A crise do neoliberalismo e os desafios para a esquerda

por Óscar Azócar G. [*]

Lagos & Bush. A ideia de que os Estados Unidos entraram numa etapa de decadência irreversível, que é mantida por um neoliberal clássico como Jeffrey Sachs, pode ser ilustrada com a evidência de duas mentiras do governo de Bush: o anúncio da vitória completa no Iraque e os insistentes anúncios da recuperação da economia norte-americana.

Hoje em dia já muita gente sabe que a guerra não pode ser ganha e que o mais provável é uma retirada humilhante. Por outro lado, os enormes gastos na indústria bélica não geraram reactivação mas sim desemprego e maior recessão, visto que a automatização e robotização próprias da sofisticada indústria de armamento da actualidade liquidam empresas obsoletas e incrementam o défice fiscal, que já chega aos 500 milhões de dólares.

Até agora, a reprodução do capitalismo imperialista dos Estados Unidos baseou-se na espoliação do resto do mundo, através da sua posição hegemónica em relação a outras potências imperialistas que também usufruem – ainda que em menor grau – desta exacção.

Para o imperialismo norte-americano é indispensável esta pressão sobre o resto do mundo, mesmo com o risco de o desestabilizar, o que questiona uma das condições de valorização do capital de periferia: estabilidade sociopolítica relativa.

Com efeito, os povos acreditam cada vez menos na democracia neoliberal "representativa", tutelada e restringida, com sistemas eleitorais desproporcionais, decisões radicadas em poderes factuais nacionais e supranacionais, o que garante a impunidade do terrorismo do Estado e só aceita um papel muito limitado dos partidos políticos, que sente nas lutas populares uma ameaça para o seu domínio e que, ainda por cima, consegue aceitar a participação dos cidadãos como mecanismo de adesão ao sistema.

No entanto, o governo norte-americano e os seus seguidores continuam apresentando e defendendo o ultraje como exemplo de democracia, como se consignou na Conferência Especial sobre Segurança da OEA, realizada nos dias 27 e 28 de Outubro de 2003 na Cidade do México. Disse-se ali que "A democracia representativa é uma condição indispensável para estabilidade, a paz e o desenvolvimento dos Estados do Hemisfério… Muitas das novas ameaças, preocupações e outros desafios à segurança hemisférica são de natureza multinacional e podem requerer uma cooperação hemisférica adequada… reconhecemos a importância e a utilidade que têm, para aqueles Estados que fazem parte, os instrumentos e acordos interamericanos, tais como o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, TIAR,!!! (o mesmo tratado invocado desavergonhadamente pelos Estados Únicos durante a guerra das Malvinas) e o Tratado Americano de Soluções Pacíficas (Pacto de Bogotá)".

Com este critério actuou o governo ianque no Equador e na Bolívia para conter, neutralizar e "canalizar institucionalmente" os levantamentos populares, quando estes, pesar de todas as tentativas para os evitar, finalmente ocorreram.

A crise é indiscutível na América Latina. Nela convergem elementos conjecturais e estruturais que perpetuam a desigualdade económica, social, política, cultural: privatizações, planos de ajuste, entrega dos recursos naturais às multinacionais, abertura comercial indiscriminada, endividamento externo, concentração da propriedade da terra, desindustrialização selvagem, desmantelamento das leis de protecção social, serviços públicos quebrados, flexibilização laboral, desemprego, pobreza, fome, etc, etc, etc.

Por sua vez, as greves, tomadas de terras, cortes de ruas, lutas antiprivatizadoras e manifestações de massas na Bolívia, Equador, Paraguai, Porto Rico, El Salvador, Panamá, República Dominicana, Argentina, México, Uruguai, Colômbia, Chile, Brasil, Venezuela, revelam a magnitude sociopolítica das resistências populares e expressam uma continuidade com o processo aberto pelo "argentinazo" iniciado em Dezembro de 2001.

Este "clima de revolta" dos de baixo derrubou seis presidentes constitucionais nos últimos anos, desmontou regimes autoritários e corruptos, travou processos de privatização, desencadeou uma nova onda anti-imperialista. Daí as manifestações maciças contra as guerras desencadeadas pelos Estados Unidos, o apoio da Venezuela à "revolução boliviana", a persistente solidariedade popular com o povo e o governo de Cuba, as possibilidades abertas no Brasil com a eleição de Lula, as possibilidades de avanço eleitoral da esquerda no Uruguai, as atitudes contraditórias – ainda que não no fundo – entre governos como o da Bolívia e Argentina com o dos Estados Unidos.

O GOVERNO DE LAGOS, ALIADO INCONDICIONAL DOS EUA

Os Estados Unidos iniciaram nos anos 90 uma nova etapa da sua estratégia de dominação planetária, a da "guerra preventiva". Triunfou o sector mais reaccionário e belicista do establishment norte-americano, o de Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz, Dean Cheney, os quais, desde o fim dos anos 80, lutavam para aproveitar "a oportunidade" do derrube do campo socialista para assentar sem contrapeso o seu domínio no mundo através da força.

A "guerra preventiva" já não necessita de actos ou ameaças reais às quais responder, desencadeia-se simplesmente contra ameaças ou perigos "potenciais", cuja definição é tão ampla como arbitrária. Este exercício de poder neofascista tem como sua primeira aplicação prática a invasão do Panamá no tempo do Bush pai; e, depois, seguem a guerra do Golfo, Jugoslávia, Afeganistão, Iraque, e como pano de fundo de um período maior, a guerra prolongada contra o povo palestino através de Israel.

A América Latina sofreu largamente o intervencionismo norte-americano. O de agora é diferente, mais perigoso, e corresponde, no período mais recente, a um momento de crise do domínio ianque e a elevação das lutas populares. Às invasões militares do passado, às ditaduras militares impostas no Chile e Argentina, agrega-se agora a invasão do Panamá, Granada, as tentativas de golpe na Venezuela, a invasão e o golpe anticonstitucional no Haiti para derrubar um governo constitucional, o esforço pela anexação neocolonial do continente através da ALCA.

Os governos da Concertação apoiaram sem reservas esta estratégia, jogando no papel de ponta de lança para a instalar. O governo de Ricardo Lagos – militante socialista e um dos líderes do Consenso de Buenos Aires, expressão da chamada Terceira Via na América Latina – esmerou-se particularmente como aliado incondicional da política exterior norte-americana, desbravador de caminhos para o estabelecimento da ALCA e de uma força militar multinacional "antisubversiva", destinada a ser substituto das tropas norte-americanas na América Latina e no Mundo.

Aplicando esta política, passaram por cima da maioria dos chilenos, incluindo um importante sector da Concertação, ao condenar Cuba nas Nações Unidas, ao permitir operações de espionagem abertamente provocadoras para com a Argentina, ao serem os primeiros a enviar tropas para o Haiti respondendo à chamada do governo norte-americano para substituírem as suas tropas, ao desencadearem um desatinado confronto com a Venezuela a propósito do apoio à reivindicação marítima da Bolívia – precedida, que vergonha! -, pela imediata declaração de apoio que o Presidente Lagos deu de uma reunião do Grupo do Rio à tentativa golpista nesse país que foi derrotada em poucas horas pela mobilização popular. Tal como agora, que demorou em reconhecer a vitória do governo de Hugo Chávez no referendo.

Os Estados Unidos não procuram o livre comércio com a ALCA. O que procuram é assegurar na sua retaguarda estratégica a garantia e protecção da livre circulação e protecção do capital transnacional norte-americano, que apoderar-se do coração andino do continente, especialmente da bacia amazónica, para consolidar o controlo geopolítico e militar dos recursos vitais da biodiversidade e importantes recursos naturais e ambientais.

Com o pretexto da "luta contra o narcotráfico", quer militarizar o continente através do Plano Colômbia, a Iniciativa Regional Andina, o Plano Povoa Panamá, as operações militares "conjuntas" nos diversos países e a instalação de novas plataformas de espionagem e intervenção militar no Equador, Curazao, Aruba, Honduras, El Salvador, e na chamada "Tripla Fronteira" (Argentina, Paraguai, Brasil) para eliminar as FARC na Colômbia, o governo de Hugo Chávez na Venezuela e todo o progresso nas lutas dos povos da América Latina.

Não receia impulsionar o separatismo de regiões geográficas ricas em recursos, redefinindo Estados formalmente constituídos, para benefício das multinacionais e dos seus aliados locais, como a "Tripla Fronteira", na Amazónia ou Tarija na Bolívia, etc.; não receia promover a pregação chauvinista, como na Bolívia, Chile e Peru, incitando a "guerra entre países" em substituição da "guerra de classes"; não receia apoiar tácticas de agregação do movimento social mediante governos de "consenso e concertação nacional".

O TLC do Chile com os Estados Unidos – aprovado ilegal e inconstitucionalmente pelo Parlamento chileno, pois contradiz e ultrapassa leis orgânicas constitucionais e a própria Constituição – amarra ao Chile o esgotado modelo económico vigente que nos condena a ser um país produtor e exportador de matérias primas, prejudica a agricultura, que não poderá competir com produtos subsidiados pelo governo dos Estados Unidos, impõe o monopólio norte-americano no sector farmacêutico e nos produtos transgénicos, dando como pretexto o direito da propriedade intelectual e patentes, com as consequências negativas sobre o preço dos medicamentos e a saúde da população.

O mais grave, talvez, é que reforça o despojo dos nossos jazigos mineiros iniciado em 1983 pela ditadura de Pinochet, justamente agora quando cresce a demanda legítima para que o país possa beneficiar da sua riqueza mineira. O debate acerca do royalty – mecanismo que permite recuperar a renda mineira que pertence ao Chile –, em que a Concertação e o governo se viram obrigados pela força alcançada pelo movimento nacional de defesa e recuperação do cobre, a propor uma lei de royalty muito insuficiente, mostrou o enorme poder de que dispõem as multinacionais que, apoiadas pela falta de decisão real do governo, conseguiram esconder este objectivo. Mas a batalha acabou de começar. A mobilização nacional que empurra esta exigência continuará a crescer, na perspectiva da renacionalização do cobre.

A mobilização popular do continente impediu até agora que os Estados Unidos conseguissem os seus propósitos. O Foro Social das Américas, realizado em Quito entre 25 e 31 de Julho, constatou com satisfação que as negociações da ALCA se detiveram como consequência da pressão popular e as discrepâncias de vários governos. Já o III Encontro Hemisférico da Luta Contra a ALCA realizado em Havana tinha reafirmado a oposição ao acordo alcançado no topo de Monterrey (com a única reserva clara do governo nacionalista de Chávez) em torno da ALCA de acordo com as condições impostas pelo governo de Bush. A mesma rejeição se expressou em Puebla – seda da reunião do Comité de Negociações Comerciais, principal instância técnica da ALCA – onde os movimentos e a Aliança Social Continental repudiaram as pretensões de instituir uma ALCA "light" ou "extralight".

Apesar disso, o governo dos Estados Unidos não cede. Persegue agora os mesmos objectivos através de tratados bilaterais, que, ainda que tenham o mesmo conteúdo, inclusive chegam a rebaixar a ALCA, aproveitando a debilidade e a submissão dos governos da América Central e dos quatro países da região andina, com os quais desenvolve negociações actualmente.

É por isso que apoiamos plenamente os esforços da Campanha Continental contra a ALCA e os seus capítulos nacionais, que se concentram agora em combater os TLC's, impedindo que se ratifique o tratado com a América Central e que se subscreva o TLC andino.

Ao subordinar-se a interesses contrapostos aos da América Latina, o Chile caiu num perigoso afastamento da comunidade latino-americana, sem ser modelo de integração em benefício de outros países, tratados como o MERCOSUL, a ALADI, o Pacto Andino, são de qualquer maneira uma referência melhor que os tratados de livre comércio com os Estados Unidos.

Simpatizamos, portanto, com as iniciativas empreendidas pelos governos da Venezuela, Brasil, Argentina, em particular com a ideia de potenciar os nossos recursos naturais mediante empresas latino-americanas integradas. Isto responde a uma concepção de integração justa e solidária, baseada na cooperação que potenciará a nossa inserção na economia internacional através de uma frente comum dos países latino-americanos.

Este estacionamento boliviano baseia-se em vários elementos comuns: uma mesma história; um mesmo inimigo comum, o imperialismo norte-americano; uma mesma cultura, a latino-americana; uma mesma guerra revolucionária anticolonial e um mesmo processo de constituição do Estado. A integração económica, política, cultural na América Latina, tem raízes e fundamentos muito profundos.

ACELERAR A CONSTRUÇÃO DE UM MOVIMENTO POLÍTICO E SOCIAL NEOLIBERAL

O Chile foi cenário de uma contra-revolução neoliberal precoce que conduziu a um neoliberalismo maduro, que dizer, levou-se a cabo todo o programa de contra-reformas neoliberais, incluindo o retrocesso ideológico-cultural.

A ditadura desenvolveu muito o modelo económico chamado "livre mercado"; criou uma ordem institucional excluindo a esquerda, com sistema eleitoral binominal e papel tutelar das Forças Armadas; criou as condições para a fusão posterior entre a direita e o sector hegemónico da Concertação, o qual legitimou complacentemente a herança da ditadura. [1] Fez-nos transitar de uma estrutura de representação política para uma de baixa intensidade classista, sendo factor decisivo nesta transformação de "desafiliação" do Partido Socialista do seu ideal de esquerda. Gerou mudanças profundas nas ideias, valores e atitudes das pessoas como resultado do carácter invasivo do mercado, conjugado com um forte ressurgir do conservadorismo com a sua sequela de hipocrisia e discriminação social. Um exemplo é a influência de concepções integristas na Igreja Católica, que rejeita a educação sexual, o aborto, o divórcio.

É necessário imperativamente superar o retrocesso da consciência popular, especialmente no Chile, como condição para avançar na acumulação de forças. Isso é possível a partir de, pelo menos, quatro factores:

1- A violenta contraditoriedade do neoliberalismo, quem vive nesta sociedade sofre diariamente o seu domínio e portanto, podem, a partir da sua vida quotidiana, entrar em contradição e em luta com ele. Esse é o início do processo de consciência. [2]

2- A nova dimensão que adquiriram as mobilizações populares. A acção prática de luta, o desencadear processos carregados de emoção, é vital para a constituição da consciência de classe. Na actividade colectiva surge mais facilmente a disposição para "escutar" ideias novas, e em situações de actividade política intensa das massas, criam-se todas as condições para "adoptar" essas ideias, isto porque as pessoas desenvolvem emoções que as comprometem. Quaisquer que sejam as influências culturais que possam operar, os valores, crenças e símbolos serão preservados, modificados ou rejeitados segundo as características emocionais da experiência directa.

3- As sedimentações e o sentido comum positivo. Ainda que o neoliberalismo tenha conseguido irradiar fortemente as suas ideias, valores e atitudes, os rasgos de identidade e consciência popular mais ou menos desenvolvidos conseguem subsistir de qualquer forma.

Se é certo que hoje podem conviver na mesma pessoa elementos de um "antigo" sentido comum – que, segundo a nossa perspectiva, haveria que associar positivamente ao "bom senso" de que fala Gramsci – e um sentido comum neoliberal generalizado, ainda é mais certo que a prática colectiva é a única maneira de fazer "aflorar" esse "bom senso".

O "senso comum" para Gramsci é sempre um "produto histórico" que contém contraditoriamente as diferentes heranças do passado, encerra uma memória histórica positiva das massas subalternas e experiências que são o resultado do trabalho prático. É o caso das tradições e acervo de luta que provêm da experiência da Unidade Popular e da luta contra a ditadura, síntese de um enorme desenvolvimento popular.

4- E o mais importante: a actuação da esquerda revolucionária. Não se conseguirão acumular forças sem a intervenção de organizações que dirijam e guiem a organização, a luta e o amadurecimento da consciência popular; que se concentrem nos trabalhadores e consigam que se constituam num núcleo de uma frente em que se integrem nos mais diversos sectores; que elaborem uma plataforma política de mudanças e lemas adequados a cada momento; que adeqúem a táctica às mudanças do momento e sem perder de vista o objectivo estratégico; que forjem capacidade para conquistar o poder do Estado, transformá-lo e colocá-lo ao serviço das mudanças democráticas e revolucionárias.

Uma coisa é certa: continuará em movimento a luta dos movimentos sociais, de que há uma grande diversidade. Os trabalhadores estão desregulados, os indígenas e os sectores rurais estão empobrecidos; os que reivindicam soberania nacional sobre os recursos naturais; os que lutam pela ampliação das liberdades democráticas e pela democratização da sociedade, os estudantes e jovens; os que defendem os direitos humanos; os movimentos das mulheres; os ecologistas, que lutam contra a acção depredadora do neoliberalismo; os que lutam pelo reconhecimento da diversidade sexual; os das forças da intelectualidade e da cultura que rejeitam o possibilismo ou a submissão.

Continuarão a provocar confrontos, crises governamentais, diversos tipos de levantamentos. A nossa experiência indica que mais vale concentrar-se na organização, na luta e na unidade do povo, do que na actividade nas instituições do sistema.

Mas os movimentos sociais, por si só, não conduzem à superação do sistema de dominação imperante. Apesar de maciços e combativos, até agora não conseguiram criar novos governos populares.

Para superar a crise e evitar as diferenças do tecido social com a queda das esperanças, que amanhã podem deixar o terreno livre para as elites dominantes, é necessário acentuar a construção de um movimento social e político alternativo que seja capaz de abordar a questão central de qualquer transformação de base, a questão do poder do Estado.

Há quem critique os partidos da esquerda "tradicional" que, com os seus "estadocentrismos", estruturas verticais e "dirigismos", atentariam contra a horizontalidade, autonomia, estrutura participativa, etc, dos movimentos sociais. Não vem ao caso defender tais partidos, porque existiram. Mas generalizar, não se ajusta à realidade nem em relação aos partidos de esquerda, nem aos movimentos sociais.

A expressão autónoma dos movimentos sociais vale, em primeiro lugar e essencialmente, na relação com os mecanismos do sistema de domínio, com o Estado, os partidos políticos do sistema. Mas isso não significa separação nem muito menos contraposição com os partidos de esquerda, a experiência demonstra a necessidade de ambos se interrelacionarem.

No Brasil, os movimentos sociais dão lugar à constituição de partidos e frentes de esquerda que chegam ao governo. No Equador e na Bolívia, também se fundam novos partidos de esquerda que representam as causas dos povos originários e dos camponeses.

No Chile, o Partido Obrero Socialista surgiu a partir do desenvolvimento do movimento operário. Posteriormente, o triunfo da Unidade Popular e o processo revolucionário encabeçado por Salvador Allende, não teriam sido possíveis sem o desenvolvimento prévio de um poderoso movimento popular concebido como movimento político e social. Os seus diferentes segmentos confluíram numa demanda democrática global. O movimento estudantil e a sua luta pela reforma universitária em conjunto com o movimento estudantil secundário reivindicando universidade para todos; um movimento populacional com uma história de tomadas de terrenos organizadas e dirigidas pela Esquerda, que deram lugar aos povoados populares; um movimento camponês organizando-se rapidamente e passando a ser um actor político na medida em que tornou sua a exigência da reforma agrária; um movimento juvenil unitário e plural que se desenvolveu poderosamente ao integrar-se na luta anti-imperialista e antioligárquica; um movimento de mulheres muito vinculado à esquerda. Mas o período do governo de Salvador Allende também mostra que o accionar independente das massas foi inibido pela Unidade Popular, que conspirou contra a formação de um poder popular que poderia ter desempenhado um outro papel na defesa do processo de transformações.

Na realidade, a linha divisória estabelece-se melhor entre movimentos e partidos que encaram a luta com uma perspectiva transformadora, e movimentos e partidos que só pretendem "maquilhar" o neoliberalismo. Há quem condene o neoliberalismo mas considere impossível a sua transformação radical. Então, estabelecem-se posições tão cómodas como a que a opção mais lúcida seria lutar pela reforma do sistema e a inutilidade da luta pelo poder. Como alguém disse, a ideia ingénua de que "podemos assar um cordeiro em fogo lento sem que se dão conta".

Não são os subversivos que instalam a questão do poder, é a profundidade da crise que o instala. Isso significa nesta fase construir um contrapoder a partir de baixo, capaz de enfrentar com êxito um poder dominante que se defende com todos os recursos repressivos, financeiros e mediáticos ao seu alcance. Isto é, acumular experiências de acções directas e de reforço da consciência para os futuros enfrentamentos.

Os programas de reivindicações e de propostas institucionais de democracia directa como os referendos (Uruguai, ou mesmo agora a Venezuela); as iniciativas como a "Consulta Popular" ou os "Plebiscitos" no Brasil, Argentina ou México contra a ALCA e pelo não pagamento da dívida externa; a "Assembleia Popular" na Bolívia – para anular a manobra de Carlos Mesa e a sua pseudo Constituinte integrada no parlamento –, são elementos de auto-organização e de criação de uma "institucionalidade popular alternativa".

As lutas dos habitantes de Cochabamba pelo controlo da água em 2002 (conhecida como a "guerra da água"), as reivindicações dos indígenas equatorianos contra a pilhagem dos "trusts" petrolíferos nas zonas da sua pertença histórica, a mobilização continental em defesa da Amazónia, a luta das populações autóctones das regiões afectadas pelo Plano Povoa Panamá, representam tanto uma resistência histórica contra a colonização como uma faceta radical da luta ecológica.

Os movimentos reivindicativos dos assalariados e dos trabalhadores desempregados que assumem formas de luta radicais, não nas empresas – ainda que aí também existam –, mas nos protestos de rua, tanto nas grandes cidades como nas pequenas de periferia, formam já parte do novo sustento popular.

No Chile, as lutas destes dois últimos anos reafirmaram que o mais importante movimento social no Chile continua a ser o dos trabalhadores. Mas também há outros movimentos sociais que continuam a desempenhar um papel fundamental, como o movimento em defesa dos direitos humanos, com vitórias parciais, mas não definitivas; o das mulheres; o movimento estudantil; o povo mapuche; os movimentos ecologistas; o Movimento pela Diversidade Sexual; o Comité Nacional de Defesa e Recuperação do Cobre; Cultura em Movimento.

Nesta construção do sustento social e político deu-se um grande passo com a formação do PODEMOS, movimento das forças políticas e sociais de esquerda e progressistas, que aglutina o Partido Comunista, o Partido Humanista, MIR, Esquerda Cristã, Esquerda Socialista, Frente Unidos Venceremos, Movimento Patriótico Manuel Rodriguez e outras forças políticas, as Urracas de Meaux, e ainda outros movimentos sociais ecologistas, da diversidade sexual, do mundo cristão, da defesa da saúde e educação públicas, para exercer soberania sobre o cobre, movimentos culturais, correntes sindicais classistas e personalidades sociais e intelectuais. Sendo um movimento que se propõe construir uma alternativa de poder ao neoliberalismo, vai muito para alem do eleitoral, mas também participará nas próximas eleições municipais através de um pacto eleitoral entre o Partido Comunista e o Partido Humanista.

Os desafios para a esquerda chilena também derivam do papel que desempenharam as Forças Armadas servindo a oligarquia e o imperialismo norte-americano -- ao destruir o processo de transformações revolucionárias que levava a cabo o governo da Unidade Popular. Isso foi convertido interessadamente, por alguns, no argumento para justificar a sua viragem ao neoliberalismo. Chegará o momento, dizem, em que fatalmente as Forças Armadas voltarão a desempenhar o papel de contenção de qualquer projecto popular alternativo ao neoliberalismo.

Recusamos esse argumento facilista. Ainda que seja certo que no Chile, depois da ditadura, as Forças Armadas não se democratizaram nem se desvincularam da doutrina de segurança nacional, e que muitos responsáveis de violações dos direitos humanos permanecem impunes, a experiência de diversos processos revolucionários e progressistas na América Latina e a própria experiência do Chile mostram que as instituições militares não são impermeáveis às ideias de mudança social. Em certas ocasiões, a força do movimento popular conseguiu que desempenhassem, na totalidade ou em sectores importantes delas, um papel diferente, favorável aos interesses populares.

Foi o que aconteceu no Peru, Bolívia, Panamá, República Dominicana. Também foi o que aconteceu durante a Unidade Popular, em que um significativo sector, constitucionalista e patriótico, conseguiu durante três anos manter a hegemonia dentro das Forças Armadas, num período caracterizado pela permanente conspiração e desestabilização golpista dirigida pelo governo dos Estados Unidos. É o que se passa actualmente na Venezuela.

Hoje, as Forças Armadas na América Latina enfrentam uma nova situação que se caracteriza pelo fim da bipolaridade e da guerra fria, que desarmou o argumento gasto da cooptação da "luta contra o bloco comunista"; a passagem de ditaduras militares para democracias neoliberais, que ainda conservam em maior ou menor grau esboços de militarismo, deixaram algumas questões relativas às violações dos direitos humanos e aos actos corruptos protagonizados por essas ditaduras; já descrito arrasamento permanente da soberania nacional dos nossos países por parte dos Estados Unidos; tudo isto gera condições favoráveis para que a esquerda avance na disputa ideológica e política pelas Forças Armadas, com vista a redefinir o papel dos militares na luta do povo pela democracia e soberania nacional.

A recente vitória do processo revolucionário encabeçado por Hugo Chávez na Venezuela é um poderoso sinal de que estamos num novo momento na história do continente. Essa vitória incentiva-nos a construir alternativas radicais que vão às raízes da crise e vão de encontro às aspirações e necessidades das massas trabalhadoras. A frase de Rosa Luxemburgo "Socialismo ou Barbárie" está plenamente vigente, na medida em que, perante o capitalismo neoliberal, por esta altura, depois dos fracassos das terceiras vias e consensos neoliberais, a única alternativa possível é o socialismo.

O Chile, na sua história, foi laboratório político em mais de uma ocasião. Foi um dos poucos países em que se formou um governo de Frente Popular nos anos 30; uma coligação de esquerda, a Unidade Popular, triunfou nas eleições pela primeira vez no mundo; aqui se levou a cabo, pela primeira vez no mundo, a experiência neoliberal.

Hoje, a manipulação mediática neoliberal acerca dos êxitos do mundo chileno, converteu-se num momento decisivo de propaganda do neoliberalismo mundial. Portanto, entendemos que resolver os nossos desafios implica uma responsabilidade para com o nosso povo e para com todos os povos do mundo. Queremos uma política revolucionária sem fronteiras, que regionalize as lutas, que articule os caminhos da emancipação entre todos os povos.

No Fórum Social das Américas, em Quito, quando se discutiam as relações entre "movimentos sociais e poder", Gilmar Mauro, do Movimento Sem Terra do Brasil, caracterizou a sua organização como social, sindical e política e afirmou que não se pode realizar a reforma agrária sem alterar o regime político, e isso passa pela disputa pelo poder. Para ele, ocupar terras é ajudar o governo de Lula a superar a injusta distribuição da terra. A nova sociedade, acrescentou, será verdadeiramente nova se o povo a conquistar efectivamente e este caminho compreende a diferença, mas não a contradição, entre reforma e revolução. O Movimento Sem Terra não vê nenhuma contradição em lutar por reformas e por revolução, mas não se conseguirá uma nova sociedade de reforma em reforma.

Compartilhamos plenamente essas palavras.

Santiago, 17/Ago/04

NOTAS
1- Óscar Azócar, "A revolução democrática e a PRP", Outubro de 1994.
2- Mauro Iasy, sociólogo e académico da Universidade de São Paulo, Brasil. "O retrocesso ideológico cultural e o desenvolvimento da consciência", declaração na XIX Escola de Verão do Instituto de Ciências Alejandro Lipschutz.


[*] Sociólogo, Director do Instituto de Ciências Alexandre Lipschutz , Santiago, Chile. Comunicação apresentada ao Encontro Internacional "Civilização ou Barbárie" , Serpa, 23-25/Set/2004.

O original encontra-se em http://www.ical.cl/noticia.php?id=1007&sec=306&subsec=0 .


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
14/Dez/04