Três estratégias no movimento alter-globalização

por Jorge Sanmartino [*]

Entre as tendências ideológicas autonomistas e os renovados impulsos keynesianos e estatistas que começam a brilhar no firmamento latino-americano, há mais coisas em comum do que o que estão dispostos a admitir os seus apoiantes. Basta recordar a questão fundamental: a sua oposição às experiências de rupturas revolucionárias radicais.

O capítulo latino-americano do Fórum Social policêntrico realizado em Caracas pôs a nu as polémicas e debates que o atravessam sobre o seu futuro, agora que se abriu uma nova conjuntura internacional.

No Fórum participaram mais de 80 mil pessoas. Cerca de 53 mil individualmente, 19 mil como delegados das mais diversas organizações e o resto como jornalistas, colaboradores e voluntários. As delegações da Venezuela, Brasil e Colômbia foram as mais numerosas.

UM NOVO CONTEXTO INTERNACIONAL

A participação crescente de movimentos sociais e organizações norte-americanas é um dado novo nos Fórum e parece expressar o novo clima político anti-bélico que emerge naquele país do norte.

O seu símbolo, Cinthia Sheehan, a mãe de um soldado morto no Iraque que acampou em frente do rancho de Bush em sinal de protesto, teve uma presença destacada em Caracas. O contingente norte-americano, de que faziam parte organizações sociais e políticas organizadoras dos movimentos e manifestações anti-guerra, volta a unir as lutas e rebeliões dos países dependentes e oprimidos com as aspirações pacifistas de crescentes parcelas da sociedade norte-americana.

Durante as jornadas do Fórum, uma nova escalada diplomática teve lugar entre a Venezuela e os EUA, quando o governo local descobriu acções de espionagem que envolviam altos chefes militares e decidiu expulsar o adido naval norte-americano, ao que os EUA replicaram anunciando uma medida semelhante contra a chefe de gabinete do embaixador venezuelano em Washington. Ainda que uma intervenção militar seja hoje praticamente impossível, não se pode subestimar as declarações de Rumsfield quando comparou Chávez a Hitler, ou as do general James Hill, comandante das Forças Armadas estadunidenses para a zona sul da América, quando disse que ”estamos perante uma nova ameaça emergente na América Latina, que se observa na Venezuela e Bolívia. Ao lado do narco-terrorismo, da guerrilha, etc. aparece agora o populismo radical. E isto é uma ameaça para os interesses dos EUA”.

Ou as recentes afirmações da secretária de Estado Condoleeza Rice, que apelou à comunidade internacional para criar “uma frente unida” contra o presidente venezuelano, Hugo Chávez, que apresentou como “um desafio para a democracia” e um “perigo” para a região, pelas suas relações com Fidel Castro.

Estas declarações pretendem criar o terreno ideológico e político propício a uma eventual ofensiva sobre o continente, ainda que, possivelmente, os seus esforços imediatos não estejam dirigidos para uma intervenção directa, mas à criação de forças locais de oposição (no estilo dos contra nicaraguenses) ou de sustentação moral e financeira das direitas eleitorais, para recompor as suas fileiras hoje maltratadas, tanto na Venezuela como na Bolívia.

Mas a histérica reacção da administração norte-americana revela que a sua actuação no conjunto da região usa métodos defensivos se os compararmos com as últimas décadas de indiscutível domínio e de preponderância das relações íntimas com as camarilhas políticas locais, durante os anos 90. O novo contexto, está marcado pela guinada à esquerda das massas, por rebeliões populares e novos governos em alguns países que se mostram independentes do imperialismo, sobretudo o de Chávez e, haverá que verificar no futuro o alinhamento de Evo Morales. A América Latina é hoje um laboratório de experiências e debates que repuseram o imaginário socialista e a capacidade de transformar a sociedade, depois das derrotas e das frustrações da experiência estalinista e da indiscutível hegemonia do discurso neoliberal. O novo contexto parece propício para adicionar ao famoso Não, esse grito de rebelião e recusa, o Sim de uma alternativa real e efectiva, capaz de opor-se ao capitalismo.

OS GOVERNOS DE CENTRO-ESQUERDA NA AMÉRICA LATINA

Chávez comete um erro fundamental: confunde as necessidades diplomáticas com as caracterizações políticas. No seu discurso dos Movimentos Sociais no Poliedro de Caracas chamou a Lula de “grande companheiro” e disse que é preciso “apoiá-lo” porque “estamos num processo. Generalizando a sua teoria das circunstâncias afirmou que “não se pode pedir a Chávez que faça o mesmo que Fidel. Não se pode pedir a Lula que faça o mesmo que Chávez. Ou a Evo o mesmo que Kirchner. Estamos todos no mesmo processo, ainda que cada um nas suas circunstância”.

Na Venezuela é comum ouvir falar da existência duma “frente anti-imperialista continental”, ainda que dificilmente ela possa ser compatibilizada com a política externa da Casa Rosada na Argentina ou do Palácio do Planalto no Brasil. É difícil acreditar que a participação nas tropas de intervenção da ONU no Haiti, a distância ou nula colaboração com Cuba ou a intervenção na Bolívia, em concordância com os desejos norte-americanos de estabilização regional, possam ser compatíveis com a participação, mesmo que só implícita, em qualquer coisa de semelhante a uma “frente anti-imperialista continental”. É evidente que existem profundas diferenças entre as políticas implementadas pelos governos do Uruguai, Brasil ou Argentina (e não só na política externa) e as medidas adoptadas pela Venezuela. Qualquer confusão sobre isto poderia colocar, como já fez com importantes dirigentes do movimento social e dos direitos humanos da Argentina, os movimentos de luta no campo dos exploradores e os seus representantes políticos, se não na totalidade pelo menos no seu núcleo fundamental, a alinharem na continuidade com os governos neoliberais.

HIERARQUIAS E DIVERSIDADE

Há um ano, aquando do V Fórum de Porto Alegre, Ignazio Ramonet, tal como François Houtart [1] , figura destacada no Conselho Internacional do Fórum, entre outros líderes do movimento, alertaram que o evento corria o risco de se transformar em “turismo revolucionário”, reuniões “folclóricas”, que a fragmentação dos debates em milhares de propostas deixaria sem hierarquia nem capacidade de decisão o Fórum, pelo que se deviam escolher acções prioritárias a levar à prática por todos os participantes.

Tal como outros intelectuais, eles viram, nas acções do governo da Venezuela, os caminhos para concretizar os desejos e utopias das assembleias de cidadãos.

Hugo Chávez no seu discurso à assembleia dos Movimentos Sociais que teve lugar sexta-feira, 27, no Poliedro de Caracas, retomou o fio condutor de Ramonet alertando para os mesmos problemas (folclorização e turismo) e propôs acções conjuntas a nível global contra o imperialismo e o seu chefe, “Mr Danger”. Evidentemente, a incapacidade do Fórum em estabelecer agendas prioritárias impediu, até agora, acções comuns anti-imperialistas de carácter mundial, sistemáticas e efectivas, que mergulhem as suas raízes nas lutas dos povos coordenadas globalmente. Para António Martins [2] , membro do AATCC-Brasil, o Fórum foi um espaço aberto e um laboratório de ciência social, onde se reelaboram permanentemente teorias da transformação. Coloca em contacto diversas teorias e escolas sociais, e não o faz do ponto de vista académico ou apenas de cúpulas partidárias, rompe as barreiras entre a ciência e a militância, pondo a dialogar intelectuais e activistas de todos os continentes, com diversas teorias e experiências, num mesmo nível de debate. Nesse aspecto, o Fórum tornou-se uma referência mundial para governantes e representantes políticos de todos os lugares.

Há aqui coisas realmente certas. As grandes insurreições nas ruas, a partir de Seattle em fins de 1999, foram um impulso decisivo para o aparecimento deste fenómeno novo. De facto, a existência de um espaço onde se pratica o livre debate de ideias e o intercâmbio de experiências é uma novidade do movimento de luta social anticapitalista, favorecido pelas novas condições internacionais, surgidas nos finais dos anos 90. Inclusive, permitiu o conhecimento e a articulação de novas organizações e redes de acção internacional que seriam impossíveis sem este espaço.

As próprias organizações revolucionárias que são uma pequena minoria no Fórum, onde predominam as expressões políticas e ideológicas reformistas, os programas redistribuitivos têm podido avançar, graças a este espaço, nos propósitos de reagrupamento político e organizativo, opondo-se periodicamente às visões não-classistas do mundo globalizado, às omissões maioritárias a toda a proposta de ruptura radical com a sociedade existente, aos modelos neo-keynesianos, às relações preferenciais que muitos líderes do Fórum mantém com os governos social-liberais da Europa ou da América Latina ou às visões angelicais sobre as reformas necessárias no campo das finanças internacionais, da ONU ou pela paz mundial. Apesar disso, o espaço do Fórum debate-se com uma crise, que é o produto combinado do seu crescimento numérico e político e das suas debilidades ideológicas.

Atrás da opinião de que “não há sujeitos sociais 'históricos', mais capazes do que outros para encabeçar a transformação do mundo” e que, portanto, “não há campanhas que sejam, a priori, mais relevantes que as outras”, que não há ”direcções nem partidárias nem intelectuais autorizadas a definir estas campanhas em nosso nome, fora dos nossos espaços de diálogo” [3] , rejeitaram-se campanhas e definições comuns concretas, visto que os Fórum só podem ajudar a “construir actores colectivos, lugares de encontro e diálogo”, mas não são a “instância mais adequada para tomar decisões”. Assim, sob a suposta “luta contra as hierarquias”, o Fórum é incapaz de definir os pontos fundamentais de uma agenda de luta mundial imediata, baseada na oposição à guerra imperialista do Iraque e à “guerra preventiva” concebida pela administração Bush, que continua através da ofensiva contra os países que ele considerado “eixos do mal”, como o Irão, a Venezuela, a Síria ou a Coreia do Norte, ou sobre movimentos e partidos como o Hamas ou as FARC.

A ideia de que não cabe tomar decisões em nome dos outros é um pouco paradoxal, visto que não se deixa de o fazer: recusar formas democráticas de decisão para executar planos globais de luta, concretos e efectivos. Ao mesmo tempo, o apelo à diversidade e à igualdade de problemáticas oculta o núcleo e os fundamentos dos males que atravessam a sociedade contemporânea, pejada de injustiças, guerras, degradação social e moral e catástrofes ecológicas em nome da democracia e do mercado. A preocupação legítima por questões deste género, ecológicas ou de outra índole, não se subestima nem se menospreza quando são incorporadas na luta mais vasta e abrangente contra o imperialismo belicista e o capitalismo predador.

A passividade e a abstenção servem directamente os senhores da guerra, ou indirectamente os seus aliados diplomáticos que exercitam um discurso pacifista mas são seus cúmplices, ou mesmo parceiros comerciais da guerra, como é o caso da Alemanha, da França, e de outros países “civilizados”. Muitos líderes do Fórum, que mantêm estreitas relações com este tipo de governos social-liberais, pretendem a sua continuidade como um lugar de debate, de intercâmbio cultural e artístico e, assim, evitar declarações e medidas que possam comprometer ou pôr em sérios apuros os seus sócios. Ninguém pode recusar alguns dos êxitos que os dirigentes do Fórum mencionam, mas eles poderiam servir como uma plataforma superior para a luta anti-imperialista. É que tudo o que não progride acaba por estabilizar e, inclusive, por retroceder.

Samir Amin apontava este desafio quando sustentou no Fórum de Caracas que” tal como a natureza, a política tem medo do vazio. As mudanças no mapa da América Latina, e a crescente instabilidade no Iraque e no Médio Oriente, abrem um novo espaço um novo espaço para os que se opõem à actual lógica de dominação mundial comandada pelos EUA”. Finalmente, mais paradoxal ainda resulta o facto de os dirigentes da CUT e do PT ou da socialdemocracia europeia, que tão influentes são no Fórum, na sua prática habitual não mostrarem esse desapego tão consequente para com as hierarquias e as decisões “em nome dos outros”, como o fazem no Fórum Social Mundial.

ENTRE A AUTONOMIA E O ESTADO

O Fórum Mundial, desde a sua primeira realização em 2001, incluiu uma grande componente autonomista. Não se tratava apenas de manter a autonomia do Fórum face aos diferentes governos e partidos mas, fundamentalmente, da convicção de que as mudanças essenciais nas relações sociais provinham do que comumente se denomina “sociedade civil” e não do estado. Estavam ali como testemunhas das experiências falhadas e do posterior derrube, tanto do estalinismo, como do estado benfeitor e do estatismo praticado e proclamado pela socialdemocracia.

A ideia do “poder constituinte” como elemento comunista subversivo e criador face ao ”poder instituído”, coisificador das relações sociais e opressor de Tony Negri, ou a teoria do “anti-poder” de Holloway tornaram-se um senso comum para os movimentos sociais de quase todo o mundo, sobretudo no período em que a asfixiante onda de governos neoliberais que inundava o mundo nem sequer permitia pensar a acção estatal como factor de troca e libertação. Nesse sentido, os autores autónomos fizeram época, reflectindo um período marcado pela deserção absoluta do estado e pela mercantilização de toda a vida social, como as pensões de reforma, os serviços públicos essenciais e até o tempo livre.

Agora o estado regressou, aqui e agora, e a sua capital é Caracas. O estado foi novamente assumido como o instrumento fundamental de mudança e a supina ideia de “tomar o mundo sem tomar o poder”, depois de bom par de anos, parece um grito dissonante, ingénuo, uma recordação de como o movimento popular foi colocado na defensiva, sem capacidade real de manobra na luta de classes. Mesmo que esse eco nem de longe tenha desaparecido do cenário mundial, pelo menos na América Latina parece ter ficado fora de moda.

Emir Sader, Ramonet e outros intelectuais encabeçam a exigência de se ter em conta os governos latino-americanos quando se pensa que “outro mundo é possível”. Para Sader “fracassaram igualmente os movimentos sociais que pretenderam manter-se no campo da luta social, substituindo a luta política ou pretendendo prescindir dela. (...) Na própria Venezuela, os participantes da FSM encontraram um processo político em que, efectivamente, se promove a prioridade do social, se limita a livre circulação do capital financeiro, se opõe à hegemonia imperial belicista, se promove activamente a integração latino-americana, tanto nos plano político e económico em geral, como em aspectos decisivos como o energético e a democratização dos meios de informação” [4] .

Assim estamos: enquanto uns exigem olhar para o século passado para superar os limites do reformismo estatista, do populismo e do seu culto ao estado com as suas promessas, mitos e desencantos, outros exigem ver para além das “resistências sociais” e passar ao terreno dos projectos políticos se se pretende superar a intranscendência.

Entre as tendências ideológicas autonomistas e os renovados impulsos keynesianos e estatistas que começam a brilhar no firmamento latino-americano, há mais coisas em comum do que estão dispostos a admitir qualquer dos seus defensores. Basta recordar a questão fundamental: a sua oposição às experiências de rupturas revolucionárias radicais. Seja porque o poder instituinte se torna, ao estilo Foucoultiano, isto é pela própria natureza do poder, um novo Leviatan opressor, ou porque as rupturas radicais terminam eventualmente em ditaduras estalinistas, as vias revolucionárias para a transformação do mundo foram declaradas obsoletas e perigosas. As coincidências teóricas tiveram a sua concretização em acordos políticos concretos, como o apoio político ao Sim, no referendo sobre a União Europeia em França ou o apoio ao governo de Lula no Brasil.

A EXPERIÊNCIA VENEZUELANA

Para os indefectíveis defensores do papel hegemónico do estado como Sader – que continuaram a defender o PT, inclusive quando o barco já estava afundado –, sem o estado não há possibilidade de mudanças. Mas omite-se o tipo de estado que pode efectuá-las. A Meca mudou-se do Brasil para a Venezuela. Em parte é compreensível. O governo venezuelano manteve uma política externa independente. Chávez foi corajoso ao sentar-se com Fidel, ao comercializar e ao estabelecer relações com o Irão, a Rússia, a China ou com quer que seja, mesmo que isso desagrade à América do Norte. Nesse campo, Kirchner, Lula ou Tabaré Vasquez não lhe chegam nem aos calcanhares. Também é verdade que os últimos anos do governo venezuelano, sobretudo depois do golpe falhado e da derrota do lock-out petrolífero, adquiriram uma dinâmica social que operou importantes mudanças. As missões, as reformas na saúde, o combate ao analfabetismo, são indicadores de uma nova política social, que recebeu o apoio da imensa maioria dos pobres do campo e da cidade. Mas, naturalmente, isto não altera o carácter de classe do estado.

O processo revolucionário da Venezuela tem pendente um caminho claro na ruptura com a propriedade privada dos meios de produção estratégicos, os meios de comunicação que foram o berço do golpismo imperialista, e a reforma agrária, instrumentos indispensáveis e insubstituíveis para re-empreender um processo de re-industrialização e recuperação produtiva da renda petrolífera. O socialismo do século XXI só pode progredir se partir destas medidas básicas. E isto, naturalmente, exige aprofundar o processo revolucionário, assimilando as lições de todo o século XX, em que movimentos revolucionários, mais ou menos profundos, ocorreram na Argentina, Peru, Brasil ou México, sem que no essencial fossem modificadas as relações sociais fundamentais.

Em segundo lugar, o tipo de estado a que aspiram os socialistas desde Marx, é aquele que se constrói com a força e a participação dos de baixo, da imensa maioria dos explorados, e que começa quando se torna efectiva essa participação, ao voltar-se a um não-estado, um aparelho que se vai dissolvendo e entregando os seus poderes políticos, que são reabsorvidos pela sociedade de que tinha estado separada e inclusive irreconciliavelmente em confronto

Na Venezuela o estado é tudo, (ou o quase tudo) ao passo que a sociedade é débil. Esta característica histórica construiu desigualdades entre o poder estatal e as massas, introduziu elementos cesaristas e caudilhistas permanentes e deu aspectos autoritários e repressivos ao sistema democrático bipartidário de adecos e copeyanos [N do T.: partidos tradicionais e de direita]. O poder do caudilho só pode surgir da vontade popular, mas para que o mito perdure, essa vontade deve ser entregue ao chefe. Quanto mais se reforça essa autoridade, inclusive se este adopta, como Chávez, medidas progressistas e anti-imperialistas, menos capacidade adquirem as massas para o auto-governo. Chega um ponto em que o governo de um homem, um cesarismo progressista perante o poder imperialista, se torna um travão para o desenvolvimento da polis moderna, do governo democrático das massas. O caudilho não tem controlo nem contrapeso. Os partidos podem ser mediadores das questões presidenciais, mas nunca podem limitar ou controlar, e muito menos recusar, o seu poder.

A consequência da debilidade histórica do que pode denominar-se de “sociedade civil” fez com que as massas tenham intervido em momentos específicos e determinados do processo revolucionário, como no golpe de 2002 ou no lock-out de 2002-2003, mas a grande maioria das iniciativas permanentes de organização e participação de massas foram adoptadas a partir do governo e do estado. As missões, os círculos bolivarianos, os conselhos comunais. Inclusivamente, a formação da UNT (União Nacional dos Trabalhadores) foi apadrinhada desde cima, ainda que a sua formação fosse catalisada pela participação operária na luta contra o lock-out.

Mas existe uma dialéctica de organização-cooptação, baseada na ampliação do espaço de influência partidária, que ao mesmo tempo gera uma tendência dinâmica, autónoma e de auto-governo onde cresceram organismos, e núcleos autónomos em comunidades, no campo e os movimentos indígenas, mas também uma dependência estatal e subordinação política. É um movimento contraditório e um processo vivo que ainda está em desenvolvimento. A co-gestão operária, reduzida a poucas empresas, foi alcançada graças ao protagonismo dos trabalhadores contra o lock-out patronal, e inclusive num momento apoiada pelo governo, mas logo foi travada e desmantelada na PDVSA (petrolífera estatal), ou congelada no sistema de electricidade. Enquanto o estado se arroga a representação dos trabalhadores, alguns deles exigem participar na gestão das empresas.

As denúncias sobre a corrupção do aparelho de estado, a recusa maciça dos “partidos de mudança” oficiais e o boicote de governadores, alcaides ou funcionários às medidas que o povo exige, demonstram até que ponto o aparelho estatal é alheio à população, um agente classista sobre ela, sustentáculo hierárquico de um sistema heterónomo de relações sociais. Não é casual que apenas a figura presidencial seja apelativa e respeitada, sem a qual o processo não avançaria. A relação bonapartista do executivo com as massas expressa a debilidade e não a força do regime, e convida ao desenvolvimento de organizações autónomas da classe trabalhadora, dos camponeses e do povo pobre para desenvolver e facilitar o poder popular e o auto-governo das massas.

A experiência do “socialismo real” no países de Leste deveria ser suficientemente esclarecedora sobre os perigos de alimentar e justificar o burocratismo, o substitucionismo e tomada de decisões de cariz vertical, inclusive daquelas medidas progressistas que se fazem em nome do anti-imperialismo ou do socialismo do século XXI. Seria irónico que pudéssemos extrair conclusões adequadas no Leste, mas fossemos incapazes de manter uma linha socialista consequente e independente na América Latina. A urgência de ficar no lado certo da luta contra o império não deveria ser a desculpa para passar um cheque em branco ao nacionalismo de esquerda venezuelano nem ao socialismo de estado cubano, que com tanto valor e coragem (e a simpatia e o apoio que nos merecem) tem de enfrentar um poder imperialista mil vezes superior. Ao contrário, uma concepção libertária, genuinamente socialista tal como a formulou Lenine em O Estado e a Revolução, para além dos seus pontos débeis, poderia servir mil vezes mais o socialismo, tanto em Cuba como na Venezuela, do que um seguidismo acrítico e uma concepção estatal e burocrática.

Em resumo, trata-se de superar a antinomia entre o autonomismo ou o estatismo burguês. Ao primeiro falta-lhe a projecção política estatal sem a qual é impossível derrotar o imperialismo e caminhar na transição para o socialismo. Esta começa ser a grande lição que pode deixar a experiência de mais de dez anos de luta dos zapatistas no México, que depois de erros fundamentais na sua estratégia autónoma começam a ensaiar alternativas de organização política a nível nacional; ou a do Equador, onde os movimentos indígenas e camponeses entregaram o seu próprio poder aos militares e a políticos cata-ventos, o que significou uma derrota que ainda hoje os movimentos sociais estão a pagar. Ou, finalmente, a experiência da Argentina, onde pareceu que as práticas autónomas e experiências dos moradores dos bairro ou produtivas podiam substituir com êxito a construção de ferramentas políticas anti-capitalistas, ainda que a recomposição do estado e da classe dominante haja reconduzido essas experiências com relativa facilidade e, inclusive, cooptado muitos dos seus membros.

O segundo caso, o estatismo reformista, nega a superação da propriedade privada, a socialização dos meios de produção e a gestão directa e democrática de todos os assuntos públicos por parte das massas, única possibilidade de criar um novo tipo de estado que inaugure o caminho da sociedade comunista. Por isso, os seus partidários deslumbram-se com a mais medida mínima que um qualquer governante de centro-esquerda possa tomar, com a esperança de que ele seja dois ou três milímetros mais à esquerda que Menem, Fernando Henrique Cardoso ou Battle, ou recriam a ilusão de uma mudança “por cima” entre o nacionalismo de esquerda e o socialismo e prestam culto ao poder emancipador do estado.

Há uma terceira variante que é necessário recuperar de acordo com a nova época que vivemos. Trata-se de voltar a situar, como centro de uma estratégia socialista, a transformação revolucionária da sociedade e a transição para um não-estado, assegurada pela extensão de novas relações sociais no interior das sociedades mais desenvolvidas. Nem apoliticismo ingénuo em nome de um falso anti-autoritarismo, nem fetichização do estado capitalista ou burocrático. Há que pensar as vias para uma ruptura radical com o estado capitalista e o poder económico, social e cultural da classe dominante, e as formas de transição estatal mediante a acção consciente e a participação directa das massas, única forma de entender hoje em dia o socialismo.

Notas:
[1] A mundialização das resistências e das lutas contra o neoliberalismo, François Hutart –
www.lahaine.org/index.php?p=12757&more=1&c=1
[2] Que outro mundo é possível, Martins António, 2006
[3] Idem
[4] Fórum Social Mundial: da resistência à luta por um mundo pos-neoliberal ou a intranscendência, Emir Sader, Janeiro/2006.


[*] Argentino, Membro da EDI (Economistas de Izquierda) e da Corriente Praxis, jorgesanmartino4@fibertel.com.ar

O original encontra-se em
http://www.lahaine.org/index.php?blog=3&p=12758&more=1&c=1.
Tradução de José Paulo Gascão.


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09/Mar/06