A crise do neoliberalismo e os desafios para a esquerda
A ideia de que os Estados Unidos entraram numa etapa de decadência
irreversível, que é mantida por um neoliberal clássico
como Jeffrey Sachs, pode ser ilustrada com a evidência de duas mentiras
do governo de Bush: o anúncio da vitória completa no Iraque e os
insistentes anúncios da recuperação da economia
norte-americana.
Hoje em dia já muita gente sabe que a guerra não pode ser ganha e
que o mais provável é uma retirada humilhante. Por outro lado, os
enormes gastos na indústria bélica não geraram
reactivação mas sim desemprego e maior recessão, visto que
a automatização e robotização próprias da
sofisticada indústria de armamento da actualidade liquidam empresas
obsoletas e incrementam o défice fiscal, que já chega aos 500
milhões de dólares.
Até agora, a reprodução do capitalismo imperialista dos
Estados Unidos baseou-se na espoliação do resto do mundo,
através da sua posição hegemónica em
relação a outras potências imperialistas que também
usufruem ainda que em menor grau desta exacção.
Para o imperialismo norte-americano é indispensável esta
pressão sobre o resto do mundo, mesmo com o risco de o desestabilizar, o
que questiona uma das condições de valorização do
capital de periferia: estabilidade sociopolítica relativa.
Com efeito, os povos acreditam cada vez menos na democracia neoliberal
"representativa", tutelada e restringida, com sistemas eleitorais
desproporcionais, decisões radicadas em poderes factuais nacionais e
supranacionais, o que garante a impunidade do terrorismo do Estado e só
aceita um papel muito limitado dos partidos políticos, que sente nas
lutas populares uma ameaça para o seu domínio e que, ainda por
cima, consegue aceitar a participação dos cidadãos como
mecanismo de adesão ao sistema.
No entanto, o governo norte-americano e os seus seguidores continuam
apresentando e defendendo o ultraje como exemplo de democracia, como se
consignou na Conferência Especial sobre Segurança da OEA,
realizada nos dias 27 e 28 de Outubro de 2003 na Cidade do México.
Disse-se ali que "A democracia representativa é uma
condição indispensável para estabilidade, a paz e o
desenvolvimento dos Estados do Hemisfério
Muitas das novas
ameaças, preocupações e outros desafios à
segurança hemisférica são de natureza multinacional e
podem requerer uma cooperação hemisférica adequada
reconhecemos a importância e a utilidade que têm, para aqueles
Estados que fazem parte, os instrumentos e acordos interamericanos, tais como o
Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, TIAR,!!! (o mesmo
tratado invocado desavergonhadamente pelos Estados Únicos durante a
guerra das Malvinas) e o Tratado Americano de Soluções
Pacíficas (Pacto de Bogotá)".
Com este critério actuou o governo ianque no Equador e na Bolívia
para conter, neutralizar e "canalizar institucionalmente" os
levantamentos populares, quando estes, pesar de todas as tentativas para os
evitar, finalmente ocorreram.
A crise é indiscutível na América Latina. Nela convergem
elementos conjecturais e estruturais que perpetuam a desigualdade
económica, social, política, cultural:
privatizações, planos de ajuste, entrega dos recursos naturais
às multinacionais, abertura comercial indiscriminada, endividamento
externo, concentração da propriedade da terra,
desindustrialização selvagem, desmantelamento das leis de
protecção social, serviços públicos quebrados,
flexibilização laboral, desemprego, pobreza, fome, etc, etc,
etc.
Por sua vez, as greves, tomadas de terras, cortes de ruas, lutas
antiprivatizadoras e manifestações de massas na Bolívia,
Equador, Paraguai, Porto Rico, El Salvador, Panamá, República
Dominicana, Argentina, México, Uruguai, Colômbia, Chile, Brasil,
Venezuela, revelam a magnitude sociopolítica das resistências
populares e expressam uma continuidade com o processo aberto pelo
"argentinazo" iniciado em Dezembro de 2001.
Este "clima de revolta" dos de baixo derrubou seis presidentes
constitucionais nos últimos anos, desmontou regimes autoritários
e corruptos, travou processos de privatização, desencadeou uma
nova onda anti-imperialista. Daí as manifestações
maciças
contra as guerras desencadeadas pelos Estados Unidos, o apoio da Venezuela
à "revolução boliviana", a persistente
solidariedade popular com o povo e o governo de Cuba, as possibilidades abertas
no Brasil com a eleição de Lula, as possibilidades de
avanço eleitoral da esquerda no Uruguai, as atitudes
contraditórias ainda que não no fundo entre
governos como o da Bolívia e Argentina com o dos Estados Unidos.
O GOVERNO DE LAGOS, ALIADO INCONDICIONAL DOS EUA
Os Estados Unidos iniciaram nos anos 90 uma nova etapa da sua estratégia
de dominação planetária, a da "guerra
preventiva". Triunfou o sector mais reaccionário e belicista do
establishment
norte-americano, o de Donald Rumsfeld, Paul
Wolfowitz, Dean Cheney, os quais, desde o fim dos anos 80, lutavam para
aproveitar "a oportunidade" do derrube do campo socialista para
assentar sem contrapeso o seu domínio no mundo através da
força.
A "guerra preventiva" já não necessita de actos ou
ameaças reais às quais responder, desencadeia-se simplesmente
contra ameaças ou perigos "potenciais", cuja
definição é tão ampla como arbitrária. Este
exercício de poder neofascista tem como sua primeira
aplicação prática a invasão do Panamá no
tempo do Bush pai; e, depois, seguem a guerra do Golfo, Jugoslávia,
Afeganistão, Iraque, e como pano de fundo de um período maior, a
guerra prolongada contra o povo palestino através de Israel.
A América Latina sofreu largamente o intervencionismo norte-americano. O
de agora é diferente, mais perigoso, e corresponde, no período
mais recente, a um momento de crise do domínio ianque e a
elevação das lutas populares. Às invasões militares
do passado, às ditaduras militares impostas no Chile e Argentina,
agrega-se agora a invasão do Panamá, Granada, as tentativas de
golpe na Venezuela, a invasão e o golpe anticonstitucional no Haiti para
derrubar um governo constitucional, o esforço pela
anexação neocolonial do continente através da ALCA.
Os governos da Concertação apoiaram sem reservas esta
estratégia, jogando no papel de ponta de lança para a instalar. O
governo de Ricardo Lagos militante socialista e um dos líderes do
Consenso de Buenos Aires, expressão da chamada Terceira Via na
América Latina esmerou-se particularmente como aliado
incondicional da política exterior norte-americana, desbravador de
caminhos para o estabelecimento da ALCA e de uma força militar
multinacional "antisubversiva", destinada a ser substituto das tropas
norte-americanas na América Latina e no Mundo.
Aplicando esta política, passaram por cima da maioria dos chilenos,
incluindo um importante sector da Concertação, ao condenar Cuba
nas Nações Unidas, ao permitir operações de
espionagem abertamente provocadoras para com a Argentina, ao serem os primeiros
a enviar tropas para o Haiti respondendo à chamada do governo
norte-americano para substituírem as suas tropas, ao desencadearem um
desatinado confronto com a Venezuela a propósito do apoio à
reivindicação marítima da Bolívia precedida,
que vergonha! -, pela imediata declaração de apoio que o
Presidente Lagos deu de uma reunião do Grupo do Rio à tentativa
golpista nesse país que foi derrotada em poucas horas pela
mobilização popular. Tal como agora, que demorou em reconhecer a
vitória do governo de Hugo Chávez no referendo.
Os Estados Unidos não procuram o livre comércio com a ALCA. O que
procuram é assegurar na sua retaguarda estratégica a garantia e
protecção da livre circulação e
protecção do capital transnacional norte-americano, que
apoderar-se do coração andino do continente, especialmente da
bacia amazónica, para consolidar o controlo geopolítico e militar
dos recursos vitais da biodiversidade e importantes recursos naturais e
ambientais.
Com o pretexto da "luta contra o narcotráfico", quer
militarizar o continente através do Plano Colômbia, a Iniciativa
Regional Andina, o Plano Povoa Panamá, as operações
militares "conjuntas" nos diversos países e a
instalação de novas plataformas de espionagem e
intervenção militar no Equador, Curazao, Aruba, Honduras, El
Salvador, e na chamada "Tripla Fronteira" (Argentina, Paraguai,
Brasil) para eliminar as FARC na Colômbia, o governo de Hugo
Chávez na Venezuela e todo o progresso nas lutas dos povos da
América Latina.
Não receia impulsionar o separatismo de regiões
geográficas ricas em recursos, redefinindo Estados formalmente
constituídos, para benefício das multinacionais e dos seus
aliados locais, como a "Tripla Fronteira", na Amazónia ou
Tarija na Bolívia, etc.; não receia promover a
pregação chauvinista, como na Bolívia, Chile e Peru,
incitando a "guerra entre países" em
substituição da "guerra de classes"; não receia
apoiar tácticas de agregação do movimento social mediante
governos de "consenso e concertação nacional".
O TLC do Chile com os Estados Unidos aprovado ilegal e
inconstitucionalmente pelo Parlamento chileno, pois contradiz e ultrapassa leis
orgânicas constitucionais e a própria Constituição
amarra ao Chile o esgotado modelo económico vigente que nos
condena a ser um país produtor e exportador de matérias primas,
prejudica a agricultura, que não poderá competir com produtos
subsidiados pelo governo dos Estados Unidos, impõe o monopólio
norte-americano no sector farmacêutico e nos produtos
transgénicos, dando como pretexto o direito da propriedade intelectual e
patentes, com as consequências negativas sobre o preço dos
medicamentos e a saúde da população.
O mais grave, talvez, é que reforça o despojo dos nossos jazigos
mineiros iniciado em 1983 pela ditadura de Pinochet, justamente agora quando
cresce a demanda legítima para que o país possa beneficiar da sua
riqueza mineira. O debate acerca do
royalty
mecanismo que
permite recuperar a renda mineira que pertence ao Chile , em que a
Concertação e o governo se viram obrigados pela força
alcançada pelo movimento nacional de defesa e recuperação
do cobre, a propor uma lei de
royalty
muito insuficiente, mostrou o
enorme poder de que dispõem as multinacionais que, apoiadas pela falta
de decisão real do governo, conseguiram esconder este objectivo. Mas a
batalha acabou de começar. A mobilização nacional que
empurra esta exigência continuará a crescer, na perspectiva da
renacionalização do cobre.
A mobilização popular do continente impediu até agora que
os Estados Unidos conseguissem os seus propósitos. O Foro Social das
Américas, realizado em Quito entre 25 e 31 de Julho, constatou com
satisfação que as negociações da ALCA se detiveram
como consequência da pressão popular e as discrepâncias de
vários governos. Já o III Encontro Hemisférico da Luta
Contra a ALCA realizado em Havana tinha reafirmado a oposição ao
acordo alcançado no topo de Monterrey (com a única reserva clara
do governo nacionalista de Chávez) em torno da ALCA de acordo com as
condições impostas pelo governo de Bush. A mesma
rejeição se expressou em Puebla seda da reunião do
Comité de Negociações Comerciais, principal
instância técnica da ALCA onde os movimentos e a
Aliança Social Continental repudiaram as pretensões de instituir
uma ALCA "light" ou "extralight".
Apesar disso, o governo dos Estados Unidos não cede. Persegue agora os
mesmos objectivos através de tratados bilaterais, que, ainda que tenham
o mesmo conteúdo, inclusive chegam a rebaixar a ALCA, aproveitando a
debilidade e a submissão dos governos da América Central e dos
quatro países da região andina, com os quais desenvolve
negociações actualmente.
É por isso que apoiamos plenamente os esforços da Campanha
Continental contra a ALCA e os seus capítulos nacionais, que se
concentram agora em combater os TLC's, impedindo que se ratifique o tratado com
a América Central e que se subscreva o TLC andino.
Ao subordinar-se a interesses contrapostos aos da América Latina, o
Chile caiu num perigoso afastamento da comunidade latino-americana, sem ser
modelo de integração em benefício de outros países,
tratados como o MERCOSUL, a ALADI, o Pacto Andino, são de qualquer
maneira uma referência melhor que os tratados de livre comércio
com os Estados Unidos.
Simpatizamos, portanto, com as iniciativas empreendidas pelos governos da
Venezuela, Brasil, Argentina, em particular com a ideia de potenciar os nossos
recursos naturais mediante empresas latino-americanas integradas. Isto responde
a uma concepção de integração justa e
solidária, baseada na cooperação que potenciará a
nossa inserção na economia internacional através de uma
frente comum dos países latino-americanos.
Este estacionamento boliviano baseia-se em vários elementos comuns: uma
mesma história; um mesmo inimigo comum, o imperialismo norte-americano;
uma mesma cultura, a latino-americana; uma mesma guerra revolucionária
anticolonial e um mesmo processo de constituição do Estado. A
integração económica, política, cultural na
América Latina, tem raízes e fundamentos muito profundos.
ACELERAR A CONSTRUÇÃO DE UM MOVIMENTO POLÍTICO E SOCIAL
NEOLIBERAL
O Chile foi cenário de uma contra-revolução neoliberal
precoce que conduziu a um neoliberalismo maduro, que dizer, levou-se a cabo
todo o programa de contra-reformas neoliberais, incluindo o retrocesso
ideológico-cultural.
A ditadura desenvolveu muito o modelo económico chamado "livre
mercado"; criou uma ordem institucional excluindo a esquerda, com sistema
eleitoral binominal e papel tutelar das Forças Armadas; criou as
condições para a fusão posterior entre a direita e o
sector hegemónico da Concertação, o qual legitimou
complacentemente a herança da ditadura.
[1]
Fez-nos transitar de uma estrutura de representação
política para uma de baixa intensidade classista, sendo factor decisivo
nesta transformação de "desafiliação" do
Partido Socialista do seu ideal de esquerda. Gerou mudanças profundas
nas ideias, valores e atitudes das pessoas como resultado do carácter
invasivo do mercado, conjugado com um forte ressurgir do conservadorismo com a
sua sequela de hipocrisia e discriminação social. Um exemplo
é a influência de concepções integristas na Igreja
Católica, que rejeita a educação sexual, o aborto, o
divórcio.
É necessário imperativamente superar o retrocesso da
consciência popular, especialmente no Chile, como condição
para avançar na acumulação de forças. Isso é
possível a partir de, pelo menos, quatro factores:
1- A violenta contraditoriedade do neoliberalismo, quem vive nesta sociedade
sofre
diariamente o seu domínio e portanto, podem, a partir da sua vida
quotidiana, entrar em contradição e em luta com ele. Esse
é o início do processo de consciência.
[2]
2- A nova dimensão que adquiriram as mobilizações
populares.
A acção prática de luta, o desencadear processos
carregados de emoção, é vital para a
constituição da consciência de classe. Na actividade
colectiva surge mais facilmente a disposição para
"escutar" ideias novas, e em situações de actividade
política intensa das massas, criam-se todas as condições
para "adoptar" essas ideias, isto porque as pessoas desenvolvem
emoções que as comprometem. Quaisquer que sejam as
influências culturais que possam operar, os valores, crenças e
símbolos serão preservados, modificados ou rejeitados segundo as
características emocionais da experiência directa.
3- As sedimentações e o sentido comum positivo. Ainda que o
neoliberalismo tenha conseguido irradiar fortemente as suas ideias, valores e
atitudes, os rasgos de identidade e consciência popular mais ou menos
desenvolvidos conseguem subsistir de qualquer forma.
Se é certo que hoje podem conviver na mesma pessoa elementos de um
"antigo" sentido comum que, segundo a nossa perspectiva,
haveria que associar positivamente ao "bom senso" de que fala
Gramsci e um sentido comum neoliberal generalizado, ainda é mais
certo que a prática colectiva é a única maneira de fazer
"aflorar" esse "bom senso".
O "senso comum" para Gramsci é sempre um "produto
histórico" que contém contraditoriamente as diferentes
heranças do passado, encerra uma memória histórica
positiva das massas subalternas e experiências que são o resultado
do trabalho prático. É o caso das tradições e
acervo de luta que provêm da experiência da Unidade Popular e da
luta contra a ditadura, síntese de um enorme desenvolvimento popular.
4- E o mais importante: a actuação da esquerda
revolucionária. Não se conseguirão acumular forças
sem a intervenção de organizações que dirijam e
guiem a organização, a luta e o amadurecimento da
consciência popular; que se concentrem nos trabalhadores e consigam que
se constituam num núcleo de uma frente em que se integrem nos mais
diversos sectores; que elaborem uma plataforma política de
mudanças e lemas adequados a cada momento; que adeqúem a
táctica às mudanças do momento e sem perder de vista o
objectivo estratégico; que forjem capacidade para conquistar o poder do
Estado, transformá-lo e colocá-lo ao serviço das
mudanças democráticas e revolucionárias.
Uma coisa é certa: continuará em movimento a luta dos movimentos
sociais, de que há uma grande diversidade. Os trabalhadores estão
desregulados, os indígenas e os sectores rurais estão
empobrecidos;
os que reivindicam soberania nacional sobre os recursos naturais; os que lutam
pela ampliação das liberdades democráticas e pela
democratização da sociedade, os estudantes e jovens; os que
defendem os direitos humanos; os movimentos das mulheres; os ecologistas, que
lutam contra a acção depredadora do neoliberalismo; os que lutam
pelo reconhecimento da diversidade sexual; os das forças da
intelectualidade e da cultura que rejeitam o possibilismo ou a submissão.
Continuarão a provocar confrontos, crises governamentais, diversos tipos
de levantamentos.
A nossa experiência indica que mais vale concentrar-se
na organização, na luta e na unidade do povo, do que na
actividade nas instituições do sistema.
Mas os movimentos sociais, por si só, não conduzem à
superação do sistema de dominação imperante. Apesar
de maciços e combativos, até agora não conseguiram
criar novos governos populares.
Para superar a crise e evitar as diferenças do tecido social com a queda
das esperanças, que amanhã podem deixar o terreno livre para as
elites dominantes, é necessário acentuar a
construção de um movimento social e político alternativo
que seja capaz de abordar a questão central de qualquer
transformação de base, a questão do poder do Estado.
Há quem critique os partidos da esquerda "tradicional" que, com
os seus "estadocentrismos", estruturas verticais e
"dirigismos", atentariam contra a horizontalidade, autonomia,
estrutura participativa, etc, dos movimentos sociais. Não vem ao caso
defender tais partidos, porque existiram. Mas generalizar, não se
ajusta à realidade nem em relação aos partidos de
esquerda, nem aos movimentos sociais.
A expressão autónoma dos movimentos sociais vale, em primeiro
lugar e essencialmente, na relação com os mecanismos do sistema
de domínio, com o Estado, os partidos políticos do sistema. Mas
isso não significa separação nem muito menos
contraposição com os partidos de esquerda, a experiência
demonstra a necessidade de ambos se interrelacionarem.
No Brasil, os movimentos sociais dão lugar à
constituição de partidos e frentes de esquerda que chegam ao
governo. No Equador e na Bolívia, também se fundam novos partidos
de esquerda que representam as causas dos povos originários e dos
camponeses.
No Chile, o Partido Obrero Socialista surgiu a partir do desenvolvimento
do movimento operário. Posteriormente, o triunfo da Unidade Popular e o
processo revolucionário encabeçado por Salvador Allende,
não teriam sido possíveis sem o desenvolvimento prévio de
um poderoso movimento popular concebido como movimento político e
social. Os seus diferentes segmentos confluíram numa demanda
democrática global. O movimento estudantil e a sua luta pela reforma
universitária em conjunto com o movimento estudantil secundário
reivindicando universidade para todos; um movimento populacional com uma
história de tomadas de terrenos organizadas e dirigidas pela Esquerda,
que deram lugar aos povoados populares; um movimento
camponês organizando-se rapidamente e passando a ser um actor
político na medida em que tornou sua a exigência da reforma
agrária;
um movimento juvenil unitário e plural que se desenvolveu poderosamente
ao integrar-se na luta anti-imperialista e antioligárquica; um movimento
de mulheres muito vinculado à esquerda. Mas o período do governo
de Salvador Allende também mostra que o accionar independente das massas
foi inibido pela Unidade Popular, que conspirou contra a formação
de um poder popular que poderia ter desempenhado um outro papel na defesa do
processo de transformações.
Na realidade,
a linha divisória estabelece-se melhor entre movimentos e
partidos que encaram a luta com uma perspectiva transformadora, e movimentos e
partidos que só pretendem "maquilhar" o neoliberalismo.
Há quem condene o neoliberalismo mas considere impossível a sua
transformação radical. Então, estabelecem-se
posições tão cómodas como a que a
opção mais lúcida seria lutar pela reforma do sistema e a
inutilidade da luta pelo poder. Como alguém disse, a ideia
ingénua de que "podemos assar um cordeiro em fogo lento sem que se
dão conta".
Não são os subversivos que instalam a questão do poder,
é a profundidade da crise que o instala. Isso significa nesta fase
construir um
contrapoder a partir de baixo, capaz de enfrentar com êxito um poder
dominante
que se defende com todos os recursos repressivos, financeiros e
mediáticos ao seu alcance. Isto é, acumular experiências de
acções directas e de reforço da consciência para os
futuros enfrentamentos.
Os programas de reivindicações e de propostas institucionais de
democracia directa como os referendos (Uruguai, ou mesmo agora a Venezuela); as
iniciativas como a "Consulta Popular" ou os "Plebiscitos"
no Brasil, Argentina ou México contra a ALCA e pelo não pagamento
da dívida externa; a "Assembleia Popular" na Bolívia
para anular a manobra de Carlos Mesa e a sua pseudo Constituinte
integrada no parlamento , são elementos de
auto-organização e de criação de uma
"institucionalidade popular alternativa".
As lutas dos habitantes de Cochabamba pelo controlo da água em 2002
(conhecida como a "guerra da água"), as
reivindicações dos indígenas equatorianos contra a
pilhagem dos "trusts" petrolíferos nas zonas da sua
pertença histórica, a mobilização continental em
defesa da Amazónia, a luta das populações
autóctones das regiões afectadas pelo Plano Povoa Panamá,
representam tanto uma resistência histórica contra a
colonização como uma faceta radical da luta ecológica.
Os movimentos reivindicativos dos assalariados e dos trabalhadores
desempregados que assumem formas de luta radicais, não nas empresas
ainda que aí também existam , mas nos protestos de
rua, tanto nas grandes cidades como nas pequenas de periferia, formam já
parte do novo sustento popular.
No Chile, as lutas destes dois últimos anos reafirmaram que o mais
importante movimento social no Chile continua a ser o dos trabalhadores. Mas
também há outros movimentos sociais que continuam a desempenhar
um papel fundamental, como o movimento em defesa dos direitos humanos, com
vitórias parciais, mas não definitivas; o das mulheres; o
movimento estudantil; o povo mapuche; os movimentos ecologistas; o Movimento
pela Diversidade Sexual; o Comité Nacional de Defesa e
Recuperação do Cobre; Cultura em Movimento.
Nesta construção do sustento social e político deu-se um
grande passo com a formação do PODEMOS, movimento das
forças políticas e sociais de esquerda e progressistas, que
aglutina o Partido Comunista, o Partido Humanista, MIR, Esquerda Cristã,
Esquerda Socialista, Frente Unidos Venceremos, Movimento Patriótico
Manuel Rodriguez e outras forças políticas, as Urracas de Meaux,
e ainda outros movimentos sociais ecologistas, da diversidade sexual, do mundo
cristão, da defesa da saúde e educação
públicas, para exercer soberania sobre o cobre, movimentos culturais,
correntes sindicais classistas e personalidades sociais e intelectuais. Sendo
um movimento que se propõe construir uma alternativa de poder ao
neoliberalismo, vai muito para alem do eleitoral, mas também
participará nas próximas eleições municipais
através de um pacto eleitoral entre o Partido Comunista e o Partido
Humanista.
Os desafios para a esquerda chilena também derivam do papel que
desempenharam
as Forças Armadas servindo a oligarquia e o imperialismo
norte-americano -- ao destruir o processo de transformações
revolucionárias que levava a cabo o governo da Unidade Popular. Isso foi
convertido interessadamente, por alguns, no argumento para justificar a sua
viragem
ao neoliberalismo. Chegará o momento, dizem, em que fatalmente as
Forças Armadas voltarão a desempenhar o papel de
contenção de qualquer projecto popular alternativo ao
neoliberalismo.
Recusamos esse argumento facilista. Ainda que seja certo que no Chile, depois da
ditadura, as Forças Armadas não se democratizaram nem se
desvincularam da doutrina de segurança nacional, e que muitos
responsáveis de violações dos direitos humanos permanecem
impunes, a experiência de diversos processos revolucionários e
progressistas na América Latina e a própria experiência do
Chile mostram que as instituições militares não
são impermeáveis às ideias de mudança social. Em
certas ocasiões, a força do movimento popular conseguiu que
desempenhassem, na
totalidade ou em sectores importantes delas, um papel diferente,
favorável aos interesses populares.
Foi o que aconteceu no Peru, Bolívia, Panamá, República
Dominicana. Também foi o que aconteceu durante a Unidade Popular, em que
um significativo sector, constitucionalista e patriótico, conseguiu
durante três anos manter a hegemonia dentro das Forças Armadas, num
período caracterizado pela permanente conspiração e
desestabilização golpista dirigida pelo governo dos Estados
Unidos. É o que se passa actualmente na Venezuela.
Hoje, as Forças Armadas na América Latina enfrentam uma nova
situação que se caracteriza pelo fim da bipolaridade e da guerra
fria, que desarmou o argumento gasto da cooptação da "luta
contra o bloco comunista"; a passagem de ditaduras militares para
democracias neoliberais, que ainda conservam em maior ou menor grau
esboços de militarismo, deixaram algumas questões relativas
às violações dos direitos humanos e aos actos corruptos
protagonizados por essas ditaduras; já descrito arrasamento permanente da
soberania nacional dos nossos países por parte dos Estados Unidos; tudo
isto gera condições favoráveis para que a esquerda avance
na disputa ideológica e política pelas Forças
Armadas, com vista a redefinir o papel dos militares na luta do povo pela
democracia e soberania nacional.
A recente vitória do processo revolucionário encabeçado
por Hugo Chávez na Venezuela é um poderoso sinal de que estamos
num novo momento na história do continente. Essa vitória
incentiva-nos a construir alternativas radicais que vão às
raízes da crise e vão de encontro às
aspirações e necessidades das massas trabalhadoras. A frase de
Rosa Luxemburgo "Socialismo ou Barbárie" está
plenamente vigente, na medida em que, perante o capitalismo neoliberal, por
esta altura, depois dos fracassos das terceiras vias e consensos neoliberais, a
única alternativa possível é o socialismo.
O Chile, na sua história, foi laboratório político em mais
de uma ocasião. Foi um dos poucos países em que se formou um
governo de Frente Popular nos anos 30; uma coligação de esquerda,
a Unidade Popular, triunfou nas eleições pela primeira vez no
mundo; aqui se levou a cabo, pela primeira vez no mundo, a experiência
neoliberal.
Hoje, a manipulação mediática neoliberal acerca dos
êxitos do mundo chileno, converteu-se num momento decisivo de propaganda
do neoliberalismo mundial. Portanto, entendemos que resolver os nossos desafios
implica uma responsabilidade para com o nosso povo e para com todos os povos do
mundo. Queremos uma política revolucionária sem fronteiras, que
regionalize as lutas, que articule os caminhos da emancipação
entre todos os povos.
No Fórum Social das Américas, em Quito, quando se discutiam as
relações entre "movimentos sociais e poder", Gilmar
Mauro, do Movimento Sem Terra do Brasil, caracterizou a sua
organização como social, sindical e política e afirmou que
não se pode realizar a reforma agrária sem alterar o regime
político, e isso passa pela disputa pelo poder. Para ele, ocupar terras
é ajudar o governo de Lula a superar a injusta
distribuição da terra. A nova sociedade, acrescentou, será
verdadeiramente nova se o povo a conquistar efectivamente e este caminho
compreende a diferença, mas não a contradição,
entre reforma e revolução. O Movimento Sem Terra não
vê nenhuma contradição em lutar por reformas e por
revolução, mas não se conseguirá uma nova sociedade
de reforma em reforma.
Compartilhamos plenamente essas palavras.
Santiago, 17/Ago/04
NOTAS
1- Óscar Azócar, "A revolução
democrática e a PRP", Outubro de 1994.
2- Mauro Iasy, sociólogo e académico da Universidade de
São Paulo, Brasil. "O retrocesso ideológico cultural e o
desenvolvimento da consciência", declaração na XIX
Escola de Verão do Instituto de Ciências Alejandro Lipschutz.
[*]
Sociólogo, Director do
Instituto de Ciências Alexandre Lipschutz
, Santiago, Chile. Comunicação apresentada ao
Encontro Internacional "Civilização ou Barbárie"
, Serpa, 23-25/Set/2004.
O original encontra-se em
http://www.ical.cl/noticia.php?id=1007&sec=306&subsec=0
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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