20º aniversário do atentado ao tirano

A emboscada a Pinochet: Um acto de justiça

por Comandante Salvador [*]

Esquema da Operação Século XX. Setembro de 1986. Cumpriam-se 13 anos de ditadura. O tirano estava acuado por um povo que havia despertado do medo e da letargia — já convencido de que os cantos de sereia dos políticos que haviam instigado o golpe de 73, e que agora pretendiam repartir o poder com os homens da ditadura, afastavam cada vez mais o ansiado retorno à democracia. A mesma democracia que tais personagens haviam destruído a sangue e fogo, com o apoio absoluto do Império criminoso, numa "guerra" que de forma fantasiosa haviam começado a inventar no próprio dia do triunfo do presidente Salvador Allende e da Unidade Popular.

Durante os primeiros anos da ditadura, em meio a perseguições, prisões, exílio e morte do movimento popular, a partir da clandestinidade o povo começava a reorganizar-se, fiel ao legado de Allende na sua epopéica despedida: "O povo deve defender-se, mas não sacrificar-se. O povo não se deve deixar arrasar nem crivar-se de balas, mas tão pouco pode humilhar-se. Trabalhadores da minha Pátria, tenho fé no Chile e no seu destino. Outros homens superarão este momento cinzento e amargo no qual a traição pretende impor-se. Fiquem a saber que, muito mais cedo do que tarde, de novo serão abertas as grandes alamedas por onde passa o homem livre, para construir uma sociedade melhor" (clique para ouvir).

Os anos de 1970 a 1973 foram difíceis. Além de estarem plenamente conscientes de que a oligarquia e o Império não estavam dispostos a aceitar um novo broto revolucionário no continente, o movimento popular e seus principais partidos – com grande vontade, decisão e entrega – abriam caminho a um governo popular para dar passagem a uma profunda mudança social, interpretando assim os sonhos e esperanças de uma geração que estava convencida de que um mundo novo era possível. Eram anos em que os movimentos de libertação nacional eram olhados com simpatia e apoiados pelas influentes forças progressistas de todo o planeta.

Mas nossa ingenuidade era enorme, porque enquanto construíamos e dávamos os nossos melhores esforços em intermináveis jornadas de trabalho voluntário no terreno produtivo e na alfabetização, a direita e o império tentavam paralisar o país levando o terror à população, através de gigantescas campanhas de imprensa, sabotagem e guerra psicológica. Ao mesmo tempo, urdiam uma conspiração com as Forças Armadas, criando assim as condições para dar o golpe cruel e ardiloso, que terminou por destruir as bases democráticas. Os mesmos que durante anos utilizaram e disseram defender a democracia que agora não duvidavam em liquidá-la porque punha em risco seus interesses e privilégios de classe.

A heróica resistência do movimento popular, em meio ao terrorismo de Estado que se desencadeou com fúria contra a população, foi dando os seus frutos. Mas muitos companheiros caíram nesta luta sem tréguas e inclusive direcções inteiras dos partidos, em particular do PCC e do MIR, foram feitas desaparecer. Apesar disso, foi-se articulando um grande movimento social que desafiava o cerco repressivo e irrompeu com protestos populares de carácter territorial que pouco a pouco se transformaram numa grande maré, com expressão em todo o território nacional. O povo começava a dizer basta de ditadura.

Nesse contexto, e esgotados todos os espaços democráticos, surgiu o chamado à Rebelião Popular, estratégia destinada a por fim à tirania, recorrendo a todas as formas de luta e que reivindicou o direito universal do povo a defender-se da opressão com todos os meios ao seu alcance. A ideia era ir avançando em direcção à desobediência civil e gerar um estado de ingovernabilidade que abrisse caminho à recuperação democrática. Como parte dessa estratégia começou a estruturação integral de uma actuação inédita na vida do Partido Comunista que tinha como base a auto-defesa de massas e uma operação especial instaurada a princípio mediante grupos dedicados a executar uma série de acções audazes essencialmente de carácter propagandístico.

Com esse objectivo nasceu a Frente Patriótica Manuel Rodrigues (FPMR), em Dezembro de 1983, concebendo a acção armada como instrumento de actuação política. Ou seja, intimamente vinculada à mobilização popular. De imediato a operação da Frente foi vista com simpatia por amplos sector da população e foi demonstrando a correcção da política de Rebelião Popular. A contrapartida foi que rapidamente se transformou num nos objectivos principais dos organismos policiais e de segurança. A audácia e a astúcia eram a base das suas operações, demonstrando nos factos que, apesar do poder absoluto da tirania, esta era vulnerável.

O ascenso da luta popular e uma ditadura isolada internacionalmente e aferrada ao poder apenas mediante o terror geraram condições favoráveis para o derrube do ditador, que passou ser o grande escolho para o retorno à democracia. Alarmadas pelo avanço popular, as forças políticas do centro e da direita aceleraram um processo negociador, enquanto o PCC definia 1986 como o ano decisivo para terminar com a ditadura, prevendo inclusive que a Rebelião Popular podia ser transformada numa verdadeira sublevação nacional, que permitisse uma saída o mais avançada possível do ponto de vista dos interesses do povo. Obviamente, estava-se longe de colocar o caminho da luta armada para a tomada do poder, embora alguns de nós acreditássemos nesse caminho.

PREPARAÇÃO POLÍTICA E COMBATIVA

Em função disso, em Janeiro de 86 começou um plano de preparação política e combativa destinado a assegurar a mobilização e a luta. No coração do bairro alto, a metros de um dos primeiros centros comerciais ostentosos que o neoliberalismo inaugurou na nossa pátria – o Apumanque – uma casa alugada passou a ser um acampamento de verão, por onde desfilaram uma centena de companheiros, secretariados completos dos diferentes comités regionais do Partido. Naturalmente, membros da própria direcção partidária, encabeçados pela própria Gladys e algumas conhecidas figuras públicas, hoje na Concertación. Os conteúdos eram essencialmente políticos: trabalho militar de massas, técnicas e tácticas de autodefesa, segurança e outros. O elemento director foi o plano de sublevação nacional. O mero facto de participar nestes encontros dava a ideia da disposição mais absoluta de enfrentar a tirania em todos os planos. O intercâmbio e a discussão nestes encontros reforçava a moral e nos dava a confiança mais absoluta na possibilidade de dar um passo decisivo para o término da tirania.

Concretamente, burlar os serviços de segurança com eventos desta grandeza não era tarefa fácil: entrava-se saía-se da casa só ao anoitecer. Havia um pequeno grupo de logística encarregado da alimentação e da entrada dos companheiros. Funcionava um contingente que expunha diferentes temas e outro de segurança. Entre outros irmãos integrava-o José Peña Maltés, que um ano depois foi sequestrado, assassinado e lançado ao mar junto com outros quatro companheiros por ordens do próprio Pinochet, enquanto se desenvolvia o sequestro do comandante Carreño, que foi libertado são e salvo depois de permanecer capturado pela FPMR, numa das operações mais aplaudidas a nível nacional e internacional.

Naquela escola do verão de 86 a nossa defesa era constituída por uma dezena de M-16, algumas granadas e lança-foguetes. Além disso, contávamos com uma radio-escuta permanente através de um scanner – obséquio dos companheiros do MIR – que nos permitia estar ao par dos movimentos da CNI, Carabineros e Investigaciones. Vale a pena dizer que os resultados destas escutas em mais de uma ocasião permitiram saber que companheiros ou unidades estavam a ser controlados pelo inimigo. Assim como o mesmo método, utilizado pela imprensa democrática um ano mais tarde, possibilitou desmascarar a ditadura quando pretendia fazer passar como enfrentamento entre bandos uma das mais sinistras acções de extermínio, a que baptizou Operação Albania, na qual foram aniquilados doze dos nossos irmãos.

Dentre eles estava "Ernesto", José Valenzuela, o chefe da emboscada ao tirano.

Em 1986 sucederam-se uma série de factos que de uma forma ou de outra alteraram de maneira significativa os planos previstos. A mobilização popular alcançava altos níveis e um ponto determinante colocava-se para a paralização de 2-3 de Julho. Mas por decisões político partidárias nos últimos momentos determinou-se baixar o perfil quanto ao grau de confrontação, ainda que inicialmente tivesse sido concebida como um ensaio do que seria a sublevação nacional. Nesse contexto e tendo claro que o grande escolho era o mesmíssimo ditador, começou a transformar-se numa necessidade sacá-lo do caminho, para o que se elaboraram uma série de ideias operativas. A mais avançada era minar uma parte importante do caminho usado por sua comitiva durante o deslocamento ao seu lugar de descanso nos fins de semana.

Neste sentido, esta operação era de grande envergadura pois partia-se do conhecimento do grande aparato de segurança que o acompanhava, com um rasteio prévio dos diferentes itinerários empregados. Portanto qualquer que fosse a opção ela devia realizar-se no mais absoluto sigilo e isso obrigava a que as etapas prévias fossem realizada por um reduzido grupo de companheiros. Do mesmo modo descartaram-se outra ideias com o objectivo de evitar por todos os meios vítimas alheias ao facto. Ficava claro assim que tinha de ser durante o deslocamento da comitiva e num lugar aberto. Durante este período de preparação sucederam-se os acontecimentos de Carrizal, o que significou um duro revés: o controle operativo das forças repressivas e as maciças detenções geraram sérios problemas de segurança, sobretudo no que se relacionava à mobilidade dos combatentes e dos meios.

OPERAÇÃO SÉCULO XX

Sem quaisquer dúvidas, estes factos afectaram o quadro político. O Império, a ditadura e as forças da direita, que a conformavam, e aqueles que esperavam ansiosamente voltar ao poder, perceberam atemorizados que o povo falava a sério e que o término da ditadura à beira de transitar por um caminho que assegurava um protagonismo popular em correspondência com sua luta e objectivos. Pressionado internacionalmente, o regime também começou a ceder. No interior do PCC afloraram com maior energia questionamentos à política militar e, naturalmente, à Rebelião Popular. A impossibilidade de uma abertura real e que incluísse as forças populares determinou a urgência de sacar o tirano do meio, inclusive com o risco de que fossem outros os que capitalizassem politicamente a acção.

Decidiu-se, portanto, conceber uma nova operação a cuja testa pôs-se o próprio chefe da FPMR, Raúl Pellegrin e à frente da acção José Valenzuela Levi, "Ernesto", que havia demonstrado sua capacidade de comando, valentia e entrega tanto contra a tirania pinochetista como nas terras de Sandino, durante a luta contra os bandos mercenários que assolavam o norte da Nicarágua. Designaram-se os melhores e mais experimentados combatentes da Frente para integrar o grupo operativo. Tudo fazia pensar num grande combate, tendo presente que uma força de elite acompanhava o ditador e que nunca existiu a certeza de qual era o veículo real em que viajava o tirano. Isso teria facilitado as coisas pois o poder de fogo principal ter-se-ia concentrado ali. Apesar disso, o terreno escolhido reunia as condições óptimas para a acção.

Chegou assim o 7 de Setembro e todos os combatente encontravam-se colocados nas suas posições. A exploração avançada do tirano não percebeu nada anormal. Começou o combate e além do factor surpresa, "os nobres e valentes soldados" – acostumados a uma "guerra" contra um povo desarmado – só procuraram encontrar refúgio, deixando evidente que sua valentia só se manifestava na prática frente a homens, mulheres e crianças atados e vendados. Em honra da verdade, o chofer do tirano foi o único que reagiu e numa manobra desesperada conseguiu romper o cerco. Sendo esse o objectivo principal da acção iniciou-se a retirada, respeitando a vida daqueles que – escondidos – haviam abandonado o Capitán General à sua sorte.

Apesar de a acção não ter atingido seu objectivo, teve êxito operativo, não existindo baixas da FPMR no fragor da batalha. Firmou-se assim um precedente moral inédito na nossa história: um punhado de patriotas esteve disposto a travar a barbárie da ditadura, interpretando o sentir de um povo que levantava sua voz e dizia: Basta de crimes! Democracia agora!

No aspecto político, ficava clara a opção e ultrapassando as declarações dos mesmos de sempre que tibiamente condenavam a acção estava a alegria e a confiança em que era possível um novo amanhecer. Alegria que logo se viu empanada pela vocação assassina do tirano, uma vez que a vingança não se fez esperar. A matilha repressiva desencadeou-se como em todas as vezes que se viu ameaçada pelo avanço popular e saiu a matar à direita e à esquerda. Nessa noite de terror e estado de sítio caíram destacados companheiros do MIR, José Carrasco Tapia e Gastón Vidaurrázaga, e dois camaradas do PCC, Felipe Rivera e Abraham Muskablitt. Naturalmente, o objectivo principal era constituído pela força que havia actuado e em particular o chefe da Frente e o chefe da operação, pelo que os repressores não descansaram até o dia em que de maneira vil e covarde os assassinaram. O comandante José Miguel, Raúl Alejandro Pellegrin Friedman, caiu em Outubro de 1988 no decorrer da retirada da acção Los Queñes, junto à comandante Tamara, Cecilia Magni Camino, chefe da logística na emboscada ao tirano.

A Operação Século XX, como se chamou, constituiu um marco na nossa história e contribuiu para o término da tirania. Apesar das mudanças ocorridas, lamentavelmente até hoje a justiça ainda permanece longínqua, ainda que a verdade venha abrindo caminho graças à luta do nosso povo e das suas organizações. Tenebrosos personagens dessa época, civis e militares, gozam de fortuna e total impunidade. Sem ir mais longe, o próprio tirano ainda não responde pelos crimes de lesa humanidade que praticou durante os 17 de poder total.

Num novo Setembro, honra e glória àqueles que deram tudo para abrir essas grandes alamedas que ainda permanecem cerradas e que uma nova geração está disposta a abrir! A Rebelião Popular foi o nosso caminho e a dignidade a nossa arma principal. Sente-se que Allende está presente! Não nos que claudicam e negociam e sim nos que hoje abrem esperanças de luta.

[*] Da Frente Patriótica Manuel Rodriguez

  • Último discurso do Presidente Salvador Allende antes de ser assassinado, em 11 de Setembro de 1973, quando o Palácio de La Moneda estava a ser bombardeado por aviões da Força Aérea

    O original encontra-se em http://www.chilepress.com/not_285.htm


    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 11/Set/06