As cinco dificuldades para escrever a verdade
Hoje, o escritor que deseje combater a mentira e a ignorância tem de
lutar, pelo menos, contra cinco dificuldades. É-lhe necessária a
coragem
de dizer a verdade, numa altura em que por toda a parte se empenham em
sufocá-la; a
inteligência
de a reconhecer, quando por toda a parte a ocultam; a
arte
de a tornar manejável como uma arma; o
discernimento
suficiente para escolher aqueles em cujas mãos ela se tornará
eficaz; finalmente, precisa de ter
habilidade
para difundir entre eles. Estas dificuldades são grandes para os que
escrevem sob o jugo do fascismo; aqueles que fugiram ou foram expulsos
também sentem o peso delas; e até os que escrevem num regime de
liberdades burguesas não estão livres da sua acção.
1- A CORAGEM DE DIZER A VERDADE
É evidente que o escritor deve dizer a verdade, não a calar nem a
abafar, e nada escrever contra ela. É sua obrigação evitar
rebaixar-se diante dos poderosos, não enganar os fracos, naturalmente,
assim como resistir à tentação do lucro que advém
de enganar os fracos. Desagradar aos que tudo possuem equivale a renunciar seja
o que for. Renunciar ao salário do seu trabalho equivale por vezes a
não poder trabalhar, e recusar ser célebre entre os poderosos
é muitas vezes recusar qualquer espécie de celebridade. Para isso
precisa-se de coragem. As épocas de extrema opressão costumam ser
também aquelas em que os grandes e nobres temas estão na ordem do
dia. Em tais épocas, quando o espírito de sacrifício
é exaltado ruidosamente, precisa o escritor de muita coragem para tratar
de temas tão mesquinhos e tão baixos como a
alimentação dos trabalhadores e o seu alojamento.
Quando os camponeses são cobertos de honrarias e apontados como exemplo,
é corajoso o escritor que fala da maquinaria agrícola e dos
pastos baratos que aliviariam o tão exaltado trabalho dos campos. Quando
todos os altifalantes espalham aos quatro ventos que o ignorante vale mais do
que o instruído, é preciso coragem para perguntar: vale mais
porquê? Quando se fala de raças nobres e de raças
inferiores, é corajoso o que pergunta se a fome, a ignorância e a
guerra não produzem odiosas deformidades. É igualmente
necessária coragem para se dizer a verdade a nosso próprio
respeito, sobre os vencidos que somos. Muitos perseguidos perdem a faculdade de
reconhecer as suas culpas. A perseguição parece-lhes uma
monstruosa injustiça. Os perseguidores são maus, dado que
perseguem, e eles, os perseguidos, são perseguidos por causa da sua
virtude. Mas essa virtude foi esmagada, vencida, reduzida à
impotência. Bem fraca virtude ela era! Má, inconsistente e pouco
segura virtude, pois não é admissível aceitar a fraqueza
da virtude como se aceita a humidade da chuva. É necessária
coragem para dizer que os bons não foram vencidos por causa da sua
virtude, mas antes por causa da sua fraqueza. A verdade deve ser mostrada na
sua luta com a mentira e nunca apresentada como algo de sublime, de
ambíguo e de geral; este estilo de falar dela convém justamente
à mentira. Quando se afirma que alguém disse a verdade é
porque houve outros, vários, muitos ou um só, que disseram outra
coisa, mentiras ou generalidades, mas
aquele
disse a verdade, falou em algo de prático, concreto, impossível
de negar, disse a única coisa que era preciso dizer.
Não se carece de muita coragem para deplorar em termos gerais a
corrupção do mundo e para falar num tom ameaçador, nos
sítios onde a coisa ainda é permitida, da desforra do
Espírito. Muitos simulam a bravura como se os canhões estivessem
apontados sobre eles; a verdade é que apenas servem de mira a
binóculos de teatro. Os seus gritos atiram algumas vagas e generalizadas
reivindicações, à face dum mundo onde as pessoas
inofensivas são estimadas. Reclamam em termos gerais uma justiça
para a qual nada contribuem, apelam pela liberdade de receber a sua parte dum
espólio que sempre têm partilhado com eles. Para esses, a verdade
tem de soar bem. Se nela só há aridez, números e factos,
se para a encontrar forem precisos estudos e muito esforço, então
essa verdade não é para eles, não possui a seus olhos nada
de exaltante. Da verdade, só lhes interessa o comportamento exterior que
permite clamar por ela. A sua grande desgraça é não
possuírem a mínima noção dela.
2- A INTELIGÊNCIA DE RECONHECER A VERDADE
Como é difícil dizer a verdade, já que por toda a parte a
sufocam, dizê-la ou não parece à maioria uma simples
questão de honestidade. Muitas pessoas pensam que quem diz a verdade
só precisa de coragem. Esquecem a segunda dificuldade, a que consiste em
descobri-la. Não se pode dizer que seja fácil encontrar a verdade.
Em primeiro lugar, já não é fácil descobrir qual
verdade merece ser dita. Hoje, por exemplo, as grandes nações
civilizadas vão soçobrando uma após outra na pior das
barbáries diante dos olhos pasmados do universo.
Acresce ainda o facto de todos sabermos que a guerra interna, dispondo dos
meios mais horríveis, pode transformar-se dum momento para o outro numa
guerra exterior que só deixará um montão de escombros no
sitio onde outrora havia o nosso continente. Esta é uma verdade que
não admite dúvidas, mas é claro que existem outras
verdades. Por exemplo: não é falso que as cadeiras sirvam para a
gente se sentar e que a chuva caia de cima para baixo. Muitos poetas escrevem
verdades deste género. Assemelham-se a pintores que esboçassem
naturezas mortas a bordo dum navio em risco de naufragar. A primeira
dificuldade de que falamos não existe para eles, e contudo têm a
consciência tranquila. "Esgalham" o quadro num desprezo
soberano pelos poderosos, mas também sem se deixarem impressionar pelos
gritos das vítimas. O absurdo do seu comportamento engendra neles um
"profundo" pessimismo que se
vende
bem; os outros é que têm motivos para se sentirem pessimistas ao
verem o modo como esses mestres se vendem. Já nem sequer é
fácil reconhecer que as suas verdades dizem respeito ao destino das
cadeiras e ao sentido da chuva: essas verdades soam normalmente de outra
maneira, como se estivessem relacionadas com coisas essenciais, pois o trabalho
do artista consiste justamente em dar um ar de importância aos temas de
que trata.
Só olhando os quadros de muito perto é que podemos discernir a
simplicidade do que dizem: "Uma cadeira é uma cadeira" e
"Ninguém pode impedir a chuva de cair de cima para baixo". As
pessoas não encontram ali a verdade que merece a pena ser dita.
Alguns consagram-se verdadeiramente às tarefas mais urgentes, sem medo
aos poderosos ou á pobreza, e no entanto não conseguem encontrar
a verdade. Faltam-lhe conhecimentos. As velhas superstições
não os largam, assim como os preconceitos ilustres que o passado
frequentemente revestiu de uma forma bela. Acham o mundo complicado em demasia,
não conhecem os dados nem distinguem as relações. A
honestidade não basta; são precisos conhecimentos que se podem
adquirir e métodos que se podem aprender. Todos os que escrevem sobre as
complicações desta época e sobre as
transformações que nela ocorrem necessitam de conhecer a
dialéctica materialista, a economia e a história. Estes
conhecimentos podem adquirir-se nos livros e através da aprendizagem
prática, por mínima que seja a vontade necessária. Muitas
verdades podem ser encontradas com a ajuda de meios bastante mais simples,
através de fragmentos de verdades ou dos dados que conduzem à sua
descoberta. Quando se quer procurar, é conveniente ter-se um
método, mas também se pode encontrar sem método e
até sem procura. Contudo, através dos diversos modos como o acaso
se exprime, não se pode esperar a representação da verdade
que permite aos homens saber como devem agir. As pessoas que só se
empenham em anotar os factos insignificantes são incapazes de tornar
manejáveis as coisas deste mundo. O objectivo da verdade é uno e
indivisível. As pessoas que apenas são capazes de dizer
generalidades sobre a verdade não estão à altura dessa
obrigação.
Se alguém está pronto a dizer a verdade e é capaz de a
reconhecer, ainda tem de vencer três dificuldades.
3-A ARTE DE TORNAR A VERDADE MANEJÁVEL COMO UMA ARMA
O que torna imperiosa a necessidade de dizer a verdade são as
consequências que isso implica no que diz respeito à conduta
prática. Como exemplo de verdade inconsequente ou de que se
poderão tirar consequências falsas, tomemos o conceito largamente
difundido, segundo o qual em certos países reina um estado de coisas
nefasto, resultante da barbárie. Para esta concepção, o
fascismo é uma vaga de barbárie que alagou certos países
com a violência de um fenómeno
natural.
Os que assim pensam, entendem o fascismo como um novo movimento, uma terceira
força justaposta ao capitalismo e ao socialismo (e que os domina). Para
quem partilha esta opinião, não só o movimento socialista,
mas também o capitalismo teriam podido, se não fosse o fascismo,
continuar a existir, etc. Naturalmente que se trata de uma
afirmação fascista, de uma capitulação perante o
fascismo. O fascismo é uma fase histórica na qual o capitalismo
entrou; por consequência, algo de novo e ao mesmo tempo de velho. Nos
países fascistas, a existência do capitalismo assume a forma do
fascismo, e
não é possível combater o fascismo senão enquanto
capitalismo, senão enquanto forma mais nua, mais cínica, mais
opressora e mais mentirosa do capitalismo.
Como se poderá dizer
a verdade sobre o fascismo que se recusa, se quem diz essa verdade se
abstêm de falar contra o capitalismo que engendra o fascismo? Qual
será o alcance prático dessa verdade?
Aqueles que estão contra o fascismo sem estar contra o capitalismo, que
choramingam sobre a barbárie causada pela barbárie, assemelham-se
a pessoas que querem receber a sua fatia de assado de vitela, mas não
querem que se mate a vitela. Querem comer vitela, mas não querem ver
sangue. Para ficarem contentes, basta que o magarefe lave as mãos antes
de servir a carne. Não são contra as relações de
propriedade que produzem a barbárie, mas são contra a
barbárie.
As recriminações contra as medidas bárbaras podem ter uma
eficácia episódica, enquanto os auditores acreditarem que
semelhantes medidas não são possíveis na sociedade onde
vivem. Certos países gozam do raro privilégio de manter
relações de propriedade capitalistas por processos aparentemente
menos violentos. A democracia ainda lhes presta os serviços que noutras
partes do mundo só podem ser prestados mediante o recurso à
violência, quer dizer, aí a democracia chega para garantir a
propriedade privada dos meios de produção. O monopólio das
fábricas, das minas, dos latifúndios gera em toda a parte
condições bárbaras; digamos que em alguns sítios a
democracia torna essas condições menos visíveis. A
barbárie torna-se visível logo que o monopólio já
só pode encontrar protecção na violência nua.
Certas nações que conseguem preservar os monopólios
bárbaros sem renunciar às garantias formais do direito, nem a
comodidades como a arte, a filosofia, a literatura, acolhem carinhosamente os
hóspedes cujos discursos procuram desculpar o seu país natal de
ter renunciado a semelhantes confortos: tudo isso lhes será útil
nas guerras vindouras. É licito dizer-se que reconheceram a verdade,
aqueles que reclamam a torto e a direito uma luta sem quartel contra a
Alemanha, apresentada como verdadeira pátria do mal da nossa
época, sucursal do inferno, caverna do Anticristo? Desses, não
será exagerado pensar que não passam de impotentes e nefastos
imbecis, já que a conclusão do seu
blá-blá-blá aponta para a destruição desse
pais inteiro e de todos os seus habitantes (o gás asfixiante, quando
mata, não escolhe os culpados).
O homem frívolo, que não conhece a verdade, exprime-se
através de generalidades, em termos nobres e imprecisos. Encanta-o
perorar sobre "os" alemães ou lançar-se em grandes
tiradas sobre "o" Mal, mas a verdade é que nós, aqueles
a quem o homem frívolo fala, ficamos embaraçados, sem saber que
fazer de semelhantes ditames. Afinal de contas, o nosso homem decidiu deixar de
ser alemão? E lá por ele ser bom, o inferno vai desaparecer?
São desta espécie as grandes frases sobre a barbárie. Para
os seus autores, a barbárie vem da barbárie e desaparece
graças à educação moral que vem da
educação. Que miséria a destas generalidades, que
não visam qualquer aplicação pratica e, no fundo,
não se dirigem a ninguém.
Não nos admiremos que se digam de esquerda, "mas" democratas,
os que só conseguem elevar-se a tão fracas e improfícuas
verdades. A "esquerda democrática" é outra destas
generalidades-álibís onde correm a acoitar-se as pessoas
inconsequentes, isto é, os incapazes de viver até as
últimas consequências as verdades que quer a esquerda, quer a
democracia contêm. Reclamar-se alguém da "esquerda
democrática" significa, em termos práticos, que pertence ao
grupo dos ineptos para revolucionar ou conservar as coisas, ao clã dos
generalistas da verdade.
Não é a mim, fugido da Alemanha com a roupa que tinha no corpo,
que me vão apresentar o fascismo como uma espécie de força
motriz natural impossível de dominar. A escuridade dessas
descrições esconde as verdadeiras forças que produzem as
catástrofes. Um pouco de luz, e logo se vê que são homens a
causa das catástrofes. Pois é, amigos: vivemos num tempo em que
o homem é o destino do homem.
O fascismo não é uma calamidade natural, que se possa compreender
a partir da "natureza" humana. Mas mesmo confrontados com
catástrofes naturais, há um modo de descrevê-las digno do
homem, um modo que apela para as suas qualidades combativas.
O cronista de grandes catástrofes como o fascismo e a guerra (que
não são catástrofes naturais) deve elaborar uma verdade
praticável,
mostrar as calamidades que os que possuem os meios de produção
infligem às massas imensas dos que trabalham e não os possuem.
Se se pretende dizer eficazmente a verdade sobre um mau estado de coisas,
é preciso dizê-la de maneira que permita reconhecer as suas causas
evitáveis. Uma vez reconhecidas as causas evitáveis, o mau estado
de coisas pode ser combatido.
4- DISCERNIMENTO SUFICIENTE PARA ESCOLHER OS QUE TORNARÃO A VERDADE
EFICAZ
Tirando ao escritor a preocupação pelo destino dos seus textos,
as usanças seculares do comércio da coisa escrita no mercado das
opiniões deram-lhe a impressão de que a sua missão
terminava logo que o intermediário, cliente ou editor, se encarregava de
transmitir aos outros a obra acabada. O escritor pensava: falo e ouve-me quem
me quiser ouvir. Na verdade, ele falava e quem podia pagar ouvia-o. Nem todos
ouviam as suas palavras, e os que as ouviam não estavam dispostos a
ouvir tudo o que se lhes dizia. Tem-se falado muito desta questão, mas
mesmo assim ainda não chega o que se tem dito: limitar-me-ei aqui a
acentuar que "escrever a alguém" tornou-se pura e simplesmente
"escrever". Ora não se pode escrever a verdade e basta:
é absolutamente necessário escrevê-la a
"alguém" que possa tirar partido dela. O conhecimento da
verdade é um processo comum aos que lêem e aos que escrevem. Para
dizer boas coisas, é preciso ouvir bem e ouvir boas coisas. A verdade
deve ser pesada por quem a diz e por quem a ouve. E para nós que
escrevemos, é essencial saber a quem a dizemos e quem no-la diz.
Devemos dizer a verdade sobre um mau estado de coisas àqueles que o
consideram o pior estado de coisas, e é desses que devemos aprender a
verdade. Devemos não só dirigir-nos às pessoas que
têm uma certa opinião, mas também aos que ainda a
não têm e deviam tê-la, ditada pela sua própria
situação. Os nossos auditores transformam-se continuamente!
Até se pode falar com os próprios carrascos quando o
prémio dos enforcamentos deixa de ser pago pontualmente ou o perigo de
estar com os assassinos se torna muito grande. Os camponeses da Baviera
não costumam querer nada com revoluções, mas quando as
guerras duram demais e os seus filhos, no regresso, não arranjam
trabalho nas quintas, tem sido possível ganhá-los para a
revolução.
Para quem escreve, é importante saber encontrar o tom da verdade. Um
acento suave, lamentoso, de quem é incapaz de fazer mal a uma mosca,
não serve. Quem, estando na miséria, ouve tais lamúrias,
sente-se ainda mais miserável. Em nada o anima a cantilena dos que,
não sendo seus inimigos, não são certamente seus
companheiros de luta. A verdade é guerreira, não combate
só a mentira, mas certos homens bem determinados que a propagam.
5- HABILIDADE PARA DIFUNDIR A VERDADE
Muitos, orgulhosos de ter a coragem de dizer a verdade, contentes por a terem
encontrado, porventura fatigados com o esforço necessário para
lhe dar uma forma manejável, aguardam impacientemente que aqueles cujos
interesses defendem a tomem em suas mãos e consideram
desnecessário o uso de manhas e estratagemas para a difundir.
Frequentemente, é assim que perdem todo o fruto do seu trabalho. Em
todos os tempos, foi necessário recorrer a "truques" para
espalhar a verdade, quando os poderosos se empenhavam em abafá-la e
ocultá-la. Confúcio falsificou um velho calendário
histórico nacional, apenas lhe alterando algumas palavras. Quando o
texto dizia: "o senhor de Kun condenou à morte o filósofo
Wan por ter dito frito e cozido", Confúcio substituía
"condenou à morte" por "assassinou". Quando o texto
dizia que o Imperador Fulano tinha sucumbido a um atentado, escrevia "foi
executado". Com este processo, Confúcio abriu caminho a uma nova
concepção da história.
Na nossa época, aquele que em vez de "povo", diz
"população", e em lugar de terra", fala de
"latifúndio", evita já muitas mentiras, limpando as
palavras da sua magia de pacotilha. A palavra "povo" exprime uma
certa unidade e sugere interesses comuns; a "população"
de um território tem interesses diferentes e opostos. Da mesma forma,
aquele que fala em "terra" e evoca a visão pastoral e o
perfume dos campos favorece as mentiras dos poderosos, porque não fala
do preço do trabalho e das sementes, nem no lucro que vai parar aos
bolsos dos ricaços das cidades e não aos dos camponeses que se
matam a tornar fértil o "paraíso".
"Latifúndio" é a expressão justa: torna a
aldrabice menos fácil. Nos sítios onde reina a opressão,
deve-se escolher, em vez de "disciplina", a palavra
"obediência", já que mesmo sem amos e chefes a
disciplina é possível, e caracteriza-se portanto por algo de mais
nobre que a obediência. Do mesmo modo, "dignidade humana" vale
mais do que "honra": com a primeira expressão o
indivíduo não desaparece tão facilmente do campo visual;
por outro lado, conhece-se de ginjeira o género de canalha que costuma
apresentar-se para defender a honra de um povo, e com que prodigalidade os
gordos desonrados distribuem "honrarias" pelos famélicos que
os engordam.
Ao substituir avaliações inexactas de acontecimentos nacionais
por notações exactas, o método de Confúcio ainda
hoje é aplicável. Lénine, por exemplo, ameaçado
pela polícia do czar, quis descrever a exploração e a
opressão da ilha Sakalina pela burguesia russa. Substituiu
"Rússia" por "Japão" e "Sakalina"
por "Coreia". Os métodos da burguesia japonesa faziam lembrar
a todos os leitores os métodos da burguesia russa em Sakalina, mas a
brochura não foi proibida, porque o Japão era inimigo da
Rússia. Muitas coisas que não podem ser ditas na Alemanha a
propósito da Alemanha, podem sê-lo a propósito da
Áustria. Há muitas maneiras de enganar um Estado vigilante.
Voltaire combateu a fé da Igreja nos milagres, escrevendo um poema
libertino sobre a Donzela de Orleans, no qual são descritos os milagres
que sem dúvida foram necessários para Joana d'Arc permanecer
virgem no exército, na Corte e no meio dos frades.
Pela elegância do seu estilo e a descrição de aventuras
galantes inspiradas na vida relaxada das classes dirigentes, levou estas a
sacrificar uma religião que lhes fornecia os meios de levar essa vida
dissoluta. Mais e melhor deu assim às suas obras a possibilidade de
atingir por vias ilegais aqueles a quem eram destinadas. Os poderosos que
Voltaire contava entre os seus leitores favoreciam ou toleravam a
difusão dos livros proibidos, e desse modo sacrificavam a polícia
que protegia os seus prazeres. E o grande Lucrécio sublinha
expressamente que, para propagar o ateísmo epicurista confiava muito na
beleza dos seus versos.
Não há dúvida de que um alto nível literário
pode servir de salvo-conduto à expressão de uma ideia. Contudo,
muitas vezes desperta suspeitas. Então, pode ser indicado
baixá-lo intencionalmente. É o que acontece, por exemplo, quando
sob a forma desprezada do romance policial, se introduz à socapa, em
lugares discretos, a descrição dos males da sociedade. O grande
Shakespeare baixou o seu nível por considerações bem mais
fracas, quando tratou com uma voluntária ausência de vigor o
discurso com que a mãe de Coriolano tentou travar o filho, que marchava
sobre Roma: Shakespeare pretendia que Coriolano desistisse do seu projecto,
não por causa de razões sólidas ou de uma
emoção profunda, mas por uma certa fraqueza de carácter
que o entregava aos seus velhos hábitos. Encontramos igualmente em
Shakespeare um modelo de manhas na difusão da verdade: o discurso de
Marco António perante o corpo de César, quando repete com
insistência que Brutus, assassino de César, é um homem
honrado, descrevendo ao mesmo tempo o seu acto, e a descrição do
acto provoca mais impressão que a do autor.
Jonathan Swift propôs numa das suas obras o seguinte meio de garantir o
bem-estar da Irlanda: meter em salmoura os filhos dos pobres e vendê-los
como carniça no talho. Através de minuciosos cálculos,
provava que se podem fazer grandes economias quando não se recua diante
de nada. Swift armava voluntariamente em imbecil, defendendo uma maneira de
pensar abominável e cuja ignomínia saltava aos olhos de todos. O
leitor podia-se mostrar mais inteligente, ou pelo menos mais humano que Swift,
sobretudo aquele que ainda não tinha pensado nas consequências
decorrentes de certas concepções.
São consideradas baixas as actividades úteis aos que são
mantidos no fundo da escala: a preocupação constante pela
satisfação de necessidades; o desdém pelas honrarias com
que procuram engodar os que defendem o país onde morrem de fome; a falta
de confiança no chefe quando o chefe nos leva a todos à
catástrofe; a falta de gosto pelo trabalho quando ele não
alimenta o trabalhador; o protesto contra a obrigação de ter um
comportamento de idiotas; a indiferença para com a família,
quando de nada serve a gente interessar-se por ela. Os esfomeados são
acusados de gulodice; os que não têm nada a defender, de cobardia;
os que duvidam dos seus opressores, de duvidar da sua própria
força; os que querem receber a justa paga pelo seu trabalho, de
preguiça, etc.
Numa época como a nossa, os governos que conduzem as massas humanas
à miséria, têm de evitar que nessa miséria se pense
no governo, e por isso estão sempre a falar em fatalidade. Quem procura
as causas do mal, vai parar à prisão antes que a sua busca atinja
o governo. Mas é sempre possível opormo-nos à conversa
fiada sobre a fatalidade: pode-se mostrar, em todas as circunstâncias,
que a fatalidade do homem é obra de outros homens. Até na
descrição de uma paisagem se pode chegar a um resultado conforme
à verdade, quando se incorporam à natureza as coisas criadas pelo
homem.
RECAPITULAÇÃO
A grande verdade da nossa época (só seu conhecimento em nada nos
faz avançar, mas sem ela não se pode alcançar nenhuma
outra verdade importante) é que o nosso continente se afunda na
barbárie porque nele se mantêm pela violência determinadas
relações de propriedade dos meios de produção. De
que serve escrever frases corajosas mostrando que é bárbaro o
estado de coisas em que nos afundamos (o que é verdade), se a
razão de termos caído nesse estado não se descortina com
clareza? É nossa obrigação dizer que, se se tortura,
é para manter as relações de propriedade. Claro que ao
dizermos isso perdemos muitos amigos; aqueles que são contra a tortura
porque julgam ser possível manter sem ela as relações de
propriedade (o que é falso).
Devemos dizer a verdade sobre as condições bárbaras que
reinam no nosso país a fim de tornar possível a
acção que as fará desaparecer, isto é, que
transformará as relações de propriedade.
Devemos dizê-la aos que mais sofrem com as relações de
propriedade e estão mais interessados na sua
transformação, ou seja: aos operários e aos que podemos
levar a aliarem-se com eles, por não serem proprietários dos
meios de produção, embora associados aos lucros e
benefícios da
exploração de quem produz. E, é
claro, devemos proceder com astúcia.
Devemos resolver em conjunto, e ao mesmo tempo, estas cinco dificuldades,
já que não podemos procurar a
verdade sobre condições bárbaras sem pensar nos que sofrem
essas condições e estão dispostos a utilizar esse
conhecimento. Além disso, temos de pensar em apresentar-lhes
a verdade sob uma forma susceptível de se transformar numa arma nas suas
mãos, e simultaneamente com a astúcia suficiente para que a
operação não seja descoberta e impedida pelo inimigo.
São estas as virtudes exigidas ao escritor empenhado em dizer a verdade.
(*) Texto de 1934. Tradução de Ernesto Sampaio. Publicado no Diário de Lisboa de 25/Abr/82.
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