Uma nova fase na crise de Timor Leste
A fuga em massa da cadeia de Becora de Dili abriu uma nova fase na crise de
Timor Leste.
Em 30 de Agosto, Alfredo Reinado, uma figura chave da rebelião que
deitou abaixo o governo de Alkatiri, escapou pelo portão juntamente com
mais 56 prisioneiros. Até isto acontecer, o pequeno e esgotado
país parecia estar a estabilizar lentamente, depois de um conjunto de
ataques internos e pressões australianas terem derrubado o governo
acossado do primeiro-ministro Mari Alkatiri.
Reinado, que tem três 'X' tatuados na nuca à semelhança da
personagem machista do cinema Xander Cage, apelou a uma revolução
de "poder popular". Este apelo tem naturalmente uma certa
aceitação numa população que enfrenta uma
miséria prolongada, em que grande parte dela continua a viver em campos
de refugiados.
Outro rebelde, Vicente da Conceição, ou "Railos", fugiu
para as montanhas ocidentais uns dias antes para evitar ser preso.
Na mesma altura em que Reinado desapareceu, a multi-cultural TV
[1]
da SBS da Austrália passou um documentário criticando grandes
buracos na história que nos serviram sobre a queda de Alkatiri:
A crise começou com a rebelião das forças de
segurança, seguida por violência de grupos organizados. A causa
profunda foi a pobreza, mas os principais media australianos culparam logo o
primeiro-ministro Alkatiri, cujo verdadeiro crime era ter feito frente a
Canberra nas negociações sobre o petróleo e o gás.
Depois descobriram o "carismático" Reinado. Este chefiou um
grupo armado revoltoso que entrou em confronto com os militares, mas que
afirmou estar a agir em auto defesa.
Depois o programa da TV
Four Corners
acusou Alkatiri de organizar um esquadrão de morte contra os seus
opositores. Railos declarou que tinha sido ele a chefiar este esquadrão
da morte. As acusações condenatórias forçaram
à demissão de Alkatiri, após semanas de resistência.
Agora os jornalistas do
Dateline,
David O'Shea e John Martinkus desmontaram toda esta narrativa. E estes tipos
são credíveis. O'Shea esteve com Reinado nas montanhas quando ele
combateu contra os militares pela primeira vez e depois quando aceitou ser
preso. Martinkus tem feito a cobertura de Timor Leste nos últimos dez
anos.
O'Shea e Martinkus demonstraram que foi Reinado quem atacou primeiro os
militares (O'Shea viu-o) e que Railos, acusado de organizar o esquadrão
de morte para Alkatiri, esteve na verdade a combater ao lado das pessoas que
supostamente devia "matar". Curiosamente Railos deu a volta na tomada
de posse do susbtituto de Alkatiri, Ramos Horta, e tem sido visto em casa do
Presidente Gusmão, outro opositor de Alkatiri.
[2]
A versão estabelecida, cozinhada para legitimar o derrube do
primeiro-ministro, está cheia de buracos.
Em seu lugar começam a aparecer outros padrões. Fazendo parte da
campanha contra Alkatiri, o político da oposição Fernando
Araújo afirmou que a sua família tinha sido ameaçada.
Talvez fosse verdade Timor Leste é hoje um lugar violento e
caótico. O Partido Democrático ajudou a coordenar as
manifestações anti-Alkatiri isto só por si podia
ser apenas a democracia a funcionar, embora com alguma ajuda das tropas
australianas... mas vejam quem foi que também ajudou. Um deles foi Rui
Lopes, que O'Shea e Martinkus dizem que "ficou rico através da sua
estreita ligação com Kopassus, as conhecidas Forças
Especiais Indonésias". Outro foi Nemécio de Carvalho, antigo
líder de uma das piores milícias que aterrorizaram os timorenses
em 1999.
Uma outra força que pressionou a queda de Alkatiri foi a hierarquia da
Igreja, e não foi só a rezar. "Fontes fidedignas no alto
comando do exército disseram à
Dateline
que foram aconselhados pessoalmente por dois padres a expulsar Alkatiri".
Mas há mais:
No final de 2005, o chefe das forças armadas, brigadeiro-general Taur
Matan Ruak, e o tenente-coronel Falur Rate Kaek foram abordados por dois
líderes timorenses acompanhados de dois estrangeiros em duas
ocasiões diversas. Os quatro também pediram ao exército,
ou FFDTL, para derrubar o primeiro-ministro Alkatiri.'
Aqui os testemunhos são pouco claros. Os estrangeiros eram americanos ou
australianos? Ninguém tem a certeza. Alkatiri não pode provar que
houve uma conspiração generalizada contra ele. Diz apenas:
"Não há provas. Mas o único primeiro-ministro do
mundo que na verdade me 'aconselhou', cito, a demitir-me, foi o
primeiro-ministro da Austrália".
Parece que à medida que avançam as investigações
sobre os acontecimentos dos últimos meses, as únicas personagens
que aparecem como culpados são Reinado e Railos. Mário
Carrascalão, outro político da ala direita, queixou-se de que
"Railos sente-se frustrado. Forneceu informações para ajudar
a resolver o problema e agora querem prendê-lo".
[3]
Canberra acabou por obter o que queria quando José Ramos Horta
substituiu Alkatiri. Horta é um paladino do neoliberalismo e dos
investidores estrangeiros: declarou há pouco tempo que "a
Austrália não pode estar sempre a ser filantrópica em tudo
o que faz por Timor Leste". Isto a respeito dos depósitos de
petróleo e gás situados entre os dois países, sobre os
quais a Austrália tem sido totalmente impiedosa nas
negociações.
Mas, a partir da fuga da prisão, de que parece terem uma parte da culpa
supostamente deviam estar a guardar o exterior da cadeia as
forças australianas começaram a sofrer uma pressão
política maior.
Em Julho o antigo ministro do interior Rogério Lobato acusou-as de
infringirem os direitos humanos quando lhe apreenderam carregamentos de
armamento, dizendo que elas tinham utilizado a força e não tinham
nenhum mandato. Em 28 de Agosto, o chefe da academia da polícia de Timor
Leste, Júlio Hornai disse ao jornal
The Age
que os polícias australianos o tinham obrigado a despir a farda em
público. Em 22 de Agosto atiradores de pedras feriram sete
polícias australianos, e no início de Setembro, uma
multidão agrediu polícias australianos após um confronto
de rua. Até a primeira dama pró-australiana, Kirsty Sword
Gusmão, diz que os australianos estão afastados da
população e "têm muito pouco conhecimento local".
[4]
Entretanto, desmoronou-se a tentativa já antiga das Nações
Unidas para encobrir os abusos sexuais feitos pelo seu pessoal civil e à
paisana em Timor Leste. A verdade veio ao de cima.
[5]
Dado o crescente desagrado com a presença estrangeira, dado que a
Fretilin ainda se mantém a organização política
mais forte do país, e dada a fuga de Reinado e Railos para as montanhas
com espingardas e manifestos, com 100 mil pessoas em campos de refugiados,
também se exerce alguma pressão sobre Horta para ser mais do que
um fantoche do imperialismo. Esta pressão tomou forma naquilo que um
importante correspondente sediado em Nova Iorque chamou de "tom agressivo
anti-australiano" e até de "crítica venenosa" na
reacção à fuga da cadeia. Relacionadas com isto, embora de
forma imprecisa, estão as exigências para que as forças
australianas se submetam ao controlo das Nações Unidas.
[6]
O que falta é um significativo movimento político de esquerda que
oriente as raízes do conflito. Sem ele, o descontentamento popular pode
ser canalizado para apoiar Reinado, ou a ala direita, ou grupos perigosos como
os 30 mil fortes grupos de artes marciais que pululam em Timor Leste.
É verdade que para algumas pessoas as coisas estão melhor com
Horta. "Os homens de negócios dizem que agora as
autorizações são emitidas em horas e não em dias,
os contentores movimentam-se mais rapidamente nos portos e a
corrupção parece estar contida".
[7]
O governo está a esforçar-se para ir ao encontro das
necessidades do capital.
Entretanto, 100 mil deslocados continuam a viver em tendas, e está a
chegar a estação chuvosa que vai transformar tudo num verdadeiro
inferno.
Notas
[1] Transcrição da SBS Dateline, "East Timor - Downfall of a
Prime Minister," 30 August 2006. This is the source for everything not
otherwise footnoted. Available at
news.sbs.com.au/dateline/
.
[2] Parece que o gabinete do presidente também pagou a conta de um hotel
a Reinado a primeira vez que ele fugiu. Mark Dodd, "Claim That President
Paid Major's Hotel Bill,"
The Australian,
12 September 2006.
[3] Lindsay Murdoch, "Timor Faces New Rebellion,"
The Age,
2 September 2006.
[4] John Stapleton, "Forces Must Know the People,"
The Australian,
4 September 2006.
[5] Ver Lindsay Murdoch, "UN Acts to Stamp Out Sex Abuse by Staff in East
Timor,"
The Age,
30 August 2006.
[6] David Nason, "Venom Threatens Separate Mission," The Australian, 4
September 2006. Como sugerem as acusações dos abusos, as
Nações Unidas não são obrigatoriamente uma melhoria.
[7] Murdoch, "Timor Faces New Rebellion."
[*]
Tom O'Lincoln é activista de esquerda desde 1967, na SDS
alemã, em UC Berkeley, e durante muitos anos em Melbourne
Austrália. É autor ou editor de cinco livros sobre
história e política australianas
(Into the Mainstream: The
Decline of Australian Communism; Years of Rage: Social Conflicts in the Fraser
Era; United We Stand: Class Struggle in Colonial Australia; Class and Class
Conflict in Australia; e Rebel Women in Australian Working Class History),
e mantém o sítio web Marxist Interventions:
www.anu.edu.au/polsci/marx/interventions/
. Tom é membro da Alternativa Socialista.
O original encontra-se em
http://mrzine.monthlyreview.org/olincoln120906.html
.
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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