O mito do paraíso perdido
por César Benjamin
[*]
"Até mesmo a fraude, para que seja eficaz, tem de trabalhar com a
esperança, perversamente estimulada. (...) A esperança
fraudulenta é uma das maiores malfeitoras da humanidade."
Ernst Bloch, em "O Princípio Esperança".
"Lula sempre compartilhou da intimidade do grupo
e foi o principal beneficiário de suas ações"
Com o descalabro do governo Lula, multiplicam-se as pessoas que relembram,
saudosas, o velho PT e pregam um retorno ao partido que supostamente existia
antes de chegar ao poder. Mais uma vez reaparece a idéia, tão
recorrente, de que houve um estado original, mais ou menos puro, que deve ser
recuperado. Em outros contextos, quem ainda não ouviu histórias
sobre a existência de um homem original, uma sociedade original, uma
língua original? Procura-se agora um partido original. São
conceitos que pertencem ao universo do pensamento mítico. Na vida real,
não há começos absolutos, descontaminados de
decadências posteriores. Não há pontos de partida e de
chegada. Há processos. Os trabalhos etnológicos de Bronislaw
Malinowski [antropólogo inglês nascido na Polônia,
1884-1942] foram decisivos para estabelecer isso.
O caso do PT, por ser tão recente, é ainda mais claro. Os
malfeitos que têm vindo à luz não começaram agora
nem decorrem de um equívoco individual. Representam apenas a
transferência, para a esfera do governo federal, de práticas
iniciadas, com certeza, nos primeiros anos da década de 1990, talvez
antes, e nunca descontinuadas. As impressões digitais do mesmo grupo
aparecem na gestão do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), na
organização das finanças da campanha presidencial de 1994,
na gestão de algumas prefeituras, como a de Santo André, na busca
de controle de fundos de pensão, para citar apenas as
situações mais notórias.
Sobre tudo isso, há anos, correm histórias escabrosas, pois um
esquema tão amplo e longevo nunca permanece completamente
invisível. Ao aceitar conviver com isso, ao mesmo tempo mantendo a
bandeira da ética para consumo externo, o PT ficou exposto à
ação corrosiva da hipocrisia, que o destruiu.
DUENDES
Lula sempre compartilhou da intimidade do grupo e foi o principal
beneficiário de suas ações. Garante, porém, que
nada sabia. Respeito quem acredita nisso, assim como respeito quem acredita em
duendes. Seja como for, pelo número de conexões já
descobertas e de instituições envolvidas, estatais e privadas,
parece claro que estava em curso, em seu governo, a montagem de uma rede de
corrupção poucas vezes igualada.
Uma rede sistêmica, planejada, coletivamente organizada. Dos Correios
à Petrobrás, das empreiteiras com créditos a receber
às verbas de publicidade, do Banco do Brasil aos fundos de
pensão, nada estava, em princípio, fora de seu raio de
ação. Um esquema desse tipo sempre precisa de forte apoio em
altos escalões de governo, que ordenam os pagamentos e fazem as
nomeações. Sílvio Pereira, Delúbio Soares,
Waldomiro Diniz e outros "operadores" nunca tiveram cargos que lhes
permitissem agir sozinhos de forma eficaz.
Novos passos estavam por vir. Depois da reforma sindical, já anunciada,
o grupo poderia dar o grande salto, com a transformação das
centrais sindicais em entidades muito mais centralizadoras, financeiramente
poderosas, aptas a gerenciar bancos, planos de saúde privados e fundos
de pensão. O grupo deixaria para trás a fase de
"acumulação primitiva", baseada no crime, e se
estabeleceria dentro da lei, por meio, principalmente, do sindicalismo de
negócios. O trânsito em direção a uma atividade
empresarial regular, muito rentável, é o sonho de toda
máfia. O predomínio desse projeto ajuda a explicar por que foi
abandonada tão fácil e completamente qualquer veleidade de fazer
um governo republicano e transformador. Os objetivos, há muito tempo,
eram outros.
Estamos diante de um fenômeno novo em nossa história. Ele tem
várias dimensões. Uma delas é a introdução,
na esquerda brasileira, em larga escala, daquilo que Marx chamava, em outro
contexto, o "poder dissolvente do dinheiro". As sociedades antigas,
baseadas na tradição, na hierarquia e na religião,
desconfiavam de banqueiros e de grandes comerciantes e não raro os
reprimiam, porque percebiam que o fortalecimento da esfera do dinheiro
desagregaria tudo o mais. Foi o que finalmente aconteceu no mundo moderno, para
o bem e para o mal, com a completa mercantilização da vida
social. Processo semelhante ocorreu na esquerda brasileira nos 15
últimos anos.
A hegemonia obtida pela Articulação, no PT e na CUT, não
pode ser desassociada do uso sistemático dessa nova e poderosa arma,
até então desconhecida entre nós, a arma do dinheiro. Ela
acabou destruindo sonhos coletivos. Tornou desnecessária a batalha de
idéias. Transformou a militância em um estorvo, diante da
docilidade dos cabos eleitorais remunerados. E terminou por engolir os seus
próprios executores. Seus projetos de origem, que continham alguma
política, também foram dissolvidos pelo mesmo poder.
A rede de cumplicidades que o grupo reuniu em torno de si, com variados graus
de engajamento e responsabilidade, contamina tão profundamente o PT que
uma reforma séria do partido tornou-se inviável. Cumpriu-se minha
profecia, feita da tribuna, cara a cara com os 600 delegados no encontro
nacional de 1995, o último do qual participei: ao aceitarmos
financiamentos de bancos e empreiteiras, feitos à revelia das
instâncias partidárias, estávamos diante do ovo da serpente
que iria nos engolir.
Dessa responsabilidade histórica, muitíssimo grave, Lula
não escapará. Sua liderança corroeu, por dentro, parte
expressiva da esquerda. Não deixará nenhum legado
político, teórico ou moral.
Lula optou pela esquizofrenia: corta todas as verbas dos ministérios,
para fazer o alucinado superávit exigido pelo capital financeiro, e
anuncia que nenhum governo realiza tanto quanto o seu; demite Olívio
Dutra para nomear um protegido de Severino Cavalcanti e diz horas depois que a
elite jamais conseguirá pressioná-lo; seu filho recebe R$ 5
milhões de uma concessionária de serviços públicos,
ele nomeia um advogado da mesma empresa desembargador do tribunal onde ela
enfrenta suas maiores causas e isso não o impede de anunciar-se como o
mais ético dos brasileiros; depois de dois anos e meio na chefia do
governo, continua a atribuir as dificuldades a uma herança maldita que
ele só fez agravar. Abdicou de uma coerência mínima entre o
que faz e o que diz.
Aposta na desinformação do povo e numa
identificação pré-política, irracional, com ele,
porque um dia, há muito tempo, foi pobre. Está se tornando um
"espetáculo excessivo", para usar a expressão de Roland
Barthes, referindo-se às lutas de
catch.
Ao contrário do que normalmente se diz, seu governo é mais
conservador na política que na economia. Lula foi a esperança
fraudulenta a que Ernst Bloch se referia.
PERTO DO FIM
Há mais de dez anos o PT está morrendo, mas esse processo
não podia completar-se antes de o "Lula-lá" se
realizar. A agonia se prolongou e o partido apodreceu. Tornou-se uma
experiência efêmera, e fundamentalmente equivocada, na vida
brasileira. Pretendendo ser o novo absoluto, rompeu a memória das lutas
populares. Recusou a teoria. Fechou os olhos para a diversidade do Brasil.
Afrouxou os princípios, exacerbou a arrogância. Aceitou a
disseminação de um enorme conjunto de antivalores, formando a
mais desqualificada geração de quadros e líderes de toda a
nossa história.
Perdoem-me os inúmeros petistas honestos, mas não é hora
de meias palavras. A imensa maioria deles foi cúmplice da desventura,
pelo menos por omissão.
Felizmente, o ciclo do PT está prestes a se encerrar. O partido
continuará a existir como mais uma legenda pragmática,
destituída de utopia, na qual se disputam eleições e se
constroem carreiras. Só isso. Por mais dolorosa que seja a crise, ela
permite antever o fim do pesadelo de uma esquerda sem fibra, honra e
caráter, incapaz de apresentar à sociedade brasileira um projeto
histórico transformador.
Muitos temem que a direita se fortaleça. Estão certos, mas
só no curto prazo. Paradoxalmente, a crise do governo Lula poderá
vir a ser a crise do neoliberalismo no Brasil, propiciando, finalmente, o
aparecimento de uma proposta real de mudanças, cujo contorno continua
obscuro.
Não creio, porém, que a sociedade aceite passivamente o retorno
dos velhos esquemas, já conhecidos, que afundaram o país no
atoleiro. Ela demandará um projeto novo. Nossa grandeza será
medida pela capacidade que tivermos para construí-lo. De esquerda, de
preferência. Com a esquerda, se possível. Sem a esquerda, se
necessário, pois a crise brasileira é grave demais. Há
muito sofrimento humano em jogo. No que me diz respeito, o compromisso com o
povo e a nação está acima das seitas.
Nossa consigna deve ser, agora, o "motto" do último movimento
do opus 35 de Beethoven:
"Muss es sein? Es muss sein!"
- Deve ser? Deve ser!
[*]
Fundador do PT e dirigente até 1995.
É autor de
"A Opção Brasileira"
e
"Bom Combate"
(ambos pela
Editora Contraponto
) e integra a coordenação nacional do Movimento Consulta Popular.
O original encontra-se na
Folha de S. Paulo
de 05/Agosto/05.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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