Direitos humanos
Como os prisioneiros de Guantanamo foram vendidos

por Clive Stafford Smith [*]

. As tentativas do presidente do Paquistão de publicar as suas memórias lançaram luz sobre os enviesados e desonestos processos que os Estados Unidos utilizam para levar "terroristas" à justiça.

. Os líderes mundiais deveriam aproveitar a sugestão dos auto-nomeado presidente do Paquistão, general Pervez Musharraf, e publicar memórias enquanto ainda estão no seu posto. É bom saber o que realmente está em andamento. No mês passado ele foi aos EUA, em parte para encontrar com o presidente Bush e em parte para vender o seu livro In the Line of Fire num programa de TV.

Os extractos publicados mostram que Musharraf contou algumas coisas. Ele descreve como os EUA ameaçaram bombardear o Paquistão imediatamente após os ataques do 11 de Setembro de 2001 se o seu governo não cooperasse na guerra ao terror ("Esteja preparado para retroceder à Idade da Pedra!", exclamou o então vice-secretário de Estado, Richard Armitage). Ele também descobriu o segredo acerca da expedição de centrifugadoras para a Coreia do Norte, e como a dissuasão nuclear do país ainda não estava operacional quando o Paquistão ameaçou a Índia em 1999.

Uma pepita interessante envolve a venda pelo Paquistão de centenas de árabes errantes aos americanos, para expedição à base da força aérea de Bagram e para a Baía de Guantanamo. Muitos dos meus clientes em Cuba insistem em que, longe de serem capturados sobre o campo de batalha no Afeganistão, eles foram agarrados no Paquistão e entregues aos americanos, como escravos em leilão. Bastante previsivelmente, durante cinco anos a administração Bush permaneceu muito quieta sobre esta questão, mas o livro de Musharraf lança nova luz.

"Muitos membros da al-Qaeda fugiram do Afeganistão e atravessaram a fronteira para o Paquistão", escreve ele. "Nós brincámos de gato e rato com eles... Capturámos 689 e entregámos mais de 369 aos Estados Unidos. Ganhámos recompensas (bounties) que totalizaram milhões de dólares. Aqueles que habitualmente nos acusam de 'não fazer o suficiente' na guerra ao terror deveriam simplesmente perguntar à CIA quanto dinheiro em prémios ela pagou ao governo do Paquistão".

Como as suas revelações levaram pessoas a discutir, mais verdades vieram cá para fora. Ao invés de condenar ou negar o programa de prémios, o Departamento da Justiça dos EUA queixou-se acerca de quem havia recebido o resgate: "Não sabíamos acerca disto", disse um responsável da Justiça. "Isto não deveria acontecer. Estes pagamentos de prémios são para indivíduos privados que ajudam a descobrir terroristas na lista dos mais procurados pelo FBI, não governos estrangeiros".

Musharraf recuou, concordando em que o dinheiro fora dado a indivíduos ao invés do governo. Assim, será que isto torna tudo OK?

Os pagamentos ajudam-nos a ver porque tantos prisioneiros inocentes acabaram na Baía de Guantanamo. Musharraf escreve que "milhões" foram pagos pelos 369 prisioneiros — a taxa mínima aparentemente era de US$ 5000, bastante suficiente para tentar um paquistanês pobre a vender um árabe não desejado aos americanos, embalado como prenda com uma estória de que ele estava a tramar algo no Afeganistão.

O valor do dinheiro

No princípio do seu interrogatório, o prisioneiro negaria que tivesse qualquer coisa a ver com o combate, mas, para recuperar o valor do dinheiro gasto, as autoridades americanas punham-se então a trabalhar. Donald Rumsfeld havia autorizado a utilização das suas "técnicas de interrogatório avançadas" ("enhanced interrogation techniques"), e depois de uns poucos dias de "moderado contacto físico não injurioso" ("mild non-injurious physical contact") e de "explorar fobias individuais" (tais como ataques de cães), o prisioneiro inevitavelmente confessaria qualquer coisa que lhe fosse perguntada — geralmente para confirmar a estória fabricada pelo paquistanês caçador de prémios. Os agentes americanos sentiam que estavam apenas a extrair a verdade, e esta "verdade" valia um bilhete aéreo para Cuba, onde a confissão coagida de cada homem também lhe daria a etiqueta de "combatente inimigo" num tribunal militar.

Agora ele já não pode nem mesmo contestar o seu status em tribunal porque a administração Bush acaba de apressar a aprovação de uma lei no Congresso eviscerando o habeas corpus.

Musharraf admite a detenção de mais de 600 suspeitos; fontes americanas sugerem que o verdadeiro número pode ser o dobro. Dados oficiais recentes mostram que apenas 5 por cento dos prisioneiros de Guantanamo foram capturados pelas forças americanas. O resto foi vendido pelo Afeganistão e pelo Paquistão. Mas, com toda a probabilidade, o presidente não está nada preocupado quando ao destino dos dólares dos prémios pois os seus editores, Simon & Schuster, pagaram-lhe confirmadamente um avanço de mais de US$ 1 milhão,.

Uma lição do livro de Musharraf é que o desastroso programa de prémios americanos deveria em si próprio ser submetido "à linha de fogo". Se você for ao mercado e comprar tudo o que brilha, acabará com muito pouco ouro, só com um amontoado de pirites de ferro sem valor.

09/Outubro/2006

[*] Director legal de Reprieve, instituição de beneficência do Reino Unido que combate pelas vidas de pessoas que enfrentam a pena de morte e outros abusos de direitos humanos. Ele representa 36 prisioneiros em Guantanamo. Ele assinará uma coluna mensal em New Statesman. [ http://www.reprieve.org.uk ou contacte Reprieve PO Box 52742, London EC4P 4WS. Tel: 020 7353 4640]

O original encontra-se em http://www.newstatesman.com/200610090029.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
11/Out/06