A tragédia da social-democracia retardatária no Brasil
por Edmilson Costa
[*]
E agora, José?
A festa acabou
a luz apagou
a noite esfriou
o povo sumiu
E agora, José?
Carlos Drumond de Andrade
A crise que o País e, especialmente, o Partido dos Trabalhadores,
vem enfrentando enseja um debate aprofundado sobre o papel da esquerda
no século XX e nestes primeiros anos do século XXI. Se não
avaliarmos as raízes mais profundas da crise, não poderemos
compreendê-la em sua plenitude e, muito menos, tirar as
lições necessárias para uma retomada da luta social e da
esquerda classista como referência revolucionária no Brasil. Em
linhas gerais, a esquerda foi protagonista de três grandes momentos
importantes da história do País:
O primeiro deles teve como atores principais os anarquistas, especialmente os
imigrantes italianos, espanhóis e portugueses que vieram ao País
no processo de transição entre a economia agro-exportadora e o
início do processo industrial. Estes valorosos militantes propagandearam
e desenvolveram a luta de classes, buscaram organizar os trabalhadores e
chegaram a realizar uma greve geral em 1917, com relativo êxito
[1]
. Mas, a partir de 1922, com a formação do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), a influência dos anarquistas foi decrescendo,
até mesmo porque muitos dos dirigentes anarquistas ajudaram a formar o
Partidão.
A nova fase que se abre a partir de 1922 será caracterizada por uma
hegemonia do PCB nos movimentos sociais, políticos e culturais do
País, de modo que as outras organizações de esquerda,
comparadas à influência dos comunistas, podem ser consideradas
apenas residuais
[2]
, muito embora esse partido tenha se caracterizado ao longo de sua
história por uma política de alianças com todas as
forças progressistas.
Um dos aspectos singulares da trajetória do PCB, entre 1922 e 1975,
começo de seu declínio político, foi a
perseguição implacável das classes dominantes, tanto que
esse partido viveu praticamente na clandestinidade durante toda a sua
existência. Somente nos primeiros meses de fundação e,
entre 1945 e 1947, pode desfrutar da legalidade política o resto
dos anos foram consumidos numa dura e tenaz luta clandestina ao todo
foram 60 anos de clandestinidade. Se levarmos em conta que o PCB só
conquistou a legalidade em 1986, poderemos dizer que esta foi uma das
organizações revolucionárias com maior tempo de
clandestinidade na história do movimento revolucionário mundial.
Mas a repressão de 1974-75 (aliada à condução
política equivocada do então Comitê Central desde o
exílio, e mesmo após seu retorno, com a anistia em 1979)
levaram o PCB a perder a influência no movimento social, permitindo assim
o surgimento de uma nova geração de líderes
operários, nascidos das lutas espontâneas de 1978-80, que
posteriormente formariam o Partido dos Trabalhadores, organização
que passaria a hegemonizar a luta social no Brasil por cerca de 25 anos.
O terceiro momento da esquerda brasileira começa com as lutas
operárias em São Bernardo do Campo, que posteriormente se
espalham pelo Brasil à fora, e se condensam politicamente com a
formação do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980, e da Central
Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983. Essas lideranças e as
lutas que desenvolveram deram aportes fundamentais para o enfraquecimento da
ditadura militar e colocaram em movimento dezenas de milhares de lutadores
sociais e políticos no País.
O PT se apresentava como uma organização renovada, distante dos
métodos de organização dos comunistas, e com uma postura
política aparentemente radical, à esquerda do PCB, ao mesmo tempo
em que estrategicamente colocava o socialismo como referência
programática, muito embora não explicitasse muito bem qual era
exatamente o socialismo que queria, até mesmo porque nos primeiros anos
de fundação a disputa pela hegemonia no PT era muito grande e
tornava-se quase impossível chegar-se a um consenso em meio a uma
colméia de tendências partidárias.
Portanto, a crise atual do Partido dos Trabalhadores marca o fim de uma era
iniciada com as greves de São Bernardo. Qualquer desfecho que esta crise
venha a ter, o PT não será mais o mesmo e nem terá mais a
influência que teve junto aos movimento sociais. Poderá sobreviver
até como uma organização tipicamente eleitoral, mas sem a
aura que o norteou desde sua fundação.
Como sempre ocorre nos processos históricos, o movimento social
não vai ficar esperando que o PT cure suas feridas, assim como
não esperou que os anarquistas repensassem a estratégia para um
Brasil transitando da fase agrária para a industrial e também
não aguardou que o PCB refletisse melhor sobre o País na
década de 70 e retificasse sua linha política. A história
cobra um preço muito alto aos erros dos atores políticos e tanto
o PT quanto seus aliados à esquerda, que amarraram seu destino ao
destino do governo Lula, irão perder a influência política
conquistado em passado recente.
No bojo dessa crise em curso, os trabalhadores saberão criar novas
organizações sociais políticas para defender os seus
interesses históricos e é exatamente esse o calcanhar de Aquiles
da conjuntura que se desenha a partir de agora. A organização
revolucionária que sintetizar teoricamente esse momento político,
construir um projeto de País, inclusive compreendendo os novos
fenômenos oriundos da globalização e dele tirando
lições, será a nova porta-voz dos interesses dos
trabalhadores.
ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Pode-se dizer claramente que, de 1922 até 1975, quando a grande maioria
dos militantes comunistas foram presos na
Operação Jacarta
, o Partido Comunista Brasileiro foi a força hegemônica da
esquerda nacional, não apenas na arena política mas,
principalmente, nos movimentos sociais e culturais. Comandou os principais
batalhas da luta de classes da história do proletariado brasileiro do
período, sofreu duras derrotas e obteve conquistas históricas, a
grande maioria ainda hoje presente na sociedade brasileira. Como diria o poeta
Ferreira Goulart, um antigo militante comunista, quem contar a história
do Brasil e de seus heróis e não falar do PCB estará
falseando a história.
Neste mais meio século de lutas, praticamente todas as conquistas dos
trabalhadores foram influenciadas pela luta dos comunistas e muitas vezes seus
militantes pagaram com a vida a ousadia de lutar contra o sistema capitalista.
Se fizermos uma trajetória sumária poderemos dizer que já
na década de 20 o PCB estava na vanguarda da luta pela
industrialização do País, fato que se tornou realidade com
a revolução de 1930.
A própria década de 30 vai encontrar um Partido Comunista
influenciando a luta pela legalização dos sindicatos, pela
conquista da jornada de oito horas e do descanso semanal remunerado, as
férias de 30 dias, salário mínimo, e um conjunto de
direitos posteriormente sistematizados na Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT). Ressalte-se que muitas dessas bandeiras de luta já
eram reivindicadas por socialistas e anarquistas no período anterior ao
surgimento do PCB, mas só se concretizaram após a luta organizada
do PCB.
[3]
Muitos argumentam que estas conquistas foram uma dádiva de
Getúlio Vargas, mas isso não corresponde à verdade, pois
Vargas apenas chancelou velhas reivindicações dos trabalhadores,
de forma a que não fosse ultrapassado pelo movimento de massas.
A criação da primeira central sindical do País - a
Confederação Geral do Trabalho do Brasil, em 1929, foi um
esforço do PCB, da mesma forma que também foi o incentivador da
criação da segunda grande central dos trabalhadores - o Comando
Geral dos Trabalhadores o histórico CGT, junto com seus aliados
do antigo PTB, na época um partido progressista. Na luta pelas
reformas de base,
com João Goulart na Presidência, lá estava novamente o
PCB na linha de frente pelas transformações do País. Nesse
período, os trabalhadores alcançaram uma de suas maiores
conquistas, o 13º salário, fruto de uma greve geral comandada pelo CGT,
cuja maioria era
formada por dirigentes sindicais comunistas
[4]
.
Se avaliarmos ainda por outro ângulo, o da cultura, o PCB também
tem uma trajetória bastante expressiva na frente cultural. Muitos dos
fundadores da Semana da Arte Moderna foram militantes do PCB, como e Osvald de
Andrade, Patrícia Galvão, a Pagu, para falar dos mais conhecidos.
Na pintura contou com os traços marcantes de Cândido Portinari e
na música com militantes dedicados como Nora Ney, Jorge Goulart ou
compositores como Paulo da Portela e Mario Lago. Na literatura, também
foram militantes do PCB Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rui Facó, Eneida,
entre outros grandes nomes da literatura. O PCB também foi um dos
grandes incentivadores do CPC da UNE, um dos maiores movimentos culturais do
País, que revelou grandes nomes da música, literatura, teatro,
entre outros.
Mas recentemente, podemos dizer que a dramaturgia brasileira e, mesmo a
teledramaturgia, foi profundamente influenciada pelos autores comunistas, tais
como Vianinha, Paulo Pontes, Dias Gomes e Gianfrancesco Guarnieri.
Também no cinema foram militantes do PCB João Batista de Andrade
e Leon Hirzmann. Todo esse patrimônio de lutas, conquistas e
formação da cultura brasileira representaram um patrimônio
não apenas do PCB, mas de toda a população brasileira
[5]
.
Mas em 1974-75, como já constatamos, o PCB sofreu uma ofensiva terrorista
da ditadura militar: milhares de comunistas foram presos ou torturados neste
período e o DOI-CODI matou na tortura um terço do Comitê
Central (CC), o que fez com que o restante CC fosse obrigado a se exilar.
Quando as lutas populares emergiram em 1978, com a greve da Scania, o PCB
estava na cadeia e sua direção no exterior. A militância
que foi solta estava vigiada e os novos militantes não tinham a
experiência suficiente para compreender aquele momento político,
nem força política para dar uma direção
revolucionária ao Partido, até mesmo porque, desde o exterior, a
direção trabalhava em outra perspectiva
[6]
.
A ditadura militar foi científica na luta contra o PCB: diante do
chamado processo de abertura
lenta, segura e gradual
que o regime buscava implementar era necessário liquidar o
Partidão a qualquer preço, nem que para isso se utilizasse
métodos semelhantes aos dos nazistas. O ódio do regime militar ao
Partidão era explicado por duas circunstâncias básicas:
Primeiro,
porque naquele período (1974-75) o Partido era a única
organização que estava ainda praticamente intacta no País
e, portanto, era também a única que podia desenvolver um combate
efetivo contra a ditadura, até porque sua linha política de
reunir amplas forças patrióticas e democráticas na luta
contra a ditadura tinha sido vitoriosa: o PCB teve papel importante na
organização do então Movimento Democrático
Brasileiro (MDB) e na vitória eleitoral de 1974, quando a ditadura foi
derrotada para o Senado em 16 Estados. Ou seja, a palavra de ordem de acumular
forças no movimento de massas para desgastar e, posteriormente, golpear
a ditadura estava se mostrando correta.
Segundo,
porque a repressão matou exatamente os quadros do Comitê Central
com maior clareza da situação do País, justamente aqueles
mais comprometidos com uma política de classe. Portanto, era
questão de sobrevivência política da ditadura militar a
destruição do PCB daí a ferocidade repressiva, onde
esses companheiros do Comitê Central não apenas foram mortos, mas
esquartejados e os corpos escondidos para que o povo nunca reverenciasse sua
memória. Foi um verdadeiro massacre: matou-se desde o presidente da
União da Juventude Comunista (UJC), José Montenegro de Lima, que
coordenava os esforços para a construção de uma UNE de
massas, até membros de Comitês Estaduais e do Comitê Militar
do Partido.
Para se ter uma idéia da força do PCB até aquele
período, mesmo enfrentando a mais dura clandestinidade, é
necessário dizer que o partido distribuía todo mês, na
Volks, a maior empresa do País, em 1973, 300 jornais
Voz Operária,
o tablóide clandestino do Partido, e tinha 150 militantes em
praticamente todas as seções da empresa, além de
militantes nas grandes metalúrgicas da região
[7]
. O PCB dirigia ainda Centros Acadêmicos nas grandes universidades e
até a Caixa Beneficiente da Polícia Militar de São Paulo,
cujo oficial responsável foi assassinado na tortura. Praticamente todos
os militantes do Partido, em todo o País, foram presos, entre 1974-75.
É muito raro encontrar algum militante daquele período que
não tenha passado pelas prisões da ditadura.
Portanto, o movimento social que começa a tomar fôlego com as
lutas por reposições salariais, em função da
falsificação dos dados estatísticos da
inflação de 1973, pelo então ministro Delfim Neto,
encontra a militância do PCB na cadeia ou intensamente marcada e vigiada
pela repressão. Mesmo quando o PCB ganhava alguma eleição
sindical, o governo impedia que a chapa assumisse o sindicato. Este foi o caso
de
Frei Chico
(irmão mais velho de Lula e militante do PCB), que ganhou por duas
vezes o Sindicato dos Metalúrgicos de São Caetano e não
pode assumir. Esta situação se tornaria mais grave em
função das divergências políticas que atingiram o
Comitê Central no exílio. A repressão obtivera êxito
em afastar o PCB do movimento de massas Golbery podia considerar-se
vitorioso.
Com a anistia, em 1979, a direção do Partido volta ao País
já envolta numa dura luta interna entre o secretário geral, Luis
Carlos Prestes, e o restante do Comitê Central. Reproduzia-se no interior
do Partido a questão do eurocomunismo, um debate que era travado nos
partidos comunistas europeus, especialmente no Partido Comunista Italiano,
organização que influenciou enormemente o antigo Comitê
Central. A derrota interna de Prestes e seu afastamento do Partido consolidou
uma linha política que rebaixou a atuação histórica
do PCB.
Em vez de incentivar o recrudescimento da luta operária e
direcioná-la na luta contra a ditadura, o Comitê Central
privilegiava a luta pela democracia, sob o pretexto de que o acirramento da
luta dos trabalhadores poderia levar a um retrocesso no País. Não
compreendia que a conjuntura tinha mudado e que agora a classe operária
irrompia no processo político disposta a se impor enquanto sujeito
político.
"As mobilizações operárias deslocam a base da luta
contra a ditadura, relevando uma dimensão que vai para além do
mero patamar politicista, incorporando, em sua crítica, outros elementos
componentes da estrutura da forma-Estado militar-bonapartista,
fundamentalmente, sua base econômica. Dentro dessa visão, o
significado das reivindicações imediatas aparecem somente como
elemento epifenomênico: além das exigências de aumento
salarial, liberdade e autonomia sindical, o fundamento das greves articula-se
em torno de dois fatores nodais: o questionamento da base econômica e
à superestrutura jurídico-política do bonapartismo ... O
movimento operário, desse modo, distanciava-se, de um lado, de quem
continuava a política de frente ampla no âmbito da
esquerda, o PCB , quando aquela forma de luta encontrava-se exaurida,
já que o núcleo que sustentava a forma-Estado
militar-bonapartista está em pleno processo de esfacelamento"
[8]
.
O Comitê Central, influenciado por um debate tipicamente europeu,
pensava mecanicamente e não conseguia combinar a luta democrática
com a luta operária. Estava também aferrado a uma
concepção etapista da revolução brasileira e a uma
aliança com setores da burguesia nacional, como meio para
alcançar o socialismo. Foi um erro fatal: o PCB desligou-se do movimento
social e se tornou uma organização residual no cenário
político do País. No entanto, mesmo levando-se em conta as
prisões, torturas e assassinatos, o principal responsável pelo
fracasso político do Partido foi sua direção, que conduziu
a organização para um rumo diverso do que apontava a luta de
classe naquele período
[9]
.
Se o Comitê Central tivesse apontado em outra direção,
haveria condições para que o Partido, mesmo fragilizado,
disputasse com outras forças a condução do processo
social e político no País. Afinal, faziam parte do CC quadros
históricos do movimento operário, muitos deles integrantes da
direção do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Ora, com uma
linha política correta e com a experiência acumulada nos combates
do passado, esses dirigentes tinham condições de disputar os
rumos do movimento social no País.
AS GREVES E O NOVO MOVIMENTO OPERÁRIO
Enquanto o PCB se digladiava com sua própria sombra, o que estava
ocorrendo efetivamente na luta de classes do País? A classe
operária, que vinha acumulando forças desde as derrotas das
greves de 1968
[10]
, entra em cena e passa a comandar a luta contra a ditadura. O movimento
operário, iniciado em São Bernardo do Campo, se espalha para todo
o Brasil como um rastilho de pólvora
[11]
, o que demonstra claramente que a situação estava madura para as
lutas operárias de massas. Portanto, não tinha sentido se
privilegiar a luta democrática pelo alto em contraposição
à luta operária desde a base.
Mas o movimento operário que nasce das lutas de São Bernardo e do
resto do País tinha uma característica muito acentuada de
espontaneidade. A grande maioria de sua liderança não tivera
vínculo com as lutas históricas do proletariado brasileiro.
Portanto, não estava testada nas batalhas de classe, não tinha a
ideologia vinculada à classe operária nem ao marxismo. Eram
operários combativos, honestos, mas sem ideologia, apenas com um forte
sentimento de justiça social.
Além disso, por falta de tradição, era uma
liderança operária avessa ao estudo e às
tradições de classe. Eram os anti-filhos do modelo
econômico da ditadura, mas não poderiam significar sua
antítese, se não se envolvessem com a ideologia
proletária. Tornaram-se basicamente uma vanguarda sindical, com os
limites e impossibilidades do próprio movimento sindical.
Além disso, um outro fator político também contribuiu para
que não se gestasse no País uma liderança operária
classista e ideológica. Muitos agrupamentos políticos e
religiosos se aproximaram do movimento operário em ascensão e
buscaram confrontá-lo com o Partido Comunista Brasileiro, transformando
o PCB num inimigo dos trabalhadores, num bombeiro da luta de classe, num
entulho a ser removido da vida política brasileira.
Valia tudo para alijá-lo do movimento social: a calúnia, o
envenenamento anti-comunista das novas gerações de lutadores e
até mesmo a falsificação da história. Procurava-se
espertamente varrer da memória tudo aquilo que tinha sido feito no
passado, afinal não era bom que as novas gerações
soubessem que o PCB estava por trás das maiores batalhas e conquistas
dos trabalhadores até então. Por isso, construíram uma
"nova história", na qual o movimento operário teria
começado com as greves em São Bernardo do Campo. Negando a
história, terminaram negando-se também e, ao negar-se, não
construíram raízes, passaram a flutuar ideologicamente.
O terreno era fértil para esse discurso e, muitas vezes, o
próprio PCB, com sua política equivocada, contribuiu para que
essas falsificações vicejassem entre aquelas lideranças
inexperientes, deslumbradas com seu próprio êxito e aduladas pela
pequena burguesia radicalizada. Para os alpinistas revolucionários,
escolados na derrota recente ou no gueto, a carona do movimento operário
era um momento especial de se vingar do velho Partidão, com o qual todos
tinham profundas divergências políticas ou ideológicas.
Essa visão era funcional, pois retirava de cena o principal protagonista
das lutas operárias no Brasil.
Quem eram os personagens que tanto influenciaram as novas
gerações de lideranças operárias surgidas com as
greves de São Bernardo? Fundamentalmente, os agrupamentos
políticos que pegaram carona no movimento operário e depois
fundaram o PT e Central Ùnica dos Trabalhadores (CUT) eram
constituídos, de um lado, por militantes trotskistas, que sempre
carregaram consigo o complexo de pigmeu e agora viam a possibilidade de crescer
organicamente e ajustar as contas com o PCB; de outro, velhos camaradas
sobreviventes da luta armada, que saíram magoados com o Partido porque
este não os acompanhou na decisão de seguir esta forma de luta.;
Ah! tinha ainda a esquerda católica, representada pelas Comunidades
Eclesiais de Base, que praticava sorrateiramente o anticomunismo com ares de
esquerda e terceiro-mundista. Por último, não se pode deixar de
falar nos setores da pequena burguesia radicalizada que encontraram no PT um
instrumento especial para exorcizar a sua má consciência.
Entretanto, ao analisarmos objetivamente o comportamento desses agrupamentos
políticos ou religiosos não se pode deixar de levar em conta que
eram também companheiros que, apesar de posição anti-PCB,
estavam sinceramente querendo impulsionar a luta de classes e organizar os
trabalhadores, muitos até desejavam o socialismo como horizonte do povo
brasileiro. Na ânsia de dirigir o proletariado esqueceram-se das
lições do passado e formaram uma geração de
lideranças operárias desossadas ideologicamente, despreparadas
para os embates classistas e, conseqüentemente, frágeis
ideologicamente, portanto permeáveis aos encantamentos do sistema
burguês. Era uma tragédia anunciada, que se consumou muito antes
do que se esperava.
A FORMAÇÃO DO PARTIDO DOS TRABALHADORES
Para compreendermos o momento da formação do PT é
necessário avaliarmos a situação política do
País naquele período, início dos anos 80. A ditadura vivia
os seus estertores e não tinha mais condições de tomar
nenhuma iniciativa política. Estava na defensiva e com o tempo contado.
A luta operária desmantelara todo o arcabouço montado pelo
regime, enquanto a luta democrática avançava crescentemente,
contribuindo para isolar e golpear a ditadura. Como a derrota já era um
dado da realidade, o estrategista do regime, general Golbery do Couto e Silva,
buscou uma forma de fazer com que o colapso do regime não significasse o
colapso do sistema e a emergência dos comunistas como força
política, afinal foram eles que traçaram a estratégia
vitoriosa de luta contra a ditadura e isso não poderia ser reconhecido
pela população.
Vale ressaltar que o PCB era um
fantasma que atormentava cotidianamente a imaginação do general
Golbery. Ele pensava estrategicamente e sabia que o Partidão era um
inimigo estratégico, aquele contra o qual não deveria haver
vacilação que o diga o massacre de 1974-75 no governo
Geisel, quando Golbery era a eminência parda do regime Por isso, com a
proximidade da democratização era necessário impedir
novamente que o Partidão surgisse com alternativa para a esquerda no
Brasil. Nesse sentido, é sintomático que ele tenha possibilitado
a legalização do
Partido dos Trabalhadores
e mantido o PCB na clandestinidade.
Além disso, visando evitar qualquer perigo para a auto-reforma da
ditadura, Golbery também maquinou maquavelicamente contra os
nacionalistas, liderados por Leonel Brizola. Numa manobra aberta, visando
evitar que estes também pudessem emergir como referência das
massas, inviabilizou a formação do Partido Trabalhista Brasileiro
(PTB) de Leonel Brizola e entregou a sigla para a governista Ivete Vargas, o
que obrigou Brizola a formar um outro partido, o PDT.
Por que Golbery permitiu o
surgimento do PT? Primeiro, porque sabia que o PT não representava um
perigo para o regime capitalista, apesar da fraseologia esquerdista. Mesmo
formado a partir das lutas operárias, desde o nascimento seus contatos
internacionais eram com a social-democracia européia, que lhe concedeu
vultosas verbas, em forma de bolsas para militantes e convênios para
projetos políticos, de forma a que pudesse implantar sua
organização e afastar dos comunistas qualquer possibilidade de
influência junto aos trabalhadores. A social-democracia deslocou quadros
da para o Brasil, visando assessorar na organização do PT,
fortalecendo os vínculos políticos e econômicos. Com sua
vasta experiência internacional na disputa com os comunistas, a
social-democracia apostou no longo prazo e terminou conseguindo o que desejava.
Fundado em 1980, a partir de um
determinado período, com a formação do Grupo dos 113,
começa a se esboçar no PT um
Núcleo Dirigente
hegemônico, do qual fazia parte o próprio Lula, e que mais tarde
passaria a ser conhecido por
Articulação
e atualmente
Campo Majoritário.
Este núcleo foi-se consolidando crescentemente a ampliando sua
influência sobre o conjunto do Partido. A cada eleição
procurava se diferenciar da esquerda do Partido, ampliar seus domínios
sobre a máquina partidária e, muitas vezes, afastando
tendências inteiras do interior do PT.
Á medida em que o PT ocupava importantes espaços políticos
nas prefeituras e governos estaduais, também mudava sua prática
orgânica em relação à militância e sua postura
política como partido de esquerda. Assim, foi se tornando cada vez mais
claro que o PT estava deixando de ser um partido da transformação
seu discurso inicial para se transformar num partido da ordem.
Abandonou a prática militante e buscou imitar os partidos tradicionais
nos embates eleitorais, transformou-se num partido puramente eleitoreiro,
construindo métodos de ação inteiramente atípicos
às forças de esquerda
[12]
.
NOVO RUMO PROGRAMÁTICO E DEGENERAÇÃO
Os primeiros sintomas do apodrecimento da organização petista
puderam ser sentidos com os esquemas de corrupção montados em
Santo André e Ribeirão Preto, cidades administradas pelo PT, e
que podem ser consideradas as pioneiras daquilo que viria a acontecer
posteriormente em nível nacional. Esses esquemas municipais foram-se
ampliando à medida em que o PT passava a comandar grandes cidades ou
Estados. De esquemas municipais e estaduais estruturou-se o esquema nacional
com a eleição de Lula em 2002.
Mesmo com todos esses problemas, alguns denunciados pela imprensa, o PT ainda
era considerado o partido da ética, o campeão da moralidade no
trato da coisa pública. Seus militantes de base se orgulhavam de ter uma
organização que agia de modo diferente dos partidos tradicionais.
Inovaram em vários pontos, como o orçamento participativo e a
canalização de verbas públicas para os setores populares.
Era o modo petista de governar.
Enquanto essa face
pública era disseminada para a sociedade, nos bastidores a
direção petista, especialmente o núcleo duro do chamado
Campo Majoritário, procurava montar uma máquina eleitoral
distanciada da militância, movida a dinheiro oriundo de
doações legais e ilegais de grandes empresas e disposta a entrar
no vale tudo pelas conquistas dos cargos públicos. O PT começava
a perder a alma e a razão de ser. Entre as forças de esquerda
já se comentava que em muitos locais o processo de
corrupção das administrações petistas era muito
semelhante aos das administrações tradicionais, mas jamais se
imaginou que tivesse a dimensão que esta crise trouxe à tona.
Vale ressaltar ainda que o núcleo dirigente do
Campo Majoritário,
tanto nos Estados, quanto em nível nacional e na CUT, também se
utilizou destes recursos para conquistar terreno no interior do partido e
ampliar a hegemonia na luta contra as outras tendências do PT. Aquilo que
era praticado externamente em função do jogo burguês,
passou a prevalecer também na luta interna do PT. Os métodos
externo e interno se confundiam plenamente e o
Campo Majoritário
passou a ditar completamente os rumos da política programática
do PT.
Um elemento curioso nesta trajetória do discurso petista é o fato
de que, quanto mais o PT aumentava sua influência social e
política, mais abandonava as bandeiras programáticas
históricas, em função de um pragmatismo avesso a qualquer
princípio ou ideologia. De um discurso inicial que fazia até
reverência a um indefinido socialismo futuro, o PT foi moderando seu
programa e seu discurso até condensá-lo na
Carta aos Brasileiros,
divulgada no período imediatamente anterior às
eleições, com o objetivo de garantir ao capital especulativo
internacional que não haveria quebra dos contratos, nem rupturas que
contrariasse os interesses do grande capital. Como forma de disfarçar
sua essência conservadora, prometia algumas mudanças pontuais, que
eram uma espécie de satisfação às bases internas e
à esquerda que apoiava Lula.
A degeneração política e o abandono dos princípios
programáticos vieram se somar, como se ficou sabendo agora, à
degeneração pessoal, à corrupção individual.
Esse vício degenerativo atingiu praticamente toda a cúpula do
campo majoritário, com muitos obtendo bens pessoais que seus
salários jamais poderiam amealhar. A cabeça do PT estava podre e
a militância e a sociedade brasileira não sabiam. Os
escândalos têm sido tão sórdidos que mesmo o
adversário mais tenaz do PT dificilmente poderia imaginar a
extensão da podridão. De uma hora para outra, aqueles dirigentes
arrogantes e deslumbrados transformavam-se em escória da esquerda.
A NATUREZA DA DEGENERAÇÃO IDEOLÓGICA E PESSOAL
Quais os processos que levaram
toda uma geração de líderes sindicais e políticos a
degenerem-se dessa forma? Qual a natureza ideológica da
degeneração? O PT ainda tem futuro na esquerda brasileira? Quais
as possibilidades de construção de uma nova vanguarda
revolucionária no País? Que ensinamentos os
revolucionários brasileiros podem tirar destes dramáticos
episódios envolvendo os principais dirigentes do Partido dos
Trabalhadores? Estas são as questões que procuraremos refletir,
ainda no calor dos acontecimentos, sem os desfechos definitivos da crise.
Antes de tudo, é necessário recordar que a tragédia que se
abate sobre o PT, a nossa social-democracia retardatária, não
é um fenômeno exclusivo brasileiro. A social-democracia no mundo
inteiro viveu processo semelhante. Começou com a
degeneração ideológica, expressa no rompimento com o
marxismo, com a luta de classes; passou à degeneração
política, com a gerência do neoliberalismo na Europa e,
finalmente, chegou à degeneração pessoal, com a
corrupção envolvendo os principais dirigentes sociais-democratas
europeus. Os casos do Partido Socialista da Itália, do Partido
Socialista Operário Espanhol, do Partido Socialista Francês, do
Partido Social-Democrata Alemão, entre outros, são
emblemáticos da postura social-democrata moderna.
É necessário um parêntese para compreendermos o papel que a
social-democracia clássica e a social-democracia retardatária
tiveram em suas respectivas épocas e países. Após a
Segunda Guerra Mundial, a social-democracia clássica teve uma
função importante na construção do
Welfare State,
o Estado do Bem Estar Social. Conquistou condições de vida
dignas para os trabalhadores, incorporando parte da produtividade aos
salários, e estruturou uma rede de proteção social
expressiva, especialmente na Europa, tudo isso dentro de um pacto social
estabelecido no contexto do Capitalismo Monopolista de Estado. Mas esse papel
vai se esgotar com as mudanças qualitativa que ocorreram entre as
frações do grande capital mundial.
A partir do final dos anos 70, operaram-se transformações de
fundo no sistema de poder do capitalismo central, resultando numa uma enorme
regressividade econômica e política. O setor mais
reacionário das classes dominantes, ligados ao capital especulativo
internacional, ocupou o poder político nestes países,
especialmente nos EUA e Inglaterra, e a partir destes centros
geopolíticos do poder mundial, subordinaram os outros segmentos do
capital, impuseram a ideologia monetarista-neoliberal para o resto do mundo
(fato que correspondeu à implantação de uma nova ordem
econômica, política e social), e lançaram uma ofensiva
contra direitos e garantias dos trabalhadores, numa espécie de
vingança de classe.
Portanto, restou à social-democracia clássica um dilema de Sofia:
a)
sublevar-se contra a nova ordem, o que seria uma tarefa impensável,
pois esta já havia aberto mão anteriormente de sua ossatura
ideológica, ou
b)
adaptar-se à nova ordem, passando a ser uma gestora com face
cor-de-rosa do neoliberalismo. Nesse contexto, a social-democracia
clássica optou por eliminar de vez os últimos vestígios
que a ligavam aos interesses dos trabalhadores, passando a ser um instrumento
especial da nova ordem econômica internacional neoliberal.
No entanto, existe uma diferença especial entre a social-democracia
clássica e a social-democracia retardatária brasileira. O
processo de degeneração da social-democracia clássica
levou mais de cem anos para se completar. Aqui no Brasil, exatamente por ser
retardatária, o salto no escuro da social-democracia cabocla foi muito
rápido: levou apenas 25 anos. Nesse período, a social-democracia
retardatária não só não proporcionou vantagens
econômicas e sociais para os trabalhadores, como ainda aprofundou o
modelo neoliberal e anti-popular implantado no governo anterior do presidente
Fernando Henrique Cardoso.
Praticou em larga escala a corrupção, não apenas no
sentido de construir uma máquina eleitoral para se contrapor aos
partidos então considerados tradicionais, mas no governo Lula amealhou
parte desses recursos para corromper os partidos e parlamentares conservadores
a votar em projetos de interesse das classes dominantes. Em outras palavras,
pagou a direita para votar nos seus próprios projetos. Trata-se,
evidentemente, de um caso singular de mimetismo às avessas.
A social-democracia retardatária brasileira também nasceu num
espaço demográfico errado e num tempo errado.
Primeiro,
porque foi formada num país dependente, caracterizado pelo fato de que
as classes dominantes, pela própria natureza da dependência, serem
obrigadas a transferir parte do valor para os países centrais e,
portanto, para compensar essa dependência, ampliam o processo de
exploração dos trabalhadores
[13]
. Portanto, mesmo que seu projeto tivesse sido vitorioso nos tempos do pacto
social do
Welfare State
a social-democracia retardatária dificilmente poderia proporcionar as
mesmas benesses aos trabalhadores brasileiros que a social-democracia
clássica proporcionou ao proletariado europeu.
Segundo,
porque nasceu retardatariamente nos anos 80, quando o grande capital
já tinha rompido o pacto social do Capitalismo Monopolista de Estado e
avançava contra os direitos e garantias dos trabalhadores. Dessa forma,
a social-democracia retardatária brasileira não poderia de forma
alguma proporcionar melhores condições de vida para os
trabalhadores, uma vez que seu limite histórico estava dado pelas novas
condições do capital. Em outras palavras, a social-democracia
retardatária não tinha mais as possibilidades históricas
de amealhar migalhas para os trabalhadores em troca da paz social, porque o
grande capital estava agora em outra fase, com outros interesses e,
especialmente, em função da queda da âncora
soviética, em condições de ditar as regras do jogo.
Além disso, a social-democracia brasileira, constituída
ideologicamente, em sua grande maioria, por lideranças operárias
despolitizadas ideologicamente, avessa ao estudo (o presidente Lula se
orgulhava de nunca ter conseguido ler um livro inteiro) e ao marxismo,
não tinha realmente capacidade teórica de construir um projeto de
País nem de emancipação dos trabalhadores. No fogo da luta
de classe, seus líderes constituíram o Partido Político,
mas não conseguiram em tempo algum traçar um rumo de classe para
esta organização. Enquanto as lutas sociais espontaneistas
estavam em ascensão, o PT parecia realmente um instrumento dos
trabalhadores, mas tão logo o movimento social entrou em refluxo o PT
começou a dar mostra de sua insuficiência teórica e de
perspectiva.
Influenciados pela social-democracia clássica a partir de dentro, a
liderança do Partido dos Trabalhadores começou a perder o seu
verniz de classe, elemento que era mascarado anteriormente em
função da combatividade no período de ascenso das lutas
espontâneas. Foram se adaptando às novas formas de vida dos
gabinetes e da burocracia sindical e partidária, moldando o discurso
político e buscando o jogo do poder pelo poder. De passo em passo
passaram a reproduzir os mesmos vícios das elites dominantes, tanto
internamente no PT quanto externamente no processo eleitoral. Ora, com uma
trajetória dessa ordem, o destino do PT já estava escritos nas
estrelas antes mesmo que a estrela começasse a se ofuscar.
Com o tempo, a conjuntura de sucessivos êxitos eleitorais do PT
transformou essas lideranças em pessoas com enorme arrogância em
relação aos outros partidos de esquerda, o que os cegava perante
a necessidade de construção efetiva de um bloco de esquerda para
realizar as transformações no País. Enquanto tratava a
esquerda como políticos de segunda classe, costurava com desenvoltura
alianças ao centro e à direita a cada nova eleição.
Imaginavam-se espertos o suficiente para tramar com a direita na lama e
saírem limpos do processo. Subestimaram seus novos amigos e foram
pegados com a boca na botija, denunciados pelos próprios novos aliados.
Essas práticas, aliadas às facilidades do poder e à
perspectiva de vantagens pessoais, além da falta de uma firmeza
ideológica, transformaram-se no caldo de cultura que contribuiu para o
apodrecimento desse Núcleo Dirigente e de muitos dos quadros
médios enfronhados nas várias administrações pelo
País a fora.
Num ambiente dessa ordem, como ter firmeza ideológica, se os militantes
e quadros dirigentes já tinham perdido a perspectiva das
transformações sociais estavam mais interessados no poder pelo
poder, como forma de realização de projetos pessoais? Como
resistir aos encantos da burguesia se as facilidades materiais estavam ao
alcance da mão? Ora, para aqueles representantes da classe
operária recém-chegados ao paraíso, foi uma
tentação avassaladora.
Um aspecto doloroso que deve ser ressaltado é o fato de que a crise do
PT, quer gostemos ou não, atinge de alguma forma todos os partidos de
esquerda, mesmo aqueles que já estavam rompidos com este governo. Ao
longo da história a esquerda pode ter cometido erros graves, mas nunca
se envolveu em atos de corrupção ou coisa semelhante. Por isso,
construiu uma aura de honestidade que era reconhecida até pelos inimigos
de classe. Esta crise colocou uma mancha cinza num patrimônio que era
orgulho de todos os militantes. No imaginário popular poderá
prosperar a compreensão de que todos são iguais, o que pode ser
estimulado pela própria direita para nivelar por baixo todas as
forças políticas.
O dilaceramento do PT é o preço que este partido está
pagando por ter trocado a ideologia dos trabalhadores e suas bandeiras
históricas pelo pragmatismo; por ter trocado o trabalho militante pelo
dinheiro fácil dos grandes empresários e pelo marketing
político; por ter trocado o programa histórico de mudanças
pelo concubinato com os banqueiros nacionais e internacionais; por ter trocado
a bandeira histórica da reforma agrária pelo agro-negócio;
por ter trocado a força dos movimentos sociais pela demagogia populista,
expressa na fraseologia de mau gosto do presidente. Esse é o
preço que está pago por ter vendido a alma ao diabo.
DILEMAS E PERSPECTIVAS
Que ensinamentos a esquerda revolucionária pode tirar desse
episódio? A primeira lição a tirar da tragédia da
social-democracia retardatária é o fato de que não se
constrói nenhuma vanguarda operária fora do campo do marxismo e
da ideologia proletária. Tentar uma construção fora desse
espaço teórico é apostar na frustração e no
fracasso político, como ficou demonstrado no Brasil.
A conseqüência dessa primeira constatação é o
fato de que lideranças operárias, sem ideologia operária,
terminam envolvidas pela ideologia das classes dominantes e passam a realizar,
na prática, uma política contra a sua própria classe. E
quando realizam a política da classe dominante, fazem-no com a
autoridade de representantes dos trabalhadores, o que não só
confunde os trabalhadores como torna mais difícil a luta contra a
política que desenvolvem.
O domínio dos 25 anos da social-democracia retardatária
contribuiu enormemente para a despolitização e o
descrédito dos trabalhadores e da população em geral com
relação à política. Nivelaram por baixo a
educação popular e rebaixaram o discurso político aos atos
de pragmatismo. Prestaram um grande desserviço à forças de
esquerdas, que têm toda uma história ligadas à
coerência e aos valores éticos, e contribuíram para que as
forças de direita pudessem emergir dessa crise como paladinos da
moralidade.
Se olharmos do ponto de vista dos milhares e milhares de lutadores sociais e
políticos que se puseram em movimento com a ascensão das lutas
operárias de 1978 em diante, o resultado global do desempenho desta
social-democracia foi frustrante e pode retirar de cena muitos daqueles
militantes menos preparados que acreditaram no PT e que se sentiram
traídos com a crise atual. No entanto, os que permanecerem sairão
mais fortalecidos desta crise e mais temperados para a luta política.
Em outras palavras, o desfecho da crise vai gerar uma enorme dispersão
momentânea na militância petista, mas também haverá
uma reorganização de forças num patamar superior, pois a
trágica experiência do PT será por muito tempo um mau
exemplo que não deverá ser seguido por nenhuma
organização que queira realizar as transformações
no Brasil. O tempo de incerteza também não será muito
longo, pois a conjuntura nacional e os próprios trabalhadores
irão reclamar uma nova vanguarda que responda às suas
necessidades históricas. Portanto, mais uma vez está colocada no
Brasil a questão da vanguarda revolucionária, como aconteceu em
1922 e 1980.
Se observarmos do ponto de vista mais global, poderemos avaliar que o
neoliberalismo está em crise em todo mundo, por ter produzido uma
regressividade social histórica nas relações
capital-trabalho. Por isso mesmo, está sendo contestado em várias
partes do mundo, especialmente na América Latina. Podemos dizer que esta
região vive atualmente uma contra-ofensiva popular, após duas
décadas de hegemonia neoliberal.
Esta contra-ofensiva não se expressa de maneira linear como pretende uma
certa esquerda mecanicista. Em alguns momentos, toma a forma de
insurreição popular, como as duas vezes em que ocorreu na
Bolívia e no Equador e uma vez na Argentina; em outra ocasião se
expressa no processo rico da revolução bolivariana, que se inicia
com uma vitória eleitoral, se aprofunda com a reversão do golpe
de direita e a derrota do
lock out
da PDVSA e amplia as possibilidades com o plebiscito revogatório e a
radicalização do movimento de massas venezuelano; outras pela
via puramente eleitoral, como a vitória de Lula no Brasil,
período em que a população acreditara que este faria um
governo de mudanças. Ou ainda na vitória de Kichner, na
Argentina, ou Tabaré Vasquez, com a Frente Ampla Uruguaia.
Todos esses movimentos, respeitados os seus devidos graus de
organização ou mobilização, fazem parte de um
movimento maior de contra-ofensiva popular na região. A prova mais
contundente desse processo é o fato de que o neoliberalismo perdeu a
iniciativa política, não consegue mais o envolvimento
manipulatório que conseguiu nos seus primeiros anos, quando o mercado se
transformou num semideus, tanto para os setores mais pobres até os mais
ricos da sociedade e o pensamento único ditava as regras de
comportamento.
Nessa perspectiva, a crise do PT é também a crise do modelo
neoliberal no Brasil, porque o Partido dos Trabalhadores consolidou e
desenvolveu esta política, especialmente na área econômica.
Vale lembrar que as massas votaram em Lula como contraposição
à política neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. Portanto se
posicionaram pelas mudanças. Como o PT traiu o programa e o desejo de
mudança dos trabalhadores, não resta outra alternativa ao
movimento social do que buscar outra alternativa política.
Quais as possibilidades de reconstrução da vanguarda
revolucionária no Brasil após a crise? Primeiro, é
necessário analisar o destino do principal agente da crise, o Partido
dos Trabalhadores. Em nossa opinião, o PT perdeu a
legitimação e a autoridade política, enquanto
possibilidade histórica. Não conseguirá mais representar
os movimentos sociais que até então representara, nem se
apresentar como reserva moral e ética, que era um patrimônio da
esquerda, porque a crise lhe usurpou a aura e a alma enquanto
organização dos trabalhadores. Seus dirigentes se nivelaram aos
demais políticos tradicionais. Poderá até sobreviver como
partido eleitoral, mas nunca mais como representante do proletariado brasileiro.
Essa análise nos leva à constatação de que os
movimentos sociais ligados ao PT estão órfãos e agora
tenderão a buscar novas alternativas políticas. Mesmo
desorientados num primeiro momento, esses movimentos, que estavam de certa
forma paralisados em função da chegada do PT ao governo, podem
ganhar novas energias e emergir da letargia política com mais
força e experiência de luta. Portanto, ao contrário do que
se possa imaginar, está-se abrindo uma imensa avenida para o ascenso do
movimento social e político no Brasil.
Vale ressaltar que as crises estão configuradas dentro da
dialética social e política. Se por um lado provocam, como no
caso do Brasil, um grande estrago no patrimônio da esquerda, por outro,
abrem também enormes possibilidades para os lutadores sociais e
políticos e para a construção de uma perspectiva
revolucionária. Afinal, os tempos de calmaria são caracterizados
por gerarem poucas novidades, enquanto as crises são as
responsáveis pelas grandes mudanças. Todas as grandes
transformações, todas as grandes mudanças foram gestadas
nos períodos grandes crises.
Portanto, o momento está maduro para a reflexão e ousadia
política. Torna-se mais do que necessário a
elaboração de um projeto de nação, a ser
construído por um novo bloco histórico de forças sociais e
para um nova fase da esquerda no País, de forma a que possa colocar
novamente o povo em movimento e resgatar a esperança de milhares e
milhares de lutadores sociais e políticos, frustrados com o fazer
político do Partido dos Trabalhadores. Esta é a tarefa de agora
em diante: reagrupar as forças revolucionárias em torno de um
partido que tenha capacidade de cumprir as tarefas da revolução
brasileira.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
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de Livros, 1989.
NOTAS
1- Para uma melhor compreensão do movimento anarquista no Brasil,
consultar: DULLES, J. W F. Anarquistas e Comunistas no Brasil 1900-1930.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977; KOVAL, B. História do Proletariado
Brasileiro.São Paulo: Alfa Omega, 1982. BATALHA, C. O Movimento
Operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editores, 200.; LOPES; C. L. E.; TRIGUEIROS, N. N. História do Movimento
Sindical no Brasil. São Paulo: Centro da Memória Sindical. Mimeo
s/d; ZAIDAN FILHO, M. Comunistas em Céu Aberto 1922-1930. Belo
Horizonte: Oficina de Livros, 1989.
2- Consultar KOVAL e DULLES, op. cit.
3- Um entendimento do período Vargas pode ser encontrado em: FONSECA, P.
C. D. Vargas, o Capitalismo em Construção. São Paulo: Nova
Fronteira, 1987.
4- Um balanço geral sobre o movimento sindical e o papel do PCB, entre
1948 e 1962, pode ser encontrado em: TELLES, J. O Movimento Sindical no
Brasil. São Paulo: Ciências Humanas, 1981.
5- Um balanço geral da história do PCB e os principais documentos
produzidos por esta organização podem ser encontrados na obra
mais abrangente sobre o Partidão, publicada em 3 volumes, por
ocasião do 60º aniversário de sua fundação, em:
CARONE, Edgar. O PCB
1922-1943; O PCB-1943-1964; O PCB-1964-1982. São Paulo: Difel,
1982.
6- Um relato bastante detalhado do período Geisel pode ser encontrado
em: GASPARI, E. A Ditadura Derrotada. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
7- Depoimento de Lúcio Belantani, Secretário Político da
Comitê de Empresa da Volkswagen, em 1995, para tese de doutorado do
autor, posteriormente transformada em livro: COSTA, E. A Política
Salarial no Brasil. São Paulo: Boitempo, 1998. A polícia
política
prendeu, ao longo de 1974, todos os militantes do PCB na empresa, após
deter um de seus membros responsáveis e este não resistir
à tortura e entregar outros companheiros. A partir da primeira
detenção os militantes foram caindo um por um, inclusive o
secretário político do PCB na empresa. Na década de 80,
Balantani seria eleito coordenador da Comissão de Fábrica da
Ford-Ipiranga, porém não militava mais no PCB.
8- MAZZEO, A. C. As tarefas históricas da esquerda brasileira e o
Partido dos Trabalhadores. São Paulo: mimeo., 2004.
9- A linha política do PCB, de aliança coma burguesia, em
função de uma suposta revolução nacional
democrática, como primeira etapa para o socialismo, estava elaborada a
partir de um diagnóstico de que o Brasil era um país com
resquícios semi-feudais. Esta linha já vinha sendo contestada por
vários militantes e por um dos mais brilhantes intelectuais do PCB: Caio
Prado Jr, que em 1966 publicou sua famosa obra: A Revolução
Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966.
10- Em 1968 o governo derrotou as greves de Contagem e Osasco, esta
última com enorme repercussão nacional, cujo desenlace foi a
invasão da Cobrasma pelas forças militares. A partir daí o
movimento operário passou por um grande período de refluxo.
11- Para uma compreensão mais abrangente do sindicalismo nos anos 80,
consultar: ANTUNES, R. A Rebelião no Trabalho. São Paulo: Editora
Unicamp, 1992; BOITO JR. et alli. O Sindicalismo Brasileiro nos anos 80.
São Paulo, Paz e Terra, 1991.
12- Para entendermos a processo de transição do PT, consultar:
Resoluções de Encontro e Congressos: 1979-1998. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2000. Ver também Carta aos
Brasileiros, 2002.
13- Para entender melhor a teoria da dependência do ponto de vista
marxista, consultar: MARINI, R. M. Dialética de la Mercancia e Teoria
del Valor. México: Editorial Universitária Centroamericana, 1982;
DOS SANTOS, T. Imperialismo e Dependência. México:
Edições Era, 1978; SANTOS, T. Teoria da Dependência,
Balanço e Perspectiva. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000. BANBIRRA, V. El Capitalismo Dependiente Latinoamericano.
México: Siglo Veinte e Uno Editora1, 976. Para uma abordagem com outra
vertente ideológica, ver: CARDOSO, F. H.; FALETTO, E. Dependência
e Desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979.
[*]
Edmilson Costa é
doutor em Economia pelo Instituto de Economia da Unicamp, com
pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
mesma instituição. É autor de
Um Projeto para o Brasil
(Tecno-Científica),
A Política Salarial no Brasil
(Boitempo Editorial),
Imperialismo
(Global Editora), além de vários ensaios publicados em revistas
especializadas. É também membro do Comitê Central do
Partido Comunista Brasileiro
(PCB).
O autor agradece as
críticas e sugestões de Sofia Manzano e Antônio Carlos
Mazzeo, ressaltando que os mesmos não são responsáveis por
eventuais erros ou omissões contidos neste trabalho.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
.
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