da resistência à luta por um
mundo pos-neoliberal ou a intranscendência, Emir Sader, Janeiro/2006.
[*]
Argentino, Membro da EDI (Economistas de Izquierda) e da Corriente Praxis,
jorgesanmartino4@fibertel.com.ar
O original encontra-se em
http://www.lahaine.org/index.php?blog=3&p=12758&more=1&c=1.
Tradução de José Paulo Gascão.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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