Seria bom se fosse verdade
Cinco mitos sobre a trajetória recente e as perspectivas do
trabalho doméstico no Brasil
por Henrique Júdice Magalhães
[*]
1. A quantidade de empregadas domésticas está em queda livre, contínua e irreversível.
2. O peso relativo do serviço doméstico também despencou. Pela primeira vez, ele deixa de ser a principal ocupação das brasileiras que trabalham, caindo para a terceira posição.
3. Por causa da escassez de mão-de-obra, decorrente da alta oferta de emprego em outras atividades, a remuneração do trabalho doméstico disparou.
4. A Emenda 72 iguala os direitos das domésticas aos dos demais trabalhadores
.
5. O aumento do custo da força de trabalho, consequência da ampliação de direitos, levará à diminuição da quantidade de vagas no serviço doméstico e/ou à substituição de trabalhadoras mensalistas por diaristas.
Algumas conclusões
O Congresso Nacional promulgou, em 2 de abril de 2013, a mais importante
reforma social verificada no Brasil desde 1988: a Emenda Constitucional 72, que
altera o regime normativo do serviço doméstico e, embora sem
nivelá-lo ao padrão geral, estende a quem o exerce garantias
tão elementares quanto os limites de duração do trabalho e
a proteção contra acidentes.
A maioria dessas conquistas casos do FGTS, do seguro acidentário,
do adicional noturno e do seguro-desemprego, entre outras não
terá consequências práticas antes da edição
de uma lei regulamentadora. Na maioria dos casos, nem depois, já que
mais de 70% das potenciais beneficiárias trabalham sem registro (PNAD
2011). Ainda assim, a elevação do status constitucional dessas
trabalhadoras (usa-se aqui o feminino como plural porque as mulheres são
mais de 90% da categoria), às quais antes se reconheciam somente nove
dos 34 direitos trabalhistas declarados na própria
Constituição brasileira como fundamentais e que agora passam a
ser detentoras de 25, tem um significado social que só não
é maior porque faltou ao parlamento e ao governo coragem para
impulsionar a equiparação plena. A dimensão do que se
conquistou ou, melhor dizendo, do que se começou a conquistar
mede-se, assim como a do que falta, pelo contingente humano envolvido:
segundo dados oficiais provavelmente subdimensionados (PNAD 2011), o Brasil tem
6,6 milhões de trabalhadoras domésticas, número só
inferior, em termos absolutos, ao da Índia, cuja população
é seis vezes maior
[1]
. Em termos relativos, não há país no mundo com tamanho
peso dessa atividade sobre o conjunto da população ocupada: elas
são, segundo o mesmo indicador, nada menos que um sexto (15,5%) das
brasileiras que trabalham.
A EC 72 teve, ainda durante sua tramitação, o efeito de despertar
o interesse da imprensa e de algumas agências oficiais pela
situação das trabalhadoras de casas particulares. São
exemplos disso sucessivas publicações da Secretaria de
Políticas para Mulheres (SPM), único órgão do
governo a bater-se pela ampliação desses direitos; alguns
releases
da presidência do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE); e o Comunicado 90 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
IPEA, intitulado
Situação atual das trabalhadoras domésticas no país
. A conjugação entre a precariedade dos indicadores
disponíveis sobre o assunto - diretamente proporcional à
desatenção que ele recebeu do Estado e da
intelligentsia
durante séculos, não obstante sua importância quantitativa
e qualitativa - e certos interesses partidários produziu, contudo, uma
série de inferências equivocadas que vão sendo repetidas
sem maior exame e que terminam por prejudicar o efetivo enfrentamento do
problema. Essas suposições analisadas a seguir
partem do mesmo ponto a que chegam: a crença em que existe, no Brasil,
um progresso social que as evidências, se não desmentem de todo,
reduzem à devida dimensão.
Este artigo destina-se portanto a três fins: problematizar essas
afirmativas, desfazendo equívocos; oferecer um balanço das
conquistas advindas da Emenda 72 e das lacunas remanescentes; e dizer algo
sobre a estrutura social brasileira, que tem no peso e no tratamento legal e
fático do serviço doméstico um dos mais precisos e
negligenciados indicadores de seu caráter.
Passemos, pois, à análise dos mitos propagados sobre o
serviço doméstico profissional.
1. A quantidade de empregadas domésticas está em queda livre,
contínua e irreversível.
Essa afirmativa baseia-se unicamente na comparação entre as
pesquisas nacionais por amostra de domicíio (PNADs) de 2009 e 2011
[2]
. Uma anáise de um intervalo maior não permite concluir isso e
muito menos que o emprego doméstico tende à
extinção, como vão dizendo alguns afoitos (
www.ihu.unisinos.br/...
). O que de fato há é uma oscilação do
número de trabalhadoras domésticas ocupadas, perceptível
quando se comparam os últimos cinco ou dez anos.
Ano
|
Trabalhadores ocupados no serviço doméstico remunerado na semana
de referência (em milhões)
|
Total
|
Mulheres
|
2002
|
6,04
|
5,6
|
2003
|
6,08
|
5,68
|
2004
|
6,47
|
6,04
|
2005
|
6,66
|
6,2
|
2006
|
6,78
|
6,3
|
2007
|
6,7
|
6,25
|
2008
|
6,63
|
6,2
|
2009
|
7,22
|
6,7
|
2011
|
6,65
|
6,16
|
Fonte: PNAD. Elaboração própria. Em 1994, 2000 e 2010,
não houve PNAD.
Esses dados mostram que 2009 foi um ano atípico, com um crescimento sem
paralelo nem explicação aparente do total de pessoas ocupadas no
setor. O resultado de 2011 representa uma queda significativa apenas em
comparação com esse ponto fora da curva, sendo, porém,
superior aos de 2002 a 2004 e situando-se no mesmo patamar verificado em 2003 e
entre 2005 e 2008.
2. O peso relativo do serviço doméstico também despencou.
Pela primeira vez, ele deixa de ser a principal ocupação das
brasileiras que trabalham, caindo para a terceira posição.
Nos 20 anos que vão de 1992 a 2011, a proporção de
trabalhadoras de casas particulares sobre o total da população
feminina ocupada oscilou entre os 15,6% (2011) e 18% (2001). Mas também
aqui não há uma redução constante, muito menos
linear, e sim um sobe-e-desce. Tampouco é verdadeiro que, antes de 2011,
o serviço doméstico tenha sempre ocupado a primeira
posição entre os grupos ocupacionais da PNAD, como afirma a SPM
em um recente comunicado institucional (
www.mulheres.gov.br/...
). E, principalmente, é falso que ele tenha deixado de ser a atividade
que mais trabalhadoras ocupa.
Ano
|
Proporção de empregadas domésticas sobre o total de
mulheres ocupadas (%)
|
Posição do serviço doméstico na
distribuição da população feminina entre os grupos
de ocupação da PNAD
|
1992
|
16,2
|
2º
|
1993
|
16,6
|
2º
|
1995
|
17,2
|
2º
|
1996
|
17,5
|
2º
|
1997
|
17,8
|
2º
|
1998
|
16,9
|
2º
|
1999
|
17,2
|
2º
|
2001
|
18
|
1º
|
2002
|
17,4
|
1º
|
2003
|
17,3
|
1º
|
2004
|
17,3
|
1º
|
2005
|
17,1
|
1º
|
2006
|
16,8
|
1º
|
2007
|
16,6
|
3º
|
2008
|
15,8
|
3º
|
2009
|
17
|
1º
|
2011
|
15,6
|
3º
|
Fonte: PNAD. Elaboração própria.
Nas 17 edições da PNAD abrangidas na tabela acima, o
serviço doméstico ocupou sete vezes a primeira
posição, sete a segunda e três a terceira. Descontada a
anomalia de 2009, só esteve em primeiro lugar entre os grupos em que o
IBGE divide a população trabalhadora de 2001 a 2006 ou
seja, logo após um processo de supressão contínua de
postos de trabalho em outros setores, propiciado pela ação
prolongada do coquetel de abertura comercial, juros altos e dólar baixo
do governo FHC em combinação com os efeitos da crise de 1999.
Até o advento desta última, a atividade que mais mulheres ocupava
era a agricultura; a partir de 2007, e com exceção de 2009, os
primeiros lugares passaram a caber às atividades de
"comércio e reparação e
"educação, saúde e serviços sociais"
nessa ordem em 2007 e 2011, na inversa em 2008.
O peso do trabalho doméstico sobre a ocupação feminina
mantém, nesses 20 anos, uma relativa estabilidade. Não é o
caso de ignorar que, em 2008 e 2011, ele atinge seu vale histórico.
Porém, a oscilação ainda é pequena se comparada
à da agricultura, cuja participação despencou
[3]
, ou à do setor de comércio e reparação, que
cresceu significativamente. Basta notar que, conforme a mesma PNAD, uma em cada
seis brasileiras que trabalham ainda o fazem em casas de terceiros.
É certo, no entanto, que a proporção real de pessoas
sobretudo mulheres empregadas nessa atividade é um tanto
maior que a retratada na tabela. Afinal, quando se trata de uma
ocupação com um predomínio avassalador do trabalho sem
registro
[4]
, a margem de imprecisão dos dados oficiais, mesmo baseados na
autodeclaração, como a PNAD, aumenta notavelmente. Sem ir muito
longe, basta lembrar o costume, bastante difundido entre os estratos
médios e altos da sociedade brasileira, de tirar meninas de suas
famílias sobretudo em áreas rurais e
levá-las para a cidade onde, a troco de comida e vestimenta, passam a
lavar, passar, varrer, cozinhar, etc. para seus captores. Até 2008, isso
era autorizado pelo art. 248 do Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA)
[5]
; com a expedição do Decreto 6.481, que regulamenta a
Convenção 182 da OIT
[6]
, proibiu-se o trabalho de menores em casa alheia. Antes de 2008, não
seria de se esperar que o(a)s chefes desses domicílios declarassem ao
IBGE tal modalidade de exploração porque o próprio ECA
atribuía a ela caráter familiar, e não trabalhista,
conferindo ao apropriador a guarda da adolescente subraída
[7]
e, consequentemente, a pátria potestade sobre ela (!!!). Menos ainda
é de se supor que o façam agora que isso passou a ser catalogado
oficialmente como o que de fato é: crimes de subtração de
incapaz e redução a condição análoga
à de escravo.
Por fim, "comércio e reparação" engloba, como
é fácil perceber, atividades distintas. O mesmo vale, em muito
maior medida, para "educação, saúde e serviços
sociais", que, claramente, não é uma categoria profissional
ou ramo de atividade, mas a soma de três, todas majoritariamente
femininas. Que esse grupo tenha superado o serviço doméstico em
número de mulheres ocupadas significa apenas que a soma de todas as
professoras, pedagogas, enfermeiras, auxiliares e técnicas de
enfermagem, médicas, dentistas, psicólogas,
fonoaudiólogas, fisioterapeutas e assistentes sociais do país
mais as secretárias, telefonistas, recepcionistas e restante pessoal
administrativo feminino das respectivas empresas ou instituições
[8]
supera ligeiramente o número de trabalhadoras em casa alheia detectadas
na PNAD.
O serviço doméstico continua sendo, portanto, como desde 2001, a
atividade que, de longe, mais força de trabalho feminina absorve.
3. Por causa da escassez de mão-de-obra, decorrente da alta oferta de
emprego em outras atividades, a remuneração do trabalho
doméstico disparou.
A remuneração das trabalhadoras domésticas de fato
cresceu, na última década, bem mais que a do restante dos
assalariados. Nunca esquecendo que os salários no Brasil são
muito baixos (o salário mínimo, R$ 678
[NR 1]
, é
pouco maior que a metade do argentino e ligeiramente inferior aos da fase de
esgotamento da ditadura de 64
[9]
), essa elevação é um dado positivo cujas causas
importariam pouco ou nada diante do fato em si, não fosse por radicarem
numa iniquidade que gera uma ilusão de ótica, fazendo a melhoria
parecer maior do que realmente é.
As trabalhadoras domésticas registradas ganham, quase sempre,
salário mínimo ou algo próximo a ele; as não
registradas, como demonstrado na PNAD, bem menos. Ao dizer que "em 2009,
as trabalhadoras formalizadas apresentavam renda
[NR 2]
média de R$ 568,00, isto é, mais de 100 reais acima do
salário mínimo nacional", o IPEA incorre no erro
metodológico de tomar como referência a
renda
quando nem toda ela advém do trabalho
[10]
ou
desse
trabalho. Em sua composição, entram todos os ganhos que
alguém aufere: pensões alimentícias,
prestações previdenciárias, benefícios
assistenciais, remuneração de bicos, aluguéis, etc. Se o
que se deseja medir são os rendimentos do trabalho doméstico,
é preciso tomar por base os salários e, para o mesmo ano
de 2009
[11]
, o Anuário Estatístico da Previdência Social (AEPS)
fornece uma cifra média de R$ 501
[12]
, valor que superava em R$ 36, e não em "mais de 100 reais", o
salário mínimo nacional de então (R$ 465). Essa
diferença positiva de R$ 36 explica-se, em grande medida, por outro
fator ignorado pelo IPEA: os pisos salariais (isto é, salários
mínimos) estipulados naquele ano para o serviço doméstico
pelos estados de São Paulo (R$ 505), Paraná (R$ 610), Rio Grande
do Sul (R$ 511) e Rio de Janeiro (R$ 512), que concentram, 55% dos
contribuintes do INSS
[13]
. Como falamos de trabalhadoras registradas que, por essa
condição, não ganham menos que o mínimo legal
, um valor médio tão próximo do piso constitui uma
evidência cabal de que a remuneração da grande maioria
delas é igual a este. Como os salários mínimos subiram,
nos últimos anos, bem mais do que o salário médio,
está aí a explicação da diferença percentual
entre o incremento remuneratório das empregadas domésticas e o
dos demais assalariados.
E daí? Qual o problema se essa elevação decorre mais do
aumento do salário mínimo que de uma relação
favoráel de oferta e demanda, como sustentado pelo IBGE (
www1.folha.uol.com.br/...
)? Nenhum, se as empregadas domésticas não fossem as
únicas assalariadas do país a receber
só
o mínimo. Qualquer outro empregado que ganhe menos de R$ 971,78 recebe
também, se tiver filhos com menos de 14 anos ou inváidos, o
salário-famíia, cujo valor real, usando como deflator o INPC,
esteve congelado entre 2004 e 2011 e caiu 30% em 2012
[14]
. Tomando como exemplo um empregado comum (celetista)
[NR 3]
) e uma domética, ambos integrantes de famílias-tipo brasileiras
(com dois filhos) e remuneração igual ao piso nacional, os ganhos
auferidos pelo primeiro em razão de seu trabalho (salário
mínimo + salário famíia) aumentaram 61,5% de 2003 a 2013;
os da segunda, 70,5%.
Isso acontece porque, embora os dois recebam o mesmo salário, a
remuneração efetiva do celetista tem em sua
composição uma parcela que não aumenta e inclusive diminui
(salário-família). Como as trabalhadoras domésticas
recebem apenas a parcela que aumenta, seus acréscimos percentuais
são maiores. A ilusão de ótica reside no fato de que,
não obstante isso, a massa monetária incorporada a suas
remunerações foi e é sempre menor que a dos trabalhadores
regidos pela CLT. Em 2013, ano em que o salário-família atingiu o
menor peso relativo de sua história face ao salário
mínimo, uma empregada doméstica com dois filhos remunerada pelo
piso ganha, por mês R$ 46,72 (R$ 560,64 no ano) menos que um celetista em
iguais condições uma diferença proporcional de 6,9%
(15,4% em 2004).
É importante assinalar esses aspectos não apenas para que se
tenha a real dimensão do incremento de ganhos verificado na
última década, mas também como anteparo à mistura
de má-fé e analfabetismo matemático que campeia na
imprensa monopolista brasileira. Não será nada surpreendente se
Veja, a Folha de São Paulo ou as organizações Globo
"noticiarem", daqui a dois ou três anos, a
redução desse incremento, insinuando alguma conexão entre
ela e a ampliação de direitos de modo a fazer crer que
está terá tido efeito negativo. Isso porque uma vez efetivada a
PEC 478, as trabalhadoras de casas particulares passarão a receber o
salário-família. Se este permanecer congelado, os aumentos
percentuais
da remuneração delas, com exceção do primeiro ano
(no qual se verificará um salto face à situação
atual) cairão, e muito. Medidos, porém, em quantidade de moeda,
que é o que importa, eles serão maiores do que hoje.
4. A Emenda 72 iguala os direitos das domésticas aos dos demais
trabalhadores.
Consta na ementada EC 72 que ela "altera a redação do
parágrafo único do art. 7º da Constituição
Federal para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os
trabalhadores domésticos e os demais trabalhadores urbanos e
rurais". Esse era, de fato, o intuito inicial do autor da proposta, o
deputado Carlos Bezerra (PMDB-MT). Sua proposta original (PEC 478 de 2010) ia
à raiz da diferenciação nefasta contra a categoria,
suprimindo o dispositivo constitucional que a faz possível: o
parágrafo único do art. 7º. Com auxílio ou sob
pressão de alguns juízes do Trabalho, a deputada Benedita da
Silva (PT-RJ), relatora da comissão parlamentar formada para discutir a
proposta, esvaziou parcialmente o projeto, frustrando a
equiparação.
Na reunião de 23 de maio de 2012 da referida comissão, os
juízes Fernando Luiz Gonçalves Rios Neto e Solange Barbosa de
Castro Coura sustentaram que alguns dos direitos trabalhistas estatuídos
como fundamentais no art. 7º da Constituição são
incompatíveis com o serviço doméstico e que a
revogação de seu parágrafo único seria entendida
pela ramificação trabalhista do Poder Judiciário (isto
é, por eles e por seus colegas) não como
equiparação do status constitucional das trabalhadoras em casa
alheia ao dos demais assalariados, mas como supressão dos poucos
direitos ali assegurados até então a elas. Essa
posição foi reafirmada pelo então presidente do Tribunal
Superior do Trabalho (TST), João Oreste Dalazen.
Em vez de denunciá-los à opinião pública, ao CNJ ou
de resolver o problema usando a fórmula da deputada Gorete Pereira
(PR-CE), que alterava a parte inicial do art. 7º para explicitar que as 34
garantias fundamentais ali estabelecidas caberiam aos trabalhadores
"urbanos e rurais, inclusive os domésticos"
[15]
, Benedita apresentou, entre junho e dezembro de 2012, três substitutivos
que apenas alteravam o parágrafo único do artigo em
questão sem revogá-lo e ampliavam o rol de garantias das
trabalhadoras de casas particulares sem igualá-lo ao dos outros
trabalhadores.
O primeiro estendia-lhes 17 dos 25 direitos faltantes sem condicionar nenhum
à regulamentação. Entre os oito que ficaram de fora, havia
apenas um que realmente não faria sentido estender ao trabalho
doméstico: a promoção da contratação de
mulheres, uma vez que elas já são mais de 90% da categoria e
não há razão para incentivar que continuem a fazer esse
tipo de serviço, ainda mais considerando que seu estatuto legal é
ainda inferior à CLT. A suposta incompatibilidade, todavia, serviu de
pretexto para que se continuassem a negar a essas trabalhadoras também
os pisos salariais por categoria (prejudicando, v.g., as profissionais de
enfermagem que cuidam de doentes a domicílio, contratadas por eles ou
por suas famílias); a jornada reduzida para o trabalho em revezamento de
horários; os adicionais de periculosidade e insalubridade (em
prejuízo das que trabalham expostas a substâncias nocivas à
saúde, ou seja, quase todas
[16]
); a proibição de trato discriminatório em razão da
natureza da atividade exercida; a participação nos lucros (que,
embora não existam, por definição, no serviço
doméstico, existem nas atividades de empresas cujos sócios
contratam, por meio e em nome delas, empregadas para suas casas particulares) e
a proteção contra a automação (aqui entendida
não como proibição desta, mas como garantia de
compensações e medidas de recolocação para os que
venham a perder seus postos de trabalho em razão dela).
No segundo substitutivo, excluiu-se também a igualdade de direitos entre
empregadas e avulsas, impedindo a extensão às diaristas do que se
passava a reconhecer às trabalhadoras com registro em carteira. De todas
as modificações impostas ao projeto original, essa foi a mais
grave pois, das afirmativas atualmente formuladas com tanta ligeireza em
âmbitos oficiais sobre o serviço doméstico no Brasil, a
única que não é uma lenda completa é justamente a
de que existe uma tendência por certo menor do que o alardeado
à substituição de trabalhadoras mensalistas por
diaristas: o Comunicado 90 do IPEA, embora baseado numa
aproximação sujeita a enome margem de erro
[17]
, mostra um expressivo crescimento, entre 1999 e 2009, desse regime de
contratação que correspondia, ao fim desse último
ano, a quase um terço dos empregos domésticos. Além disso,
foram condicionados à regulamentação, sem que se
estabelecesse prazo ou norma transitória para vigorar enquanto ela
não for elaborada, direitos como FGTS, seguro-desemprego, adicional
noturno, salário-família e seguro contra acidentes de trabalho.
As condições dessa futura e incerta regulamentação
ficaram estabelecidas no terceiro substitutivo, datado de dezembro, que foi o
que a Câmara aprovou e enviou ao Senado; ali, passou a constar que ela
deve assegurar facilidades tributárias aos empregadores. Essa
determinação lembra as indenizações a
proprietários de escravos previstas nas leis de 1871 (ventre livre) e
1885 (sexagenários) e embute, assim como elas, um problema a um
só tempo moral e econômico: por que o Estado brasileiro deveria
subsidiar a contratação de trabalhadoras para exercer abaixo do
padrão geral de direitos e garantias praticado no país e em
exclusivo benefício do conforto pessoal dos empregadores, já que
o serviço doméstico nem sequer gera riqueza? Esse problema acaba
relativizado por outra iniquidade: afinal, se o que esse mesmo Estado mais faz
há cinco anos é conceder favores fiscais injustificáveis a
monopólios, renunciando a mais de R$ 60 mil milhões em
contribuições previdenciárias, passa a não soar
tão absurdo que os empregadores domésticos recebam alguma
regalia; ao menos, sua contrapartida (uma elevação substancial
das garantias da maior e mais desprotegida das categorias profissionais do
país) é mais palpável que a do rebaixamento geral da
arrecadação do INSS, chegando até a parecer um
preço aceitável.
Ocorre, no entanto, que pelo menos em relação a dois dos mais
importantes entre os direitos básicos agora estendidos às
trabalhadoras de casa alheia, esse condicionamento não faz o menor
sentido, e isso pela singela razão de que o
salário-família e o seguro-desemprego não são pagos
pelo empregador, mas pela Seguridade Social. O mesmo vale para a
licença-maternidade, que as trabalhadoras domésticas já
têm e Benedita pretendia relegar também a esse limbo. Essa
garantia foi salva no Senado, na última hora, pela
intervenção de Paulo Bauer (PSDB-SC).
5. O aumento do custo da força de trabalho, consequência da
ampliação de direitos, levará à
diminuição da quantidade de vagas no serviço
doméstico e/ou à substituição de trabalhadoras
mensalistas por diaristas.
Ainda que todos os direitos agora estendidos às trabalhadoras
domésticas passassem a vigorar de imediato e sem nenhuma
compensação econômica ao empregador, o aumento do custo de
manutenção do emprego não passaria de 10%, (8%
correspondentes ao depósito mensal do FGTS, se é que não
se adotará um percentual menor que o dos celetistas, mais 1 ou 2% ao
seguro de acidentes
[18]
). O preço da demissão aumentaria um pouco mais, já que
ela enseja uma multa rescisória de 40% do valor devido ao FGTS no curso
da relação de trabalho que, diluída ao longo desta,
faria o acréscimo de despesa subir de 9 para 12,2 ou 13,2%, aos quais
podem-se somar o custo de equipamentos como luvas e calçados de
proteção. Ante o dado de que a grande maioria das trabalhadoras
em questão ganha salário mínimo ou algo próximo a
ele, isso seria muito pouco para ensejar a mudança de perfil que vem
sendo anunciada. No entanto, nem esse aumento ocorrerá, pois o acesso
das empregadas de casas particulares aos direitos em questão virá
acompanhado por facilidades fiscais aos empregadores.
O acréscimo de despesa destes últimos é menor que o
incremento de garantias constitucionais das empregadas porque algumas delas
(salário-família, seguro-desemprego) são pagas, como
mencionado anteriormente, pela Seguridade Social. Outras
(proibição explícita do trabalho infantil e da
discriminação por sexo, idade ou cor da pele) só chegariam
a ter alguma consequência econômica, e mesmo assim depois de anos,
se infringidas. E outras tantas (teto de jornada, adicional noturno, adicional
de horas extras) até teriam impacto, mas apenas se configurado seu fato
gerador. Para não pagar horas extras, basta não usufruir do
trabalho alheio por mais de 44 horas semanais, lembrando que a
Constituição brasileira admite a compensação
horária dentro da semana e que oito horas diárias de trabalho
podem significar dez entre os horários de entrada e saída,
já que se desconta o intervalo para refeição no
cômputo da jornada. E para não arcar com o adicional noturno,
basta não exigir que a empregada trabalhe após as 22h nem antes
das 5h, se é que o parâmetro a ser adotado para as trabalhadoras
domésticas não será pior que o dos celetistas. Para
aqueles empregadores que necessitem ou creiam necessitar dos serviços de
uma empregada doméstica por tal quantidade de tempo e em tais
horários, a substituição de mensalistas por diaristas
não é uma solução viável, pois a
remuneração destas últimas é, em
proporção ao tempo de trabalho, sabidamente
maior
[19]
.
Isto posto, e embora faltem dados quantitativos consistentes, existe, de fato,
uma tendência empiricamente perceptível à
substituição de empregadas mensalistas por diaristas, que decorre
de uma transformação cultural: embora ainda longe de aceitar a
ideia de cuidar da própria casa, as gerações mais jovens
dos estratos médios têm uma noção de privacidade
algo distinta da de seus pais e avós e não se sentem
confortáveis com a presença de pessoas externas a seu
núcleo em suas casas durante a totalidade do dia ou da semana, chegando
mesmo a ter algum escrúpulo (ou medo) de recorrer à
apropriação clandestina de menores. Isso é igual a dizer
que a sociedade brasileira transita, hoje, de forma ainda incipiente, da
família expandida à qual, durante centenas de anos, as
trabalhadoras domésticas integraram-se na condição servil
de agregadas à nuclear. Isso, e não o aumento do custo da
força de trabalho, pode levar a um acréscimo do número de
trabalhadoras contratadas por dia em detrimento da contratação
por mês.
Seja como for, a constatação dessa tendência ainda
que sobredimensionada deveria dar azo à equiparação
das garantias das diaristas às das trabalhadoras remuneradas em base
mensal, e não ao manejo da possibilidade de usá-las para elidir
obrigações trabalhistas. No embalo da EC 72, a intempérie
trabalhista e previdenciária a que encontram-se relegadas as
trabalhadoras domésticas remuneradas por dia deveria começar a
ser encarada como o que é: uma infâmia perpetrada sem qualquer
suporte conceitual ou normativo pelo braço judicial do Estado brasileiro.
A relação de assalariamento é concebida na
legislação brasileira nos mesmos termos em que o é no
mundo dos fatos: considera-se empregado quem, a troco de dinheiro ou
remuneração
in natura,
trabalha com regularidade em condições de
subordinação, não importando se a
remuneração se dá em base mensal, semanal, diária
ou atrelada ao desempenho. Mesmo quando ausente o segundo desses elementos
(regularidade), a Constituição brasileira, como já visto,
assegura aos trabalhadores que preencham os outros dois a mesma cobertura
trabalhista e previdenciária dos assalariados em sentido estrito.
Exemplos conhecidos são os portuários e alguns trabalhadores
rurais contratados em época de safra: a inexistência de
vínculo permanente com um empregador determinado não significa,
para essas pessoas, ausência de subordinação, já que
não se traduz no poder de determinar as condições de
tempo, local e modo em que carregarão e descarregarão navios ou
colherão cacau. Isso é que diferencia o status laboral/legal
desses trabalhadores chamados de avulsos face ao dos
profissionais liberais ou autônomos.
No caso das trabalhadoras de casas alheias, nada disso é tido em conta.
As que prestam serviços esporádicos a contratantes diversos
não estão cobertas pela legislação trabalhista e
previdenciária porque a Constituição deixa e
deixará, por obra e graça da senhora Benedita, de assegurar-lhes
a igualdade de direitos face às trabalhadoras com vínculo
empregatício. Mas mesmo as que trabalham em caráter regular para
uma mesma pessoa ou família não têm, muitas vezes, nenhum
direito reconhecido, ainda que sejam, a toda evidência, empregadas.
Isso acontece porque enquanto a CLT determina que é empregado, com todas
as garantias daí decorrentes, quem trabalha sob a direção
alheia mediante remuneração em caráter
não-eventual
, a Lei 5.859, que rege o trabalho em casas particulares, dispõe que
é empregada doméstica quem trabalha sob a direção
alheia mediante remuneração em caráter
contínuo
. Apegando-se a essa diferença meramente vocabular, a justiça do
Trabalho considera que só existe continuidade e, portanto,
relação de emprego doméstico quando a trabalhadora
presta serviços a seu patrão em todos os dias da semana ou, pelo
menos, em dias consecutivos, isentando de qualquer obrigação
trabalhista ou fiscal quem contrate uma trabalhadora para prestar
serviços domésticos três vezes por semana, não
importa quantos anos ou décadas dure esse liame. A consequência
dessa cretinice hermenêutica é manter alguns milhões de
brasileiras sem qualquer dos direitos elementares inscritos na
Constituição, quer se trate dos agora estendidos à
categoria ou dos que ela já detinha. A correção disso
é algo tão premente quanto foi durante anos, e continua sendo, a
equiparação das trabalhadoras de casas particulares ao restante
dos assalariados.
Algumas conclusões
Longe de se encontrar em extinção, o trabalho em casa alheia
é, e não está num horizonte visível que deixe de
ser, um elemento fundante da estrutura social brasileira o que revela,
de forma incontrastável, o caráter profunda e basalmente arcaico
e desigual dessa estrutura, tanto pelo lado da oferta de trabalho (já
que se trata de uma ocupação intrinsecamente precária)
quanto pelo da demanda (que implica que alguns milhões de brasileiros
são animicamente incapazes de limpar a própria casa, passar a
própria roupa, fazer a própria comida ou cuidar dos
próprios filhos).
A tentativa de fazer crer que isso esteja em vias de deixar de ser assim
é uma manifestação oficial e coletiva do que Freud chamou
de negação um mecanismo de defesa do ego que consiste na
"tentativa de não aceitar na consciência algum fato que
perturba" e "na tendência de fantasiar que certos
acontecimentos não são, de fato, do jeito que são, ou que
na verdade nunca aconteceram"
[20]
. Com efeito, é difícil para um governo e uma sociedade
autocomplacentes, triunfalistas e dependentes da opinião externa como se
tornou o Brasil na última década explicar ao mundo o fato de que
existe aqui um contingente de trabalhadoras com status constitucional de
subcidadãs comparável ao da Índia. É certo, por
outro lado, que o próprio fato de que isso cause desconforto já
é um progresso numa sociedade que convivia de forma naturalizada com a
semiescravidão doméstica havia centenas de anos. O aforismo
implicado aqui é o de que a hipocrisia é, como dizia o duque La
Rochefoucauld, uma homenagem que o vício presta évirtude.
Falar em trabalho escravo ou semiescravo não éuma licença
retórica. A própria ministra-chefe da SPM, Eleonora Menicucci,
recorreu a esse termo quando declarou a
O Globo
que "estamos definitivamente retirando as mulheres trabalhadoras
domésticas do sistema de escravidão no nosso país"
[21]
. Que alguém com sua posição reconheça publicamente
a existência e a gravidade desse quadro é algo meritório e
provavelmente inédito na história do Brasil. E é,
principalmente, uma elogiável mudança de postura face ao veto de
Lula em 2006, por sugestão dos Ministérios da Previdência e
do Trabalho e Emprego, à extensão do
salário-família, FGTS, multa por demissão e
seguro-desemprego às trabalhadoras domésticas, que o Congresso
aprovara já naquele ano
[22]
.
O diagnóstico de Menicucci só não é ainda mais
exato e valioso porque ela deixa-se contaminar pelo triunfalismo e cede
à tentação de sobredimensionar os méritos do
governo que integra ao usar a palavra "definitivamente" quando, como
demonstrado, para isso ainda falta muito, a começar pela
efetivação das disposições da Emenda 72 pendentes
de regulamentação. O que se aprovou esta semana está para
a situação das trabalhadoras domésticas como algumas leis
anteriores à Abolição (ventre livre, sexagenários,
Eusébio de Queirós) estão para ela: importantes, embora
contraditórias e pouco efetivas; positivas, mas insuficientes.
É difícil entender porque não se chegou à
equiparação plena entre as garantias das trabalhadoras
domésticas e as do restante dos trabalhadores. Afinal, não houve
contra ela mais que uma resistência difusa, no mais das vezes
envergonhada, de alguns estratos médios reacionários. A
oposição parlamentar e a imprensa monopolista que, como se
diz na Argentina, não comem vidro , mostraram-se, ao menos em
público, simpáticas ou neutras. Até a revista
Veja,
que assumiu desde a eleição de Lula o papel de porta-voz dos
setores fascistas das classes médias, deixou de lado o habitual discurso
raivoso e, embora permitindo-se alguma conjectura sobre os efeitos da
ampliação de garantias sobre o nível de emprego, saudou-a
como um progresso civilizatório.
O recuo verificado face ao teor inicial da proposta tampouco pode ser explicado
pela heterogeneidade ideológica do bloco parlamentar oficialista. Muito
ao contrário, tanto o projeto inicial de equiparação plena
quanto a redação alternativa que a preservaria face ao
obstáculo imposto por setores do Judiciário partiram de
integrantes da ala direita desse bloco (PMDB e PR). O parcial esvaziamento da
iniciativa original foi obra da relatora do projeto, Benedita da Silva,
ex-empregada doméstica e figura emblemática do PT. Mesmo a
entidade corporativa dos juízes do Trabalho (Anamatra) já
defendeu, em mais de uma ocasião, a equiparação plena. O
fato de a EC 72 ter sido aprovada por unanimidade no Senado e por 347 votos
contra 2 na Câmara também indica que não era
necessário qualquer recuo: o Congresso teria votado, sem maiores
resistências, a equiparação. Que ela não tenha sido
conquistada, é algo que, portanto, deve-se debitar principalmente
à pusilanimidade do governo e do PT.
Não é útil, porém, à compreensão do
problema restringir o foco da anáise ao PT. A postura adotada pela
oposição parlamentar e extraparlamentar de direita e de esquerda
torna facilmente compreensível que o mesmo governo que, por covardia
atávica, frustrou parcialmente o que seria uma conquista de
dimensões incalculáveis para a classe trabalhadora colha todos os
benefícios políticos da extensão limitada de garantias que
se acabou por aprovar.
À parte a atuação do senador Paulo Bauer em defesa da
licença-maternidade, o PSDB não teve, durante a
tramitação do projeto que resultou na EC 72, idéia melhor
do que tentar impor à reivindicação judicial dos direitos
das trabalhadoras domésticas um prazo curto de prescrição
proposta rejeitada e que, a rigor, pouco ou nada mudaria, posto que o
Judiciário já o aplica mesmo sem respaldo na lei
[23]
. Após a aprovação da emenda, já anuncia que
procurará, na regulamentação, isentar os empregadores
domésticos da multa rescisória calculada sobre o saldo do FGTS
[24]
. Considerando, em todo caso, a índole e a vida pregressa da
oposição de direita, já é bastante que ela
não tenha se oposto pura e simplesmente à ampliação
de garantias.
Muito pior que isso é constatar que, durante toda a fase de
discussão do que veio a se tornar a Emenda 72, os esforços da
bancada do Partido do Socialismo e da Liberdade (PSoL), única
organização não-oficialista de esquerda com
representação parlamentar, estavam postos, de forma excludente,
no reparte das presidências das comissões temáticas da
Câmara. Nem seu senador, nem seus três deputados levantaram em
qualquer momento a voz contra as alterações emplacadas por
Benedita e pelos demais membros da comissão especial. Da parte do PSTU e
outras seitas autorreferentes menores que propõem-se fazer passar por
oposição de esquerda ao governo petista, o assunto tampouco
recebeu como por ocasião dos vetos de 2006 maior
atenção, embora envolvesse questões de interesse da maior
das categorias profissionais existentes no Brasil. Como cereja do bolo, um dos
melhores intelectuais dessa esquerda (Ricardo Antunes) escreve em
O Estado de São Paulo
, quatro dias antes da aprovação da emenda, um artigo em que, a
par de repetir com certo toque de erudição algumas
simplificações oficialistas ora problematizadas
(equiparação plena, "primeira abolição",
tendência à substituição de empregadas mensalistas
por diaristas), ainda aponta para as potenciais consequências negativas
do suposto fim do trabalho doméstico (ao menos em sua
configuração mais arcaica) sobre a divisão sexual do
trabalho nos estratos médios da sociedade brasileira
[25]
.
A EC 72, portanto, merece ser saudada como a mais importante reforma social
verificada no Brasil desde o advento da Constituição de 1988. Mas
deve ser posta, ao mesmo tempo, sob exame crítico e, sobretudo, sob
observação atenta no que toca à sua
regulamentação e, o que não é menos importante, ao
tratamento judicial que receberá. Sua existência é talvez,
o primeiro sinal seguro de que o Brasil vive algum progresso
sócio-cultural. Suas falhas, a história de sua
tramitação e a postura dos diversos setores do espectro
políico perante ela indicam, entretanto, o caráter ainda
incipiente desse progresso.
Notas
[1] Comparação entre a PNAD 2011 e o Report on Employment &
Unemployment Survey 2009-10.
[2] Em 2010, a PNAD não foi realizada por ser ano de censo.
[3] A causa principal disso, é bom que se diga, não é a
urbanização: a comparação entre as PNADs de 1992 e
2001 aponta uma queda de 34% no peso da atividade agrícola sobre o total
da ocupação feminina (de 24,7 para 16,2%), sendo que os censos
dos anos imediatamente anteriores (1991 e 2000) indicam redução
de apenas 23% na relação entre a população do campo
e o total de habitantes do país. (de 24,5% para 18,7%). Já a
comparação entre os censos de 2000 e 2010 mostra uma queda de
16,6% na relação entre a população rural e o total
de pessoas que vivem no território brasileiro (de 18,7 para 15,6%),
enquanto a redução do peso da atividade agrícola sobre a
ocupação feminina no mesmo período (PNADs de 2001 e 2011)
foi de 30,8% (de 16,2 para 11,2%).
[4] Segundo a PNAD 2011, 71% das trabalhadoras domésticas não
estão registradas.
[5]
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
. Tal artigo tipificava como simples infração, punível com
multa administrativa, "deixar de apresentar à autoridade
judiciária de seu domicílio, no prazo de cinco dias, com o fim de
regularizar a guarda, adolescente trazido de outra comarca para a
prestação de serviço doméstico".
[6] A Convenção 182 versa sobre as Piores Formas de Trabalho
Infantil e obriga os Estados aderentes a elaborar uma relação de
atividades tidas como particularmente nocivas para crianças e
adolescentes e a comprometer-se com sua abolição em
caráter prioritário.
[7] Nos termos do ECA, "a guarda obriga a prestação de
assistência material, moral e educacional à criança ou
adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros,
inclusive aos pais" (art. 33) e "destina-se a regularizar a posse de
fato", isto é, o rapto (§ 1º). Em termos práticos,
sua concessão a pessoas estranhas à família de origem do
menor diferencia-se da adoção por apenas um elemento: o direito
à herança, que existe para a criança ou adolescente
adotado, mas não para aquela que está apenas sob a guarda de
terceiro. Que isso se mescle com uma relação de trabalho,
é um típico exemplo da presença de elementos feudais na
estrutura sócio-econômica brasileira.
[8] Os grupos ocupacionais da PNAD são estabelecidos com base na
Classificação Nacional de Atividade Econômica (CNAE), que
toma por base a atividade-fim do empregador, e não na
Classificação Brasileira de Ocupações (CBO),
referenciada ao trabalho efetivamente exercido pelo trabalhador. Assim, quem
exerce tarefas burocrático-administrativas numa escola ou num hospital
é computado como trabalhador em educação ou em
saúde.
[9] Segundo a Nota Técnica 118 (
www.dieese.org.br/notatecnica/2012/notaTec118salarioMinimo2013.pdf
) do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Sócio-Econômicos (DIEESE), o salário mínimo
brasileiro atingiu, em 2013, seu maior valor desde 1984; em 1983, em plena
crise econômica internacional deflagrada no ano anterior (1982),
após dois choques petrolíferos sucessivos (1973 e 1979) e ao fim
de duas décadas de queda livre iniciadas com o golpe de 64, ele
equivalia a R$ 689.
[10] Informação mais detalhada sobre os componentes do
cálculo da renda encontra-se nas notas técnicas da PNAD.
[11] 2009, por ser um ano atípico para o emprego doméstico, pode
não ser o melhor paradigma, somente sendo mencionado aqui porque os
dados da PNAD que se discutem neste tópico são relativos a esse
ano. Seja como for, em 2011 o salário médio das empregadas
domésticas foi, segundo o AEPS, de R$ 616. Embora o salário
mínimo nacional fosse de R$ 545, cabe aqui a mesma
ponderação sobre os pisos regionais, que eram de R$ 736
(Paraná), R$ 639 (Rio de Janeiro), R$ 610 (Rio Grande do Sul) e R$ 600
(São Paulo).
[12] Não se ignora que o AEPS, por basear-se em
informações repassadas pelos empregadores ao INSS quando do
recolhimento de contribuições, pode apresentar
distorções para baixo em virtude do costume que têm alguns
empregadores de declarar, para fim de pagamentos ao fisco
previdenciário, um salário menor que aquele com que efetivamente
remuneram seus empregados. Ainda assim, parece ser, quando se trata de
empregados com registro, uma fonte mais confiável para fins de
aferição de seus salários que as informações
da PNAD sobre renda, ou mesmo sobre rendimentos do trabalho, baseadas em
autodeclaração.
[13] Desafortunadamente, o AEPS não traz a desagregação
desse dado entre as categorias de segurados da Previdência. Porém,
é difícil que a proporção de empregadas
domésticas concentradas nesses estados seja menor que a de segurados em
geral.
[14] O valor do salário-família é definido pela
remuneração bruta do empregado. Em tese, há duas faixas de
valor mas, em 2011, o limite máximo da menor delas (à qual
corresponderia um salário-família mais alto) foi superado pelo
salário mínimo, o que fez com que os trabalhadores até
então nela situados passassem todos à faixa seguinte, com a
consequente redução do valor auferido.
[15] Embora trabalhem obrigatoriamente em zona urbana ou rural, os
trabalhadores domésticos são considerados, na sistemática
consagrada entre os profissionais do direito no Brasil, uma categoria à
parte, nem urbana e nem rural para fins de direitos e garantias.
[16] O produto de limpeza residencial mais utilizado no Brasil é a
chamada água sanitária, que vem a ser nada menos que cloro em
estado puro.
[17] Conforme referido no próprio Comunicado 90, seus autores usaram
como critério de aferição do número de diaristas a
informação sobre a quantidade de empregos prestada pelas
entrevistadas. Aquelas que declararam trabalhar para mais de um empregador
foram classificadas como diaristas; as que informaram ter um só
empregador, como mensalistas.
[18] As alíquotas de contribuição ao seguro de acidentes
de trabalho são de 1, 2 ou 3% conforme o grau de risco da atividade.
É improvável que o governo venha a considerar o serviço
doméstico como atividade de risco alto (alíquota de 3%) ou mesmo
médio (2%).
[19] A renda das trabalhadoras computadas como diaristas pelo critério
do Comunicado 90 do IPEA é superior, em todas as edições
da PNAD, à das classificadas como mensalistas; mesmo tendo presente a
crítica formulada aqui ao uso da renda, e não do salário,
como parâmetro, não há porque pensar que essa
diferença não corresponda, ao menos em parte, à
remuneração pelo trabalho. A isto acresça-se que as
diaristas, frequentemente, são contratadas para limpeza ou para lidar
com roupas, não estando obrigadas, por exemplo, a cozinhar.
[20]
www.psiqweb.med.br/...
[21]
g1.globo.com/...
[22]
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/Msg/Vep/VEP-577-06.htm
.
[23]
legis.senado.gov.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/123669.pdf
.
[24]
www1.folha.uol.com.br/...
[25]
www.estadao.com.br/...
[NR 1] 259
{NR 2] No Brasil chamam de renda aos rendimentos de actividades não
rentistas, como os salariais.
[NR 2] Celetista: o trabalhador regido pela Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT), a lei trabalhista geral brasileira. Além dos
contratos temporários, o Brasil tem três regimes trabalhistas: o
da CLT, o do serviço doméstico e o dos funcionários
públicos.
[*] Pesquisador em temas de Trabalho e Seguriança Social. Atuou como
consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do
Ministério do Desenvolvimento Social do Brasil (MDS) contratado pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Foi
também pesquisador-bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) no âmbito do Programa Nacional de Pesquisa para o
Desenvolvimento (PNPD).
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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