por Luís Eduardo Fernandes
[*]
Na primeira década do século XXI, acompanhamos a emergência
de governos populares na América Latina, oriundos de movimentos
populares, partidos de esquerda e centro-esquerda e das resistências
às consequências nefastas do processo de
liberalização financeira capitalista e dos choques
"neoliberais" que tanto massacraram os povos latino americanos.
Trata-se de experiências heterogêneas com diferentes graus de
organização popular, radicalização política,
composição social, conquistas populares e enfrentamento ao
imperialismo, em especial o estadunidense. Se, por um lado, houve uma relativa
melhora nas condições de vida, mesmo que mínima, da
maioria da população, por outro também constatamos que,
mesmo nas experiências mais avançadas, como na Venezuela,
não se produziu uma clara estratégia econômica de
enfrentamento ao poder financeiro do grande capital contemporâneo.
Talvez o caso brasileiro, através dos governos petistas, tenha sido a
experiência "progressista" mais moderada e acomodada aos
ditames da burguesia brasileira e sua associação negociada ao
imperialismo. O presente artigo se propõe a apresentar um pequeno
balanço das relações BrasilEUA durante os governos
petistas. Não pretendemos realizar uma espécie de história
diplomática dos acordos de cooperação e missões
comerciais, mas sim apresentar elementos econômicos e políticos
fundamentais para desenvolvermos a nossa hipótese inicial de que, de
maneira indireta, os interesses estadunidenses também influíram
para o processo de impeachment da presidente Dilma. Portanto, destrincharemos
os seguintes pontos: a) as relações comerciais entre os
respectivos países e a proposta da Alca; b) o chamado
"diálogo estratégico" e a política dos EUA de
contenção à Venezuela bolivariana; c) os acordos
jurídicos, policiais e a "luta contra a
corrupção"; e, finalmente, d) a questão do
pré-sal e da Petrobrás.
As relações comerciais BrasilEUA e o congelamento da Alca
No início da década de 2000, os EUA eram os principais
investidores na economia brasileira. Segundo Moniz Bandeira (2015), seu estoque
de investimentos diretos no Brasil aumentou de 18,9 mil milhões de
dólares em 1994 para 35,6 mil milhões em 2000. Por isso, mesmo
após a "Carta aos Brasileiros", a extrema-direita
norte-americana e parte de Wall Street viam Lula com desconfiança, por
conta do seu passado sindical e vinculado às esquerdas, assim como por
sua proximidade com políticos non gratos em Washington, como Fidel
Castro e Hugo Chávez.
Depois de eleito, o primeiro país a ser visitado por Lula da Silva foram
os EUA. No encontro com Bush, Lula manteve a promessa de não
suspensão do pagamento da dívida externa, manteve as linhas
diretivas da política macroeconômica anterior e defendia uma
política exterior sem enfrentamentos diretos aos EUA. Os diálogos
sobre a Alca, embora já desgastados e contando com diversas
críticas de setores empresariais e populares no Brasil, mantiveram-se
mais por conveniência política do que por interesses comerciais.
As negociações sobre a Alca se arrastavam desde 1994, fazendo
parte de um projeto do EUA de recuperar sua balança comercial negativa
junto à Europa e parte da Ásia através da abertura de
mercados na América Latina. A abertura, contudo, não seria
recíproca: os EUA manteriam tarifas protecionistas para produtos
latino-americanos em seu território. O Brasil, sendo o país com
maior parque industrial latino-americano, maior diversidade econômica e
de parceiros, sofreria sérias consequências caso assinasse o
acordo, ainda mais com a permanência de tarifas elevadas nos EUA em
produtos brasileiros como o suco de laranja, a soja, o algodão e o
aço.
Mesmo durante o período de FHC, no Palácio do Planalto houve
certa resistência à Alca. Essa resistência convertia-se em
alinhamento automático às posições dos EUA em
outros temas, mas de fato o governo Lula habilmente contribuiu para congelar as
negociações da Alca. Apesar disso, esse congelamento não
foi realizado sem tensões internas no Brasil e externas com os EUA.
O confronto entre interesses comerciais de Brasil e EUA, já
intensificados na conferência de Cancun em 2003, tornou inevitável
o colapso da Alca em 2005. Segundo Moniz Bandeira (2015), após intensos
debates, os países do Mercosul, liderados pelo Brasil, apresentaram uma
proposta conjunta, a ser debatida na reunião dos ministros, marcada para
novembro, em Miami. Essa proposta colocava as negociações em
"três trilhos", prevendo a derrubada de barreiras comerciais
para outros países em desenvolvimento em um prazo menor que o que viesse
a ser fixado para Canadá e Estados Unidos e deixando os temas
sensíveis, como normas de proteção a investimentos e
à propriedade intelectual e a abertura de compras negociadas, podendo
ser aceitos separadamente pelos países que o quisessem. O que acarretou
o fracasso da reunião foi, assim, o mesmo tipo de impasse que ocorrera
em Cancun.
Diante do impasse, os EUA procuraram negociar acordos parciais com setores da
economia brasileira, em especial com o agronegócio, a fim de aumentar as
pressões na negociação geral. Não por acaso, na
época, Roberto Rodrigues, ministro da Agricultura, e Luiz Fernando
Furlan, Ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
Exterior, criticaram a intransigência brasileira nas
negociações da Alca.
É notório que a luta contra a Alca não se restringiu aos
salões e conferências diplomáticas. A esquerda
latino-americana, movimentos populares, nacionalistas e setores
democráticos organizaram uma extensa e vigorosa campanha continental
contra a Alca, inclusive com verdadeiras sublevações populares
anti-neoliberais e anti-imperialistas em alguns países como Argentina,
Bolívia, Equador e Venezuela.
Esse é um dado político e social extremamente relevante. As
heterogêneas sublevações populares combinadas com a
eleição de representantes de movimentos, partidos e
líderes de esquerda e centro-esquerda fizeram emergir uma nova
correlação de forças no continente com, no mínimo,
mais independência em relação aos EUA.
No período, os Estados Unidos priorizavam suas ações
internacionais na região da Eurásia e do Oriente Médio. A
"guerra ao terror" tinha poucas implicações diretas na
América Latina. A falta de apoio e a pouca quantidade de aliados na
América Latina fizeram o governo norte-americano recuar do projeto da
Alca, priorizar acordos bilaterais e potencializar o diálogo
estratégico (na verdade, tático) com a maior economia da
América Latina e a experiência menos radical de um governo de
centro-esquerda no continente.
A questão energética
Em outubro de 2003, Oldair Dias Gonçalves, então presidente da
Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), anunciou que o Brasil
estava a converter-se no sétimo país a produzir urânio
enriquecido em escala industrial, com capacidade para suprir 60% das
necessidades de suas centrais nucleares e exportar até 12,5
milhões de dólares ao ano, a partir de 2014.
Segundo Moniz Bandeira (2015), no início do primeiro semestre de 2004,
os EUA intensificaram as pressões para que o Brasil aderisse a um
Protocolo Adicional específico ao acordo de salvaguarda do TNP (Tratado
de não proliferação de armas nucleares), dando aos
inspetores da AIEA maior autoridade para fazer verificações
intrusivas no seu programa nuclear. Esse protocolo adicional, que estava em
negociação desde 1992, seria voluntário, mas a AIEA
pretendeu fazê-lo impositivo e ir além da prática regular.
Exigia também que o Brasil suspendesse todos os programas de
enriquecimento e reprocessamento que já houvesse começado e
permitisse quantas inspeções fossem necessárias em
qualquer parte do território.
Para o historiador brasileiro, esse problema evidenciou o grande erro do
governo de FHC ter assinado o TNC, ao passo que Índia, Israel e
Paquistão não aderiram. Além disso, Moniz Bandeira (2015)
apresenta algumas das razões por detrás desta pressão
norte-americana:
Por trás dessa campanha contra a atitude do governo de Lula da Silva
havia, certamente, o interesse econômico e, igualmente, político e
militar-estratégico. O Brasil, como sexta maior reserva mundial de
urânio e
tecnologia própria, comercialmente competitiva, demonstrou que podia
alcançar a autonomia na produção de combustível
nuclear, fonte de energia da maior importância, ante a perspectiva de
esgotamento das reservas mundiais de petróleo, ainda na primeira metade
do século XXI [
]
O governo brasileiro não assinou o ato adicional, denunciou as
nações pertencentes ao conselho de segurança da ONU,
dentre elas os EUA, por não estarem destruindo parte do seu arsenal
nuclear e, em 2010, mediou o impasse, juntamente com a Turquia, sobre o
programa nuclear iraniano. Mais uma vez, apesar de não confrontar
diretamente os interesses norte-americanos, a maior inserção
internacional de um país emergente como o Brasil tensionava os
interesses estratégicos de manutenção da hegemonia
econômica, política e militar do imperialismo norte-americano.
Um ponto mais convergente entre os países, valorizado conjunturalmente
pelo governo brasileiro, foi o dos acordos relativos ao etanol. Brasil e EUA
são os dois maiores produtores de etanol no mundo e, a partir da visita
de Bush ao país em 2007, os governos firmaram acordos na perspectiva de
uma composição estratégica no setor. No entanto, com a
crise econômica de 2008 e, principalmente, a descoberta do pré-sal
pela Petrobrás secundarizaram, para o governo brasileiro, o enfoque na
produção de etanol.
Anunciada em 2007, a descoberta do pré-sal inseriu de vez o Brasil no
mapa da geopolítica do petróleo, com a perspectiva de colocar o
país como um exportador relevante deste combustível. Até
hoje, desconhece-se o exato potencial desse fenômeno, com estimativas de
que, na camada entre os estados do Espírito Santo e Santa Catarina,
estão cerca de 80 mil milhões de barris de petróleo. Para
Igor Fuser, além da alta produtividade nos poços, o que
também diferencia o pré-sal é o baixo risco
geológico. Em mais de 90% dos poços perfurados verificou-se a
existência de petróleo (FUSER, 2018).
Diante de tal quadro e a emergência de intensas pressões no seio
da sociedade civil brasileira, o governo brasileira opta por adotar um marco
regulatório do pré-sal moderadamente nacionalista, utilizando um
modelo de exploração adaptado de países como Líbia,
Nigéria, Rússia e China. O regime de partilha mantinha a
preferência do Estado e da Petrobrás na exploração,
mas concedia parte da exploração de poços a empresas
estrangeiras. Essa medida não agradou parte das classes dominantes
brasileiras, principalmente as vinculadas ao mercado financeiro, as quais
questionavam a excessiva participação estatal no modelo e
duvidavam da capacidade tecnológica e administrativa da Petrobrás
em poder explorar tamanhas riquezas.
Conforme já apontamos, mais do que uma necessidade interna, o controle
norte-americano de grande parte da produção de petróleo e
outras fontes de energia no mundo é uma peça-chave
estratégica para a garantia de sua hegemonia imperial. A descoberta de
relevantes reservas de petróleo no Brasil e a ascensão de
governos populares de esquerda e centro-esquerda na América Latina
fizeram os EUA acionarem a sua tradicional política de
contenção, reativando a IV Frota. Oficialmente, o governo
norte-americano explicou que a reativação da IV Frota se devia ao
combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas na Colômbia e na
tríplice fronteira. No entanto, segundo Cristina Pecequillo (2012):
A reativação da Quarta Frota é reflexo direto das
descobertas das reservas de petróleo do pré-sal brasileiro e de
gás em Angola. Além disso, corresponde a uma tentativa de exercer
poder militar em uma região de baixa projeção norte
americana, frente às ações da Venezuela, e suas
relações extracontinentais com a Rússia e o Irã. E,
finalmente, é uma busca de reocupação de espaço
geopolítico no hemisfério diante do incremento da presença
da China na América do Sul em busca de matérias primas como
alimentos e recursos energéticos, somada a suas ações de
fortalecimento político de alianças de geometria variável
com o Brasil [
].
Contudo, a política de contenção dos EUA não se
restringiu à arena militar. Tratou-se de um conjunto de ofensivas em
campos diferentes. Ao priorizar ações diretas na Eurásia e
no Oriente Médio e com perda de influência na América
Latina, num primeiro momento, cabia ao imperialismo norte-americano combater e
isolar os polos mais radicalizados e mais antiamericanos do continente, tendo
como vanguarda a Venezuela de Chávez. Nesse sentido, a abertura de
diálogos estratégicos e o reconhecimento do Brasil enquanto
potência regional e líder global, em nossa visão,
também faz parte deste objetivo.
A abertura de diálogos estratégicos com o Brasil e a
contenção à Venezuela
A partir de janeiro de 2005, o início do segundo mandato de George Bush
caracterizava-se por mudanças táticas na agenda da
política externa norte-americana. Apesar de não alterar o
conteúdo estratégico de sua doutrina de "guerra ao
terror", os EUA tentaram retomar o diálogo multilateral e melhorar
a relação com as potências regionais, como os BRICS
(traços na política externa que foram mantidas durante o governo
Obama). Os EUA realizam alguns recuos táticos, como a questão do
programa nuclear indiano, a defesa da entrada do Japão no Conselho de
Segurança da ONU e o apreço pela pretensão global
brasileira.
Segundo diplomatas, ministros e o próprio presidente Lula (Pecequilo,
2012), os diálogos entre as nações amadureceram muito e
entraram em um novo patamar de respeito e parcerias. Os EUA, ao menos
conjunturalmente, apoiavam o papel do Brasil na América do Sul, sua
liderança no Mercosul, a criação da UNASUL e suas
pretensões globais. Mesmo antes de 2005, os EUA foram os grandes
articuladores para que o Brasil fosse o país líder das tropas da
ONU na ocupação militar do Haiti.
Na verdade, o crescimento e a projeção brasileira de suas
políticas sociais e empresas transnacionais freavam a
ampliação de um terceiro polo abertamente anti-imperialista entre
os governos populares, tendo a experiência bolivariana na Venezuela como
vanguarda. Ter o Brasil de Lula como modelo latino-americano seria o exemplo de
que a ordem mundial comportaria a ascensão de lideranças e
partidos operários, desde que estes orquestrassem grandes
negociações nacionais em prol da expansão das
relações capitalistas e não questionassem estrategicamente
o status quo internamente e externamente.
Nesse sentido, apesar da grande proximidade comercial e política, o
Brasil de Lula e a Venezuela de Chávez competiam pela liderança
regional. Uma competição travada não meramente entre
países e interesses comerciais, mas sim uma disputa
político-ideológica de concepções de sociedade e
integração latino-americana.
Essas tensões se manifestaram, principalmente, nas propostas de
organismos multilaterais de ambos os governos. Chávez, num primeiro
momento, apostou suas fichas na ALBA. A ALBA era, inicialmente, uma
"alternativa bolivariana" à proposta da Alca, feita pelos
Estados Unidos. Naquele contexto, em que havia ainda poucos líderes
dispostos a assumir uma postura mais ofensiva frente à potência
hemisférica, a ideia venezuelana teve pouco eco, contando apenas com o
apoio de Cuba. Em 2004, a ALBA ganhou forma como um tratado comercial bilateral
e, após a derrocada da ALCA, em 2005, esse novo arranjo pleiteou o papel
de alternativa às articulações capitalistas. No ano
seguinte tiveram lugar as adesões de Bolívia, Nicarágua,
Dominica, Honduras (até 2010), Equador, São Vicente e Granadinas,
Antígua e Barbuda, Santa Lúcia, São
Cristóvão e Nevis e Granada ao bloco.
Em 2009 ocorre uma mudança no acrônimo ALBA, que deixa de ser
"alternativa bolivariana" para ser chamado de "Aliança
Bolivariana para os Povos de Nossa América Tratado de
Comércio dos Povos". Além do viés comercial que
já estava presente desde o início, a principal
característica desse bloco é o foco na dimensão social e
em projetos de cooperação entre os países nas áreas
de educação, saúde e cultura, por meio dos projetos
grannacionales, garantindo aos seus membros a erradicação do
analfabetismo e outros avanços sociais (ALIANZA BOLIVARIANA PARA LOS
PUEBLOS DE NUESTRA AMÉRICA, 2013).
Outra proposta do governo bolivariano foi o Banco do Sul (BS). Após um
intenso processo de negociação, Bolívia, Equador, Brasil e
Argentina entraram como membros em 2007, ano em que o convite para integrar o
BS foi estendido a todos os países da UNASUL. Envolto em aparente
convergência, na realidade, o projeto do Banco do Sul possuía
significados diferentes para os países, conforme as necessidades de cada
um. Para a Venezuela, o organismo deveria ter a mesma função do
Fundo Monetário Internacional (FMI), agindo como um emprestador de
última instância para os países da região,
porém sem as condicionalidades "maléficas" e com uma
estrutura decisória igualitária. A Bolívia e o Equador
almejavam que a prioridade do banco fosse o desenvolvimento social e a
criação de uma moeda única, uma vez que suas economias
são altamente dolarizadas. Já o Brasil tinha em mente um
organismo similar ao seu Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), ou seja, de
financiador de projetos de infraestrutura e desenvolvimento.
O convênio constitutivo do Banco do Sul foi assinado em 2009 pelos
presidentes de Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai, Uruguai e
Venezuela. Cinco países chancelaram o documento em seus parlamentos, mas
Brasil e Paraguai ainda tramitam sua aprovação. No Brasil, o
convênio do Banco do Sul foi aprovado pela Comissão de
Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados em
2013, mas até 2017 não foi apreciado pelo plenário da casa.
Ou seja, a liderança brasileira na América do Sul sem se
antagonizar à ordem mundial capitalista e à hegemonia dos EUA era
um pouco melhor para os interesses norte-americanos. Nesse sentido, a
política externa petista apostou grande parte das suas fichas na
perspectiva de um diálogo estratégico com os EUA, continuado por
Obama, a fim de expandir a gradual projeção brasileira no
cenário internacional.
Essa aposta se relaciona com a própria política interna petista
que visava viabilizar uma grande conciliação nacional em torno da
expansão da internacionalização do capitalismo brasileiro.
Como já bastante discutido pelo pensamento social brasileiro, o
imperialismo, inclusive estadunidense, não é um fenômeno
externo à formação social brasileira. Ele se associa e se
alia a frações significativas das classes dominantes brasileiras.
Ao depender e se aliar ao agronegócio, à burguesia industrial e
financeira, o petismo naturalmente deveria desenvolver um diálogo mais
ameno, enfrentar os conflitos de interesses comerciais, cumprir os contratos e
os ditames do capital financeiro e realizar concessões às
pressões do imperialismo norte-americano.
O governo Obama, ao menos nos discursos, valorizava ainda mais a
projeção global brasileira. Acordos comerciais e na
cooperação técnica são ampliados, a partir de 2009
a balança comercial entre os países se torna favorável aos
EUA, mas apesar do reconhecimento ao Brasil e demais emergentes esse
reconhecimento é baseado na manutenção da hegemonia
norte-americana. É durante o período do primeiro presidente negro
dos EUA que se ampliam novas formas de intervenção do
imperialismo, como destaca Moniz Bandeira, principalmente através da
desestabilização de regimes contrários aos interesses do
império norte-americano, financiamento de grupos de extrema direita,
incremento da guerra virtual, espionagem e guerra jurídica.
Parece-nos que, no caso brasileiro, sob um discurso de diálogos
estratégicos e reconhecimento da projeção brasileira,
articula-se, conjuntamente com setores das classes dominantes e
frações privilegiadas do Estado brasileiro, uma progressiva
guerra jurídica a fim de reenquadrar o Brasil e a América Latina
à hegemonia norte-americana, radicalizar choques neoliberais na economia
brasileira e abrir mercados para empresas norte-americanas.
A guerra jurídica
Apesar de escrevermos sobre a influência dos EUA no golpe de 2016, seria
um equívoco tratarmos tal influência desarticulada da
própria dinâmica das lutas de classes no Brasil, assim como os
privilégios secularmente existentes no interior do Estado brasileiro
como legado do regime escravista colonial. Obviamente, neste breve artigo
não temos o espaço devido para relacionarmos com a devida
profundidade a ação e interesses do imperialismo norte-americano
com uma análise esmiuçada das frações e disputas no
interior da burguesia brasileira.
Também reconhecemos que as ações que culminaram no golpe
de 2016 tiveram como protagonistas as classes, frações e grupos
sociais internos ao Brasil. Sabemos, porém, que a hegemonia
norte-americana, mais do que a hegemonia de um Estado-nação sobre
os demais, representa a dominação do capital em expansão
globalmente. O golpe de 2016 representou essa inserção do Brasil
numa fase da acumulação capitalista ainda mais espoliativa e
predatória, cujo aprofundamento corresponde à
manutenção, ao menos passageira, da hegemonia norte-americana.
O poder judiciário, no Brasil, é um exemplo do caráter
autocrático do Estado brasileiro. Uma verdadeira caixa-preta cujo
funcionamento dá-se com base em sistemas hierárquicos nos quais
os ocupantes dos postos mais importantes não são eleitos pelo
povo (no máximo, são escolhidos entre seus pares), além do
peso que o sistema judiciário em nosso país representa no consumo
de nossa riqueza. Dados mostram que a Justiça custa ao Brasil 1,3% do
PIB (três vezes o programa Bolsa Família). Comparando-se com
outros países, vê-se o tamanho da diferença, conforme
demonstra o gráfico abaixo. Temos um custo alto para serviços de
pouca qualidade e muito morosos.
Durante os governos Lula e Dilma esses privilégios não foram
enfrentados. Ao contrário, as indicações ao STF,
através de um discurso republicano, primaram pelo burocratismo e pela
conciliação com as estruturas hierárquicas e corporativas
do poder judiciário. Ampliou-se a chamada autonomia do Ministério
Público e concepções vinculadas ao chamado "populismo
penal", militarização da segurança pública e
de guerra às drogas cresceram. Os índices da
população carcerária no Brasil apenas aumentaram e o grau
de autonomia do judiciário era visto como um necessário
avanço "democrático".
O elo de aproximação do poder judiciário, do
Ministério Público e das polícias com
instituições norte-americanas deu-se, principalmente,
através de programas de cooperação no combate ao
tráfico de drogas e de combate à corrupção. Em
2001, Brasil e EUA firmaram um acordo de cooperação
jurídica entre os países para fins de troca de
informações e inteligências, o que possibilitou a
legalização, por exemplo, da atuação livre do FBI e
da CIA em território brasileiro.
Curiosamente, as concepções de "guerra às
drogas" e de "combate à corrupção" emergem
nos anos de 1970, nos Estados Unidos, período, conforme já
relatamos, de reestruturação do capitalismo internacional e do
imperialismo norte-americano. A "guerra contra o narcotráfico"
promovida pelos EUA tem um aspecto econômico, político e militar.
O aspecto econômico busca impedir que surja uma forte burguesia nos
países periféricos apoiada neste grande negócio, já
que isto permitiria o controle de um negócio mundial que alcança
cifras em torno de milhões de milhões de dólares.
Daí sua política de repressão seletiva, que ataca os
pequenos produtores, com a destruição das
plantações de coca na Bolívia, Peru e Colômbia, e os
consumidores, sem atacar os grandes atravessadores que detêm os maiores
lucros no processo, principalmente as máfias americanas e os grandes
bancos, que recolhem o grosso dos lucros do narcotráfico.
Já o combate à corrupção se fortalece com uma lei
norte-americana, aprovada em 1977. A Foreign Corrupt Practices é uma lei
que pune as empresas listadas nas bolsas dos EUA e que tenham se envolvido em
corrupção (propina) no exterior. Trata-se de mais um mecanismo de
possível controle dos EUA na regulação das disputas
inter-imperialistas.
No século XXI, a guerra jurídica e a "luta contra a
corrupção" aparenta já ser o grande elo de
intervenção do imperialismo norte-americano no continente
latino-americano. Um documento lançado em 2016, assinado por 23
acadêmicos norte-americanos na América Latina (dos quais, boa
parcela trabalhou no governo Obama), sustentava que o próximo presidente
dos EUA deveria trabalhar com os governos da América Latina para
estabelecer um painel independente de juristas e autoridades públicas
para coordenar a batalha que os países da região estão
travando contra a corrupção nos setores público e privado.
Os graves problemas econômicos experimentados pelos países da
região, em especial na América do Sul, são apontados como
oportunidade para os EUA. Os Estados Unidos são o primeiro ou o segundo
maior parceiro comercial de praticamente todos os países da
região e, diferente da China, importa bens e serviços mais
sofisticados, de modo geral, segundo o manifesto. Os acadêmicos sustentam
uma política externa dos EUA mais próxima e intervencionista,
fortalecendo a OEA.
Desde a descoberta do pré-sal, a Petrobrás era um alvo direto da
guerra jurídica articulada pelo imperialismo norte-americano e setores
da classe dominante brasileira. No Brasil, a política do governo de
promover o avanço da oligopolização da economia nacional,
mediante relações privilegiadas com o governo, gerava fissuras e
disputas políticas, econômicas e regionais interburguesas.
Já para os EUA, era fundamental abrir mais mercados às
corporações norte-americanas a exploração do
pré-sal e outros setores econômicos no Brasil, na América
Latina e África.
Em 2013, os documentos divulgados por Edward Snowden, ex-analista contratado
pela NSA, comprovam a espionagem da então presidente Dilma, assessores,
ministros e diretores da Petrobrás. A resposta da presidente foi de
denúncia na Assembleia da ONU e cancelamento de sua viagem agendada aos
EUA. Após o pedido formal de desculpas do presidente Obama, Dilma
amenizou o tom das suas críticas. Em 2014, sites nos EUA ofereciam
recompensas para que investidores fizessem denúncias de
corrupção da Petrobrás com base na lei FCPA (Silva
Júnior, 2014).
A questão da corrupção estrutural é endêmica
às disputas entre as grandes corporações, na fase
imperialista do capitalismo. A corrupção é um instrumento
para a reprodução ampliada do capital, porque através dela
maximizam-se lucros, neutralizam-se concorrências e reparte-se parte da
extração de mais-valia com agentes públicos e privados que
viabilizaram esse processo. A edificação de leis internacionais,
tratados e acordos anticorrupção é mais uma peça da
guerra comercial que se intensifica com o declínio econômico do
polo imperialista ocidental e com o crescimento de novos centros capitalistas
regionais.
Em 2011, o governo brasileiro se recusou a assinar um tratado na OMC que
apontava pela necessidade de maior transparência nas
licitações públicas. O acordo era restrito a um pequeno
número de países europeus e os EUA. Parte do objetivo do acordo
era viabilizar a participação competitiva de empresas
norte-americanas e europeias nas licitações de
prestações de serviços na Copa do Mundo de Futebol, em
2014, e nos Jogos Olímpicos, em 2016. O governo brasileiro foi
pressionado e a questão repercutiu na imprensa brasileira (Chade, 2011).
O caldo cultural anticorrupção na sociedade brasileira era
crescente. A conciliação do PT com diversas oligarquias
políticas, com a maioria delas vinculadas ao PMDB, a política de
privilégios com as empresas chamadas de "campeãs
nacionais", a oposição à direita liderada pela grande
mídia tendo como principal diretriz a questão moral e, até
mesmo, um certo oportunismo eleitoral de partidos de esquerda ajudaram a
contribuir para que o diagnóstico quase consensual de que a
corrupção seria o principal problema do país.
A pressão por um aparato legislativo mais punitivo, maior
"independência" do judiciário e do Ministério
Público foram, assim, pautas incorporadas pelos governos petistas e sua
base de sustentação. Desde a primeira década dos anos
2000, setores do judiciário brasileiro e, até mesmo, da
Polícia Federal firmavam parcerias, cursos de capacitação
e troca livre de informações.
Segundo documento divulgado pelo Wikileaks, em 2009, após a boa
receptividade do seminário sobre "crimes financeiros
ilícitos", promovido pelo "Projeto Pontes" (bancado com
recursos dos EUA), cursos de formação em São Paulo e
Curitiba foram solicitados por juízes, promotores e policiais
brasileiros interessados em aprofundar o conhecimento sobre como, por exemplo,
arrancar, de maneira prática, revelações de acusados de
lavagem de dinheiro e outras testemunhas.
Sérgio Moro participou do seminário na condição de
palestrante, em outubro de 2009, expondo, de acordo com o telegrama recebido
pelo governo dos EUA, as "15 questões mais frequentes nos casos de
lavagem de dinheiro nas cortes brasileiras".
Em 2014, o Ministério da Justiça organiza reuniões do
Grupo de Trabalho sobre Suborno Transnacional da Organização para
a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do
Grupo de Trabalho Anticorrupção do G-20. Nestas reuniões,
representantes brasileiros falaram dos esforços de combate a
corrupção no país, dentre estes a Operação
Lava-Jato, e requereram ajuda. Os EUA, por meio do FBI, ampliaram a equipe no
Brasil especializada na lei de combate à corrupção no
exterior (FCPA) a fim de facilitar a troca de informações.
Os impactos da Operação Lava-Jato não se encerram
exclusivamente no Brasil, mas avançam para o resto da América
Latina. Em 2018, além da condenação do ex-presidente Lula,
outros oito ex-presidentes (ou ex-vice-presidentes) latino-americanos foram
condenados ou já estão presos, sendo a maioria lideranças
de centro-esquerda e com relações diretas com a expansão
do capitalismo brasileiro. O curioso é que a guerra jurídica
é revestida de legalidade nacional e internacional e a
cooperação internacional entre Brasil e EUA foi a base legal para
tais intervenções e associações.
Apontamentos conclusivos
O presente artigo procurou sintetizar um balanço das
relações Brasil-EUA, durante os governos Lula e Dilma, a fim de
compreender um possível interesse norte-americano no impeachment de 2016
da presidente Dilma. Acreditamos que conseguimos apontar razões bem
factíveis para isto. O ciclo de expansão do capitalismo
brasileiro, acomodado num pacto social conjuntural, e a projeção
global do Brasil e sua associação com os BRICS eram um entrave
estratégico para a garantia da hegemonia do imperialismo norte-americano.
Não se tratava de um entrave político-ideológico: a
política externa petista não tinha como objetivo questionar a
ordem mundial liderada pelos EUA. Mas procurava reformá-la e aumentar a
competitividade internacional de grandes empresas brasileiras, a fim de
prolongar ainda mais o pacto social entre as classes dentro do país,
conforme tentamos explicar, através da valorização do
salário mínimo, programas sociais de transferência de
renda, manutenção dos contratos e tripé
macroeconômico pró-capital financeiro e investimentos na
formação de transnacionais brasileiras.
Constatamos também que as relações com os EUA, apesar de
conterem algumas tensões comerciais e políticas, a partir de
2005, se notabilizaram por um diálogo mais recorrente, intenso e o que
se convencionou chamar de "estratégico". Os EUA reconheciam o
Brasil como potência regional e liderança global, com o governo
Lula fazendo o contraponto moderado necessário a governos abertamente
anti-imperialistas como o da Venezuela de Chávez.
No entanto, a descoberta do pré-sal e a política de
privilégios dos governos petistas às transnacionais brasileiras
eram elementos que se chocavam com os interesses estratégicos dos EUA na
América Latina. Os Estados Unidos tinham que lidar com o seu
déficit fiscal, comercial e as consequências da crise de 2008 e a
retomada da influência estadunidense na América Latina passa a ser
fundamental para a manutenção de seu projeto imperial.
Nesse sentido, os EUA desenvolvem dois tipos de política no continente.
A mais coercitiva, através de ameaças, bloqueios econômicos
e financiamentos a grupos de extrema-direita e golpistas como na Venezuela. E
uma mais branda, a partir do financiamento de ONGs e grupos de jovens contra a
corrupção, pressões midiáticas e, principalmente, a
guerra jurídica, como foi no Brasil e espalhou-se para a Argentina,
Equador, Peru, El Salvador, dentre outros países.
Obviamente, não concordamos com afirmações taxativas de
que as ações do judiciário brasileiro, em especial a
Operação Lava-Jato, seriam produtos exclusivamente da
ação direta do imperialismo estadunidense. Tais
afirmações, além de serem simplistas, não
compreendem a complexidade da guerra jurídica. Uma guerra,
independentemente de suas características, pressupõe
também a disputa de hegemonia nos âmbitos econômicos,
políticos e culturais. A doutrina de guerra jurídica orquestrada
pelos interesses imperialistas articula-se com importantes aliados entre as
classes dominantes brasileiras, burocracia estatal e grande mídia. E,
é claro, sendo determinante a luta de classes no país. Grandes
eventos e transformações não ocorrem somente por meio de
grandes conspirações, mas fruto da ação direta ou
consentida das massas.
As
manifestações em 2013
, no Brasil, revelaram uma enorme explosão social. Foram os primeiros
grandes protestos sociais na história recente do país que
passaram longe de qualquer influência petista. A pauta política e
cultural da hegemonia imperialista para a América Latina acabou por ser
predominante na síntese política das manifestações,
como a luta contra a corrupção e ineficiência dos
serviços públicos. No entanto, as manifestações
também revelaram o início do esgotamento do modelo
econômico e político petista e a insatisfação das
massas urbanas. Posteriormente, a resposta do governo Dilma foi a
inflexão neoliberal e antipopular nos rumos do governo.
Nesse sentido, nesse breve artigo ensaístico (que pretendemos
aprofundar), podemos afirmar que os interesses dos EUA não são
estranhos a setores da classe dominante brasileira. Após 2016, o
enfraquecimento de transnacionais brasileiras abriu mercado para empresas
norte-americanas e seus sócios minoritários brasileiros. Segundo
Brier Mier (2018), a Boeing está prestes a tomar o controle
acionário da
Embraer
, conglomerado aeroespacial de capital misto, terceiro maior fabricante de
aviões do mundo. Após um encontro com diretores da Monsanto em
fevereiro de 2018, a administração Temer anunciou planos de
legalizar o uso do pesticida Glifosato, da Monsanto, que fora recentemente
proibido na Europa. Logo após leiloar oito campos de petróleo
offshore para corporações petroleiras internacionais como Chevron
e Shell em outubro de 2017, Michel Temer providenciou um decreto presidencial
com cerca de R$1 milhão de milhões em
abatimento de impostos para companhias petrolíferas
estrangeiras atuantes no Brasil. Microsoft, Monsanto, Boeing, Chevron e Shell,
todas se beneficiaram da mudança de governo no Brasil.
Mais do que uma mera troca de governos, disputas entre oligarquias
políticas e frações da burguesia brasileira, nos parece
que desvendarmos o real significado do golpe de 2016 requer compreendermos as
novas dinâmicas da acumulação capitalista pós-crise
de 2008 e as disputas inter-imperialistas.
Não por acaso, após 2008, a combinação de crises
econômicas e políticas estourou no Oriente Médio,
Ucrânia e países emergentes, como Turquia, Rússia e Brasil.
Grandes manifestações de massa tomaram as ruas, sem
lideranças e organizados por redes sociais.
Obviamente, a insatisfação social das classes populares e classes
médias urbanas nesses países é um fenômeno que se
relaciona com a própria dinâmica das lutas de classes locais. Ao
nos depararmos, porém, com as resultantes que estes protestos sociais
tiveram (a ascensão fascista na Ucrânia, o crescimento da
influência de grupos fundamentalistas mulçumanos no poder no
Oriente Médio e o fortalecimento de organizações
terroristas como o Estado Islâmico, a guerra civil na Síria, as
sanções econômicas à Rússia, o cerco
às liberdades democráticas na Turquia e o golpe jurídico
parlamentar no Brasil) percebemos que as mudanças ocorridas, se
não totalmente favoráveis aos interesses dos EUA, ao menos
enfraqueceram possíveis inimigos e adversários de seus interesses.
07/Maio/2015
[*]
Membro do comitê central do PCB e doutorando em serviço social UFRJ
Ver também:
Lawfare
Moniz Bandeira: "Moro e Janot atuam com os Estados Unidos contra o Brasil"
O original encontra-se em
pcb.org.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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