Reforma genocida da Segurança Social no campo
por Henrique Júdice Magalhães
[*]
Da impostura ao genocídio
"Não somos meio homem para receber meio salário
mínimo".
Com esta consigna, os movimentos camponeses, apoiados pelo conjunto das
forças democráticas, arrancaram da Assembléia Constituinte
de 1987-88 a equiparação do direito previdenciário do
campo ao da cidade.
Vigorava antes o iníquo regime estabelecido durante a fase de
gerenciamento militar: os pequenos proprietários, parceiros e
arrendatários recebiam, a título de aposentadoria, a metade do
valor oficialmente reconhecido como bastante à satisfação
das "necessidades normais de alimentação,
habitação, vestuário, higiene e transporte" (conceito
legal do salário mínimo
[1]
.
E se o camponês era considerado meio homem, a camponesa, aos olhos da
lei, nem meia mulher era. Apenas o "chefe da família"
conceito mecanicamente transposto do meio urbano para o rural, onde as mulheres
sempre realizaram trabalho produtivo, tanto quanto os homens tinha
direito a aposentar-se, e somente aos 65 anos ou em caso de invalidez
permanente.
Além de determinar que nenhuma aposentadoria pode ser menor que o
salário mínimo, a Constituição assegurou aos
trabalhadores rurais os mesmos benefícios pagos aos urbanos. Às
mulheres, reconheceu os mesmos direitos dos homens. Em
consideração às duras condições do trabalho
na lavoura, reduziu para 60 anos (homem) e 55 (mulher) a idade de
aposentadoria. E aos que haviam migrado para a cidade trajetória
de metade da população brasileira nos trinta anos anteriores
, garantiu o cômputo do tempo de agricultura na hora de se
aposentar.
Mais cruéis que Médici
Agora, os trabalhadores e trabalhadoras rurais precisarão reerguer as
bandeiras da constituinte. Além de eliminar o piso vinculado e ampliar
para 67 anos a idade de aposentadoria, o projeto do mercado de capitais
substitui o recolhimento sobre o resultado da venda de produtos pela
exigência de pagamento mensal de carnê, nos mesmos moldes dos
contribuintes individuais urbanos.
Acontece que os ganhos dos pequenos agricultores que trabalham em regime
familiar são vinculados à safra e parte significativa de sua
renda não é monetária. Com a mudança proposta na
forma de contribuição, 77%
[2]
deles seriam expulsos do sistema previdenciário. Sabendo disso e
prevendo uma corrida em massa à Assistência Social
já hoje tábua de salvação para muitos em
razão da dificuldade de provar com documentos o trabalho na lavoura
, o lobby patronal propõe reduzir de um para meio salário
mínimo o valor dos amparos pagos por ela.
Como o critério para a concessão de benefícios
assistenciais é a renda familiar
per capita,
é muito difícil que mais de uma pessoa na mesma casa possa
recebê-los, já que um amparo quase sempre é suficiente para
elevá-la além do limite para a concessão de outro. Assim,
o projeto só não é uma cópia do Funrural
instituído em 1971, no período Médici porque: 1) a
idade de acesso à Assistência sobe de 65 anos para 70; 2) os
benefícios assistenciais não funcionam como sucedâneo
completo da aposentadoria, já que não revertem em pensão
para a família após a morte de quem os recebe; 3) o sistema da
regime militar era mais coerente: a exemplo do que está sendo proposto,
não abrangia auxílio-doença, salário-maternidade
nem qualquer cobertura em caso de acidente de trabalho, mas garantia o
auxílio-funeral. Matava o camponês de fome, mas pagava-lhe o
enterro.
Distorção conceitual
Os trabalhadores e trabalhadoras do campo são o principal alvo da
campanha contra a Seguridade Social
[NR]
inclusive por parte de quem simula defendê-la.
Desde seu discurso de posse, no dia 29 de março, o ministro da
Previdência, Luiz Marinho, repete que é necessário retirar
da contabilidade do INSS o que se gasta com "política social"
referindo-se aos benefícios rurais. Aparentemente, é uma
resposta aos que dizem que a Previdência é inviável. Na
realidade, trata-se de uma rendição à falácia que
atribui caráter assistencial às aposentadorias do campo.
Essa tese baseada na desnecessidade de comprovação de
contribuições para a obtenção de benefícios
rurais presta-se a facilitar o desatrelamento entre os proventos pagos
no campo e o salário mínimo, já que a
Constituição vincula apenas os benefícios
previdenciários.
Trata-se de uma distorção grosseira. Primeiro, os trabalhadores
rurais contribuem para a Previdência. Segundo, a lei tampouco exige do
empregado urbano comprovação de recolhimentos na hora da
aposentadoria, e pelo mesmo motivo: no caso do camponês, o
responsável pelo repasse ao INSS do valor descontado é quase
sempre o comprador do produto; no do trabalhador da cidade, é o
patrão. Por último e mais importante , o que
caracteriza os benefícios rurais como previdenciários é o
fato de representarem retribuição ao trabalho e à
geração de riqueza.
Manipulação contábil
Ao modificar a forma de cálculo do resultado do INSS, no início
deste ano, o Ministério da Previdência e Assistência Social,
ainda na gestão Nelson Machado, separou a arrecadação e os
gastos urbanos dos rurais. O resultado computadas as renúncias de
responsabilidade do Tesouro Nacional foi um déficit (2006) de 3,8
mil milhões na cidade e 18,3 mil milhões no campo, números
que embasaram a defesa da viabilidade da Previdência
urbana
pelo ministério.
Acontece que esta separação não tem fundamento. Primeiro,
não existem regimes previdenciários distintos no campo e na
cidade, mas o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que abrange
trabalhadores urbanos e rurais. Segundo, o dinheiro da Previdência
é vinculado na entrada, mas, não na saída: não
está escrito em lugar algum que os recursos arrecadados na cidade
destinam-se a pagar benefícios urbanos e os arrecadados no campo, a
pagar benefícios rurais. Isto seria tão absurdo quanto dizer que
a contribuição do trabalhador homem não deveria custear
salário-maternidade, ou que pessoas solteiras não deveriam
contribuir para o pagamento de pensões. Ademais, a sociedade brasileira
é marcada por um imenso e recente êxodo rural. Não
há camponês em idade de aposentar-se que não tenha filhos
trabalhando e descontando para o INSS na cidade. Nem mesmo na lógica da
segmentação há sentido, portanto, em ver problema no
custeio de benefícios rurais por contribuições urbanas.
Como se não bastasse, o MPAS, a exemplo do que faz na cidade, não
inclui na receita rural a arrecadação da Cofins, CPMF e CSLL
pagas pela agroindústria quase suficiente para cobrir os gastos
do INSS no campo, segundo estimativa
[3]
dos economistas Guilherme Delgado, do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), e Jorge Abrahão de Castro, da UnB. Excluídos
estes tributos, a contribuição dos monopólios
agroindustriais ao custeio da Previdência é de 2,6% do que
comercializam. A do latifundiário tradicional, 2,1% igual
à dos trabalhadores em regime familiar. Os empregados rurais contribuem
de forma idêntica a seus congêneres urbanos; seus patrões,
como se fossem pequenos camponeses. O resultado só pode ser um:
déficit.
Quem sustenta quem
Seria um erro, contudo, concluir daí que a economia camponesa é
financiada por sua contraparte urbana. É na expropriação
permanente do pequeno camponês que se assenta o sistema de poder
semicolonial vigente no Brasil. Nos preços aviltantes pagos por seus
produtos e no roubo de suas terras por meio do endividamento, assentou-se o
desenvolvimento do capitalismo em nosso país no século XX.
"Dentro da dinâmica de desenvolvimento econômico do
País, nas últimas décadas, o setor rural é
subordinado ao urbano, cabendo-lhe
financiar investimentos, com transferência de recursos do setor
agrário ao industrial" escreve a professora Anita Brumer, do
departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
[4]
.
Existem algumas histórias exemplares neste sentido. Uma delas é a
da substituição, em vastas áreas do sul do país, do
feijão consumido no mercado interno pela soja
cultura de exportação praticamente imposta pela regime
militar nos anos 70 para gerar saldos em dólar e financiar a
indústria monopolista estrangeira, notadamente a automobilística.
Esta troca foi a causa da ruína de milhares de famílias
camponesas, que passaram a depender das oscilações do mercado
externo além de dedicar-se a um cultivo que esgota o solo muito
mais facilmente, terminando por expulsá-las do campo. Ainda hoje,
é a esses meios que o setor bancário e o capital estrangeiro
monopolista recorrem para gerar divisas em dólares que lhes permitam
repatriar lucros.
O déficit rural da Previdência seja qual for sua magnitude
é, antes de tudo, resultado da superexploração que
vitima o camponês. Se os jovens são obrigados a migrar para a
cidade, não haverá no campo braços que produzam o
suficiente para custear as aposentadorias e pensões dos velhos que
ficam. Se os preços dos produtos agrícolas são
irrisórios, irrisória será a arrecadação
sobre sua venda do mesmo modo, aliás, que, na cidade, a
redução do emprego formal diminui a arrecadação
sobre a folha de salários. As contas do INSS retratam a realidade da
economia.
Salvação da lavoura
A Assembléia Constituinte de 87-88 é diariamente acusada por
propagandistas da reforma como os economistas Fábio Giambiagi e Raul
Velloso e pela imprensa que lhes faz eco de ampliar esse déficit, quando
o que fez foi estabelecer a mais relevante contrapartida à sangria que
ele reflete.
Ao garantir aumentando a aposentadoria do homem de meio para um
salário mínimo e assegurando outra de igual valor à
mulher, que antes não recebia nada uma renda quatro vezes maior a
milhões de famílas camponesas e obrigar o Estado a arcar com a
diferença entre o valor desse gasto e a arrecadação rural,
a Constituição criou um mecanismo de transferência de
recursos dos ricos para os pobres e pela primeira vez no Brasil
da cidade para o campo.
Essas minguadas rendas representam, quase sempre, a diferença entre a
pobreza e a ruína não apenas para as famílias que
as recebem, mas também para os municípios onde vivem. Cruzando
dados do próprio governo
[5]
, o auditor-fiscal do INSS Álvaro Sólon de França mostra
como isto ocorre. Em 2003, a soma transferida pelo governo federal via
pagamentos do INSS superou o repasse de verbas pelo Fundo de
Participação dos Municípios (FPM) em 67,85% dos
municípios do país. Isto significa que são as
aposentadorias e pensões dos trabalhadores do campo que sustentam a
economia do interior. Se forem cortadas, essas cidades quebram.
A sanha dos monopólios
Exatamente por isso, a Previdência tornou-se um entrave às
ambições de expansão do setor financeiro sobre a
agricultura expressas na última reunião do Plano Diretor
do Mercado de Capitais, realizada na Bovespa em 23 de abril. Se os ataques ao
piso vinculado obedecem a um amplo leque de razões relacionadas
principalmente aos custos de transição da reforma , eles
possuem também um alvo certo: 7 milhões (99%
[6]
) de aposentados e pensionistas rurais que recebem benefícios
mínimos e suas respectivas famílias, perfazendo, aproximadamente,
18 milhões de camponeses. Exatamente o número de condenados, nas
projeções de intelectuais orgânicos dos monopólios
agroindustriais, a sair do campo nas próximas décadas, segundo o
professor José Eli da Veiga, do departamento de Economia da USP.
A Previdência é, hoje, peça-chave da questão
agrário-camponesa. Se a aposentadoria rural vinculada surgiu de um
anseio elementar de justiça, seus efeitos projetam-se muito além.
Os R$ 760 [292] que ela garante a um casal de idosos no campo têm
efeito de
subsídio, impedindo que eles sejam obrigados a abandonar a terra e
desonerando seus filhos, que passam a ter mais capital livre. Na
avaliação de Guilherme Delgado e José Celso Cardoso Jr.,
[7]
do IPEA, a renda previdenciária é o principal fator que
possibilita a reprodução da agricultura camponesa. Neste quadro,
a disputa em torno da Previdência rural expressa a
contradição entre o campesinato e o latifúndio
financeirizado ou agronegócio.
Se a extensão dos direitos previdenciários ao campo já era
disfuncional para um sistema alicerçado na extorsão sobre a
economia camponesa, seus efeitos tornam-se intragáveis num momento em
que o imperialismo acalenta o projeto de reservar o território
brasileiro à produção de agrocombustíveis. Ao mesmo
tempo, os monopólios estrangeiros da indústria e serviços
precisam dos dólares da agroexportação para repatriar
lucros. Em âmbito internacional, desde a conferência de 2001 da
Organização Mundial de Comércio, "a moderna
agricultura capitalista está agora empenhada num ataque maciço
à produção camponesa do terceiro mundo"
[8]
, como escreve Samir Amin.
É a aliança entre o setor financeiro e a agroindústria
monopolista que conduz os ataques à Seguridade Social no campo. Para
atingir seus objetivos, não têm nenhum escrúpulo em
promover o genocídio da população camponesa, que querem
depojar de seus meios de sobrevivência, expulsar da terra e deixar sem
renda nem patrimônio, reservando a uns poucos a perspectiva de cortar
cana para o
agribusiness
e ao restante a devastação pela fome.
Notas
(1) CLT, art. 76. Este conceito também viria a ser ampliado pela
Constituição de 88.
(2) Dados do Movimento de Mulheres Camponesas.
(3)
Financiamento da Previdência Rural : Situação Atual e
Mudanças.
Brasília, IPEA, outubro/2003.
(4)
Previdência Social Rural e Gênero.
Revista
Sociologias,
n. 7, Porto Alegre, jan-jul 2002.
(5)
A Previdência Social e a Economia dos Municípios.
Brasília, Associação Nacional dos Auditores Fiscais da
Previdência Social (Anfip), 2004.
(6) MPAS, outubro de 2006. Na cidade, a proporção é de
44,5%.
(7)
O Idoso e a Previdência Rural no Brasil : a Experiência Recente da
Universalização.
Brasília, IPEA, 1999.
(8)
Pobreza mundial, pauperização & acumulação de
capital.
Monthly Review, outubro de 2003, tradução em
http://resistir.info/samir/pobreza_mundial.html
.
[NR] Segurança Social. Muita gente no Brasil utiliza a
expressão castelhanizada "Seguridade" e ela consta na sua
Constituição.
[*]
Jornalista, ex-servidor do INSS e pesquisador independente em seguridade
social,
Porto Alegre/RS Brasil,
henriquejm@gmail.com
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|