O BE e as agressões imperialistas
por Jorge Cadima
O texto sobre a Síria apresentado pelo Bloco de Esquerda na Assembleia
da República e aprovado com os votos favoráveis de CDS, PSD, PS,
BE e PAN "poderia ter sido subscrito pelo próprio Donald
Trump", como disse eloquentemente João Oliveira, ao apresentar a
declaração do voto contra do PCP. O texto do BE reproduz todas as
patranhas da propaganda de guerra de agressão à Síria.
Nada diz sobre as causas de fundo daquela guerra, mais uma no infindável
rol de guerras e ingerências do imperialismo. Nem sobre a natureza
terrorista dos exércitos fundamentalistas, armados e financiados pelo
imperialismo para impor o seu domínio na região, através
da morte e da destruição dos estados que recusam submeter-se.
É uma vergonha. Mas é uma opção cujas causas
importa compreender.
Como todas as guerras de agressão do imperialismo, a guerra contra a
Síria não se combate apenas no plano militar. Combate-se
também através de enormes e mentirosas campanhas
propagandísticas que diariamente nos entram em casa, em tudo
análogas às patranhas já usadas noutras guerras. Foi assim
com as inexistentes 'armas de destruição em massa de Saddam
Hussein'. Foi assim com os inexistentes 'bombardeamentos de Kadafi sobre o seu
povo', explicitamente desmentidos na altura pelo embaixador de Portugal na
Líbia, Rui Lopes Aleixo (Antena 1, 23/2/11) e mais tarde pelo
Relatório da Comissão dos Negócios Estrangeiros da
Câmara dos Comuns britânica (Setembro 2016). Foi assim com a
campanha de demonização de Milosevic, apresentado como
'carniceiro dos Balcãs' e 'novo Hitler', para 'justificar' a guerra da
NATO contra a Jugoslávia, não sendo porém manchete que dez
anos após a sua morte nos calabouços do Tribunal Penal
Internacional para a ex-Jugoslávia, este mesmo 'tribunal dos vencedores'
acabou por confessar que Milosevic não tinha patrocinado qualquer
genocídio (
Avante!
, 18/8/16).
Há inúmeros documentos oficiais das potências imperialistas
que confessam as suas provocações e mentiras de guerra.
Lembrem-se os
Pentagon Papers
relativos à guerra do Vietname. Ou o inacreditável documento
conhecido por Operação Northwoods, elaborado pelos Chefes de
Estado Maior dos EUA em 1962 com "uma breve mas concreta
descrição de pretextos que possam fornecer
justificação para uma intervenção militar dos EUA
em Cuba" e que incluia, entre muitas outras, a sugestão de
organizar campanhas bombistas em território dos EUA ou a
encenação de derrubes de aviões civis ou o afundamento de
barcos (com "falsos funerais de falsas vítimas" e tudo), a
serem atribuídos à Revolução Cubana. Basta lembrar
os documentos descobertos nos arquivos ingleses, relativos ao plano secreto
aprovado ao mais alto nível dos EUA e Reino Unido em 1957, para que os
respectivos serviços secretos "encenassem falsos incidentes
fronteiriços como pretexto para uma invasão da Síria pelos
seus vizinhos pró-ocidentais" (
The Guardian
, 27/9/03). Este plano, concebido muitos anos antes de Assad (ou mesmo o seu
pai) chegar à Presidência da Síria, é praticamente o
guião do que se passa na Síria desde 2011, pois "o plano
apela ao financiamento dum 'Comité Síria Livre' e o armamento de
'facções políticas com paramilitares' [...] no interior da
Síria. A CIA e o MI6 instigariam sublevações
internas" com o objectivo de levar a cabo uma 'mudança de regime'
que, segundo o próprio texto do plano, não seria popular e
"irá provavelmente exigir numa fase inicial medidas repressivas e
um exercício do poder arbitrário". São as
'democracias ocidentais' em todo o seu esplendor...
BE junta voz ao coro dos propagandistas
Os dirigentes do BE não podem alegar que desconhecem que, desde
há décadas, o imperialismo promove exércitos terroristas
contra-revolucionários para fazer o seu trabalho sujo e para destruir
quem se atravesse nos seus planos de hegemonia mundial. Foi assim na
Nicarágua, Angola, Moçambique, Afeganistão (como confessou
Z. Brzezinski ao
Nouvel Observateur
, 15/1/88). O ex-ministro dos Negócios Estrangeiros britânico
Robin Cook escreveu: "a
Al Qaeda
, que literalmente significa 'a base', era na sua origem o ficheiro de
computador contendo os milhares de mujahedins que foram recrutados e treinados
com a ajuda da CIA, para derrotar os russos" (
The Guardian
, 8/7/05). Os dirigentes do BE não podem alegar que não sabem que
a estratégia de militarizar, desde o seu início em 2011, os
protestos na Síria, foi oficialmente apadrinhada, financiada e armada
pelo imperialismo, chegando ao ponto de pagar os 'salários' dos
mercenários, não apenas através das ditaduras
filo-imperialistas do Golfo (
ABC
ou
Times of Israel
, 1/4/12), mas directamente pelos EUA (
New York Times
, 18/9/14, ou
Reuters
, 22/6/15). Não podem alegar que desconhecem notícias da
própria imprensa que mais tem promovido a guerra contra a Síria,
como por exemplo este título: "Agora a verdade vem ao de cima: como
os EUA alimentaram a ascensão do ISIS na Síria e no Iraque" (
The Guardian
, 3/6/15). Não podem alegar que não sabem dos planos
imperialistas para de novo retalhar o Médio Oriente, a fim de tomar
controlo directo dos seus gigantescos recursos.
Os dirigentes do BE sabem tudo isto, mas em vez de serem solidários com
as vítimas do imperialismo e da tentativa de
recolonização, juntam a sua voz ao coro dos propagandistas das
guerras de rapina. Não é a primeira vez. Não é
apenas na Síria. Pelo contrário, já se transformou num
padrão sistemático. Quando surgem as grandes campanhas
mediáticas que rodeiam as operações de ingerência e
agressão do imperialismo (nomeadamente do sedeado na Europa), os
dirigentes do BE credibilizam essas campanhas. Ao fazê-lo, contribuem
para impedir que se fortaleça o movimento popular pela paz e contra a
guerra e encobrem a natureza do imperialismo. Foi assim em 2011, com a
Líbia, tendo o BE votado a favor da Resolução do
Parlamento Europeu que abria caminho à guerra da NATO. É assim em
relação à martirizada Venezuela bolivariana. É
assim em relação à RPD da Coreia, país que nunca
agrediu outro, mas que está sob a constante ameaça duma nova
guerra de extermínio dos EUA, como em 1950-53. As vítimas
são apresentadas como algozes. E os algozes continuam os seus crimes.
Favores com favores se pagam
Será possível que os dirigentes do BE não conheçam
os resultados de todas estas guerras, agressões, campanhas? Será
possível que não vejam o autêntico desastre deixado pelos
27 anos de guerras de agressão que se seguiram ao desaparecimento da
URSS? Não, não é possível. Trata-se duma
opção, não de desconhecimento ou
subestimação.
Porque insistem os dirigentes do BE neste caminho? A resposta ajuda a
esclarecer um aparentemente insondável mistério: o de uma
força que se apresenta como de esquerda ser, desde a sua origem,
autenticamente levada ao colo pela comunicação social do grande
capital. Com destaque para o
Público,
jornal fundado por um dos maiores capitalistas portugueses, e para o
Expresso
e a
SIC
, daquele que foi até há bem pouco tempo o responsável
português no Clube de Bilderberg (tendo Balsemão entretanto
passado a pasta a Durão Barroso,
Público
, 27/5/15).
O grande capital sempre procurou (múltiplas) formas de canalizar o
descontentamento social para rumos que não ponham em causa o seu poder.
Historicamente, foi esse o papel das social-democracias que, em particular nos
países do centro capitalista (veja-se o caso inglês), trocavam o
seu apoio às guerras imperialistas por concessões no campo
social, permitindo-lhes manter a sua base de apoio e combater os comunistas e
outras forças alternativas ao sistema capitalista. Hoje, vivemos tempos
de descrédito do capitalismo, tempos de crise e de ataque feroz aos
direitos e condições de vida dos trabalhadores e povos. É
inevitável o descontentamento popular, a revolta de largas massas contra
um sistema que apenas lhes oferece a miséria, o desemprego, a
exploração, a guerra. Nesse contexto, torna-se ainda mais urgente
impedir que esse descontentamento fortaleça uma real alternativa de
sistema. O grande capital sabe onde reside essa alternativa. Os dirigentes do
BE asseguram simultaneamente o ataque 'de esquerda' ao PCP e a 'cobertura de
esquerda' às campanhas do imperialismo. Tem sido assim, desde a
política internacional à AutoEuropa. Favores com favores se
pagam. Ao mesmo tempo, o grande capital sabe que, chegado o momento da verdade,
os dirigentes do BE estarão do lado do sistema. O exemplo do governo
Syriza na Grécia é, a este respeito, elucidativo. A
traição do governo Syriza às aspirações do
povo grego (reafirmadas no notável referendo de Julho de 2015) foi
completa: é hoje o agente, não apenas de mais austeridade, mas
também duma legislação laboral ferozmente anti-popular. Os
dirigentes do BE, que em 2015 se penduravam ao pescoço de Tsipras,
assobiam hoje para o lado. Mas a matriz ideológica e social é a
mesma, e o comportamento em situação análoga não
seria previsivelmente diferente. Nesse sentido, o slogan do BE 'esquerda de
confiança' terá, afinal, mais verdade do que se poderia supor.
Falta é dizer 'confiança' para quem.
Perigos enormes
O mais dramático é que o comportamento dos dirigentes do BE leva
água ao moinho do partido da guerra no seio do imperialismo. Não
vivemos hoje as décadas após a II Guerra Mundial quando, sob o
impacto da derrota do nazi-fascismo e a força e prestígio dos
comunistas e das forças revolucionárias a nível mundial, o
grande capital se via obrigado a fazer concessões importantes para
suster o seu poder. Hoje aceitará 'causas fracturantes' que não
põem em causa o capitalismo (e até se podem tornar novas fontes
de lucro). Mas a profunda crise sistémica do capitalismo e as
dificuldades que encontra em dela sair, incluindo as crescentes rivalidades
entre EUA e UE; as dramáticas consequências sociais (e ambientais)
das políticas de exploração e pilhagem desenfreadas; o
descontentamento explosivo; e a emergência de novas potências
económicas, que as velhas potências imperialistas se recusam a
aceitar tudo isto está a conduzir o planeta a uma crise de
grandes proporções. Os planos de guerra, já concebidos
há décadas (veja-se a entrevista do General Loureiro dos Santos
ao
Diário de Notícias
, 13/3/00), estão a tornar-se cada vez mais aliciantes para uma parte
considerável do grande capital das velhas potências imperialistas.
Basta ver a desenfreada corrida militarista em curso, com os anúncios de
enormes subidas nos orçamentos militares dos EUA, França,
Alemanha, Espanha e outras potências, e com a anunciada
militarização da UE (CEP). Ou o recente número da revista
The Economist
(27/1/18), dedicado a "A Próxima Guerra".
Não custa a perceber os perigos enormes que a Humanidade enfrenta. Uma
verdadeira força de esquerda só pode virar baterias contra o
imperialismo e os planos de guerra em marcha, sendo solidária com quem
resiste e pugnando por criar uma vasta frente anti-imperialista e pela paz.
Não é esta a opção dos dirigentes do BE.
08/Março/2018
O original encontra-se em
www.avante.pt/pt/2310/temas/148988/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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