A nova Grande Depressão e a Índia

por RUPE [*]

Diego Rivera, pormenor de mural. Ao longo dos últimos seis meses uma nova Grande Depressão envolveu todo o mundo. Os círculos dirigentes mundiais e os media internacionais têm estado a propalar que esta Depressão é o resultado de uma mera crise financeira, provocada pela concessão irresponsável dos bancos de empréstimos a pessoas pobres nos EUA. Em consequência, eles começaram por afirmar que dentro de seis meses a um ano começaria a recuperação, graças a salvamentos governamentais e pacotes de estímulo de dimensão sem precedentes.

Contudo, a crise avançou tão rapidamente que em poucas semanas estas afirmações se desgastaram. O discurso sobre uma ruptura sistémica entrou agora na linguagem do próprio establishment dominante. Mesmo quando um George Bush na defensiva asseverava na cimeira do G-20 que "A crise não foi um fracasso do sistema de mercado livre", os seus homólogos francês e alemão foram ácidos nas suas réplicas. O ministro das Finanças da Alemanha declarou ao parlamento alemão: "O mundo nunca mais será como foi antes da crise. Os Estados Unidos perderão o seu estatuto de super potência no sistema financeiro mundial". "O que estamos a ver agora", disse Raghuram Rajan, antigo economista chefe do FMI, "é capitalismo em crise... mau não vejo um fim para o capitalismo". [1]

Explicações inadequadas

Os media têm avançado várias explicações para a crise, sobretudo banais. Os jornais contam-nos que a crise foi o resultado de um excesso de "cobiça". Mas a cobiça dificilmente é um fenómeno novo. Na verdade, a teoria económica ortodoxa baseia-se na suposição de que todo indivíduo é ilimitadamente cobiçoso e de que a busca da cobiça individual traz crescimento geral e maior bem-estar.

Outra explicação amplamente circulada, e igualmente frívola, culpa as autoridades dos EUA por deixarem de salvar o banco gigante de investimentos Lehman Brothers em Setembro de 2008. A bancarrota do Lehman Brothers, afirma-se, apanhou os mercados de crédito e a crise ficou fora de controle. Agora esta explicação é ouvida menos frequentemente, pois verificou-se que virtualmente todo o sector financeiro dos EUA estava realmente insolvente e exigia salvamento.

Dois outras explicações ofereciam alguma verdade, mas incompleta. Primeiro, que o banco central do EUA, o Federal Reserve, manteve taxas de juros anormalmente baixas por um longo tempo, encorajando uma explosão de dívida e um boom insustentável naquela base. Segundo, que o Federal Reserve e outras autoridades financeiras nos EUA, sob o encanto da ideologia neoliberal, falharam em regular adequadamente o sector financeiro e piscou os olhos para o que equivalia a esquemas de pirâmide financeira. Estas explicações provocaram duas perguntas: Por que as extremamente bem informadas autoridades do mais refinado sistema financeiro do mundo promoveram uma tal bolha na economia? E como foram capazes de fazer isso?

Crise sistémica

A verdade é que isto não é simplesmente uma crise financeira mas sim, mais fundamentalmente, uma crise do próprio sistema capitalista. Para além de todos os complicados exercícios e termos financeiros que cobrem a superfície desta crise, no centro da mesma estão contradições que são inerentes ao processo de acumulação capitalista. O crescimento inchado do sector financeiro é de facto uma tentativa do capitalismo de adiar o efeito destas contradições, considerando que o crash financeiro é a reafirmação da sua centralidade.

No centro da crise também está a contradição entre o imperialismo estado-unidense e o povo do Terceiro Mundo. Isto é exemplificado pelo facto de que o consumo dos EUA, incluindo a sua gargantuesca despesa militar, está a ser financiado a partir das poupanças da China, de outros países do Extremo Oriente e dos produtores de petróleo do Golfo. Embora o imperialismo dos EUA ainda seja dominante à escala mundial, a sua dominação económica tem há muito estado em declínio, tendendo a tornar esta extracção parasítica cada vez mais insustentável. (Insurgências tenazes em países sob a ocupação militar dos EUA tem desempenhado um papel significativo no enfraquecimento ulterior da hegemonia estado-unidense, impedindo-o de atingir os seus objectivos económicos estratégicos, forçando-o a aumentar a sua despesa militar no estrangeiro e aprofundando a sua dependência dos influxos estrangeiros.) O desvanecimento do poder económico e político dos EUA também está subjacente à crise actual.

Contudo, o padrão de comércio nos últimos anos (défices comerciais gigantescos dos EUA, excedentes comerciais gigantes de certos países do Terceiro Mundo) e o padrão perverso dos fluxos financeiros (dos países pobres para os ricos) não foi produzido pela elite dos EUA só por si mesma, mas sim com a ajuda das elites do Terceiro Mundo; e as últimas também floresceram de forma sem precedentes desde então. Estes padrões representam, num sentido, uma amálgama entre as elites de diferentes mundos contra os seus povos, os quais são os perdedores em todo o esquema.

A finalidade da produção sob o capitalismo é acumular capital

Evidentemente, houve poderosas forças sociais a conduzirem os desenvolvimento que resultaram no boom e no colapso. A nossa pesquisa para uma explicação deve estender-se à natureza destas forças.

Antes de tratar da crise financeira, é importante enfatizar um facto centro acerca do capitalismo: Os capitalistas são obrigados a acumular cada vez mais riqueza. Contudo, a fonte da riqueza da classe capitalista é a expropriação do valor excedente do trabalho no decorrer da produção. Devido à sua exploração pelos capitalistas, o consumo dos trabalhadores é restringido. Assim, construída dentro do capitalismo há uma contradição entre, por um lado, a pobreza e o consumo restrito dos trabalhadores e, por outro, a tendência dos capitalistas a manter-se a expandir as forças produtivas como se o seu único limite fosse o poder absoluto de toda a sociedade para consumir. Esta contradição provoca crises repetidas de superprodução sob o capitalismo.

Para o capitalista, a finalidade da produção não é criar valores de uso e sim acumular riqueza. Assim, uma vez que os lucros começam a declinar devido à procura inadequada, o capitalista corta no investimento e começa a restringir em trabalhadores. Uma desaceleração geral de lucros ocorre inevitavelmente em algum ponto quando o crescimento da capacidade produtiva da sociedade ultrapassa a procura. Numa tal conjuntura todos os capitalistas retraem-se ao mesmo tempo; as suas retracções levam mais uma vez a procura reduzida; isto reduz os lucros outra vez e então dispara novas reduções – numa espiral em declínio de emprego, procura e investimento. A busca pelo capitalista individual do seu lucro individual desse modo conduz finalmente à supressão da produção social.

Na era do capitalismo competitivo, uma vez que os excessos de stocks haviam sido depreciados e bastante valor destruído, os capitalistas em algum ponto descobririam que era possível fazer alguns lucros investindo outra vez, e todo o ciclo recomeçaria. Mas cada crise tornava claro que a propriedade da classe capitalista dos meios de produção se tornara uma barreira para o ulterior desenvolvimento das forças produtivas. A natureza da produção era cada vez mais social; os novos avanços das forças produtivas seriam possíveis apenas sob a propriedade social dos próprios meios de produção. Só então a produção seria libertada das exigências da acumulação privada de riqueza e seria, ao invés, destinada a cumprir, através da criação planeada de valores de uso, as necessidades da sociedade presente e futura.

A era do capital monopolista

A contradição básica do capitalista é intensificada na sua etapa actual, ou seja, a do capitalismo monopolista, ou imperialismo, o qual emergiu no fim do século XIX. A indústria na principais economias do mundo era agora dominada por um pequeno número de corporações gigantes controlando um excedente crescente. O problema para estas firmas era encontrar meios para investir este capital com um retorno atraente. Periodicamente, sem dúvida, novos estímulos ao investimento ocorriam (e continuam a ocorrer, como por exemplo o desenvolvimento da internet na década de 1990). Mas uma vez que uma onda de investimento satisfazia a procura que lhe dera origem, o investimento enfraquecia e a estagnação manifestava-se. A tendência a longo prazo era rumo à estagnação. A super-capacidade e as dívidas adquiridas durante o período do boom continuavam a deprimir o investimento, daí a resistência do capital monopolista a aceitar taxas de retorno mais baixas sobre o seu capital. A lógica interna do próprio sistema não gerava forças para revivê-lo. Isto foi ilustrado da forma mais gritante na Grande Depressão, a qual perdurou por mais de uma década apesar do desemprego generalizado, da queda nos salários e da destruição de valor.

Na década de 1930, mesmo quando o mundo capitalista jazia nas profundidades da Grande Depressão, a União Soviética experimentava um crescimento industrial rápido. O povo nos países capitalistas começava a perguntar porque o investimento do investimento social nos seus próprios países era determinado pelos interesses estreitos de especuladores financeiros e barões industriais, ao invés de sê-lo por um plano social, quando este podia empregar toda a força de trabalho e aumentar a produção. Esta ideia colocava um desafio político ao sistema capitalista. A Depressão assistiu à ascensão de movimentos progressistas no mundo todo para derrubar a ordem existente e substituí-la por uma ordem alternativa.

Entre os países imperialistas, os EUA fracassaram em efectuar uma recuperação real com o seu muito trombeteado mas realmente limitado New Deal. Foi o capital monopolista alemão que teve êxito em efectuar uma plena recuperação da economia alemã e o pleno emprego da sua força de trabalho, recorrendo ao fascismo e à guerra. A Segunda Guerra Mundial teve êxito em resolver o problema do desemprego e da subutilização da capacidade produtiva em todos os países imperialista durante algum tempo, pela mobilização de toda a capacidade industrial e da força de trabalho para a guerra, matando dezenas de milhões de pessoas, destruindo capacidade produtiva e criando procura para reconstruir toda espécie de activos físicos. Excepto por tais horrores, o capitalismo não descobriu solução dentro de si próprio para as suas crises subjacentes.

Recurso a diferentes meios de ultrapassar crises

Com o fim da Guerra, o excesso de capacidade reapareceu, assim como temores de recessão. Além disso, o imperialismo estado-unidense sentia-se ameaçado pela alta consideração mundial para com o papel da União Soviética na Guerra, bem como pela aumento no apoio a partidos comunistas na Europa. Contra este pano de fundo, os EUA ressuscitaram políticas New Deal internamente e implementaram o Plano Marshall para reconstruir a Europa em linhas capitalistas.

Num sentido, contudo, a paz nunca retornou: bem após a II Guerra Mundial, as despesas militares continuaram a promover a procura estado-unidense, com guerras regionais na Coreia, Vietname e alhures, bem como a Guerra Fria. Outras formas de despesa governamental também cresceram. Além disso, a promoção agressiva da indústria automobilística e o consumismo desenfreado sustentaram a procura durante um tempo considerável (o exército crescente no marketing e no retalho somava-se a isto). Mas finalmente, desde a década de 70, o bloco de economias imperialistas liderado pelos EUA voltou-se cada vez mais para a expansão do sector financeiro como meio de estimular a economia. [2]

O sector financeiro assim fez ao expandir toda a espécie de dívida e especulação. A dívida familiar com casas, carros e bens de consumo duráveis estimulava o consumo em massa. A dívida do sector financeiro aumentava os fluxos de finanças para vários mercados especulativos, elevava os preços das acções e do imobiliário e portanto estimulava a actividade da construção bem como os gastos do consumidor para aqueles cujas acções ou casas se haviam valorizado.

O próprio sector financeiro criava emprego para um conjunto apreciável de parasitas de altas remunerações. E a dívida do governo financiava as inchadas despesas militares do imperialismo estado-unidense, desde o Vietname até o Afeganistão. Como o dólar continuava a ser a principal divisa internacional, outros países estiveram desejosos de emprestar aos EUA e isto sustentou o crescimento da sua dívida nacional. Contudo, mesmo os altos gastos do consumidor estado-unidense não podiam impedir a economia dos EUA de experimentar um arrefecimento constante e a longo prazo, de taxas de crescimento de 4,1 por cento na década de 1950 para 2,6 por cento na de 2000. [3] Nem tão pouco tal financiarização desenfreada podia impedir um arrefecimento semelhante a longo prazo em todas as outras economias imperialistas.

O processo de financiarização, exploração do trabalho e parasitismo

Enquanto a desaceleração a longo prazo do crescimento do PIB persistiu, as principais economias capitalistas tiveram êxito em provocar uma outra espécie de mudança de rumo. Após a recessão de meados da década de 1970, o capital nos EUA e na Grã-Bretanha abraçou uma política de agressiva de abuso do trabalho, na qual o esmagamento da greve dos controladores de tráfego aéreo nos EUA (1981) e da greve dos mineiros no Reino Unido (1984.85) foram marcos importantes. O processo de financiarização, e a liberdade do capital para movimentar-se através de fronteiras, mais uma vez fortaleceu as mãos do Capital contra o Trabalho. Estes desenvolvimentos levaram a um aumento na fatia dos lucros e ao declínio na fatia do rendimento do trabalho desde os princípios da década de 1980 até à data. [4] Esta mudança, contudo, acabaria por agravar o problema subjacente da procura.

Enquanto o sector financeiro tem sido capaz de sustentar alguma espécie de crescimento nas economias imperialistas, ele não pode por si próprio criar qualquer valor. O valor é criado na produção. O sector financeiro cria e comercia direitos sobre aquele valor. Em contraste, numa economia socialista a maior parte do sector financeiro desaparece sem qualquer dano para a produção e o consumo. Portanto o crescimento inchado do sector financeiro, e a sua apropriação de uma fatia ainda maior do valor criado na produção, representa o parasitismo final.

Com a explosão das finanças, a estrutura anterior do capitalismo monopolista experimentou uma mudança. Quando as corporações tornaram-se cada vez mais sujeitas à ameaça de tomadas de controle por parte de empresários financeiros, elas passaram a ser vistas cada vez mais como fardos de activos para a compra e venda especulativa – como nas florescentes "fusões e aquisições", incluindo "compras alavancadas" ("leveraged buy-outs) de empresários financeiros. Dentro do capitalismo, o sector das actividades financeiras tornou-se dominante.

Contudo, mesmo quando a financiarização sustentava o crescimento nas economias imperialistas ela arruinava o resto do mundo. Em períodos de expansão das economias imperialistas, fluxos voláteis de capital especulativo inundava países do Terceiro Mundo; em períodos de baixa, o capital retornava aos abrigos imperialistas seguros, acima de tudo os EUA. No seu caminho de entrada, estes fluxos levavam ao crescimento rápido nos preços das acções e do imobiliário e a um crescimento distorcido e insustentável baseado no consumo da elite destes países do Terceiro Mundo. No seu caminho de saída, levavam ao colapso de preços de activos, ao esmagamento do crédito, retracção e queda do valor da divisa. A tal ponto que estes países são capazes de obter empréstimos só na condição de subjugarem mais da sua economia ao capital estrangeiro (ex.: privatizar activos tais como petróleo ou telecomunicações, ou remover restrições a investimentos estrangeiros no sector bancário). Grande parte do Terceiro Mundo experimentou tais devastações do capital especulativo internacional. Quanto maior a "globalização" destas economias, maior a sua vulnerabilidade a tal devastação.

Desde meados da década de 1990 os EUA testemunharam dois grandes booms. O primeiro, conhecido como "boom dotcom", foi alimentado pela crença de que a "Nova Economia" (a computorização generalizada de várias funções de negócios e a revolução nas comunicações, incluindo a Internet) resultaria em maior produtividade e numa histórica expansão sustentada. O investimento real (isto é, em activos físicos) atingiu o auge, mas mesmo isto foi concentrado no sector financeiro. Os preços das acções ascenderam a alturas absurdas. A bolha explodiu em 2000 e a recessão começou em 2001. Contudo, o imperialismo estado-unidense evadiu-se da recessão nuns poucos meses ao reduzir as suas taxas de juros internas aos níveis mais baixos, empurrando deliberadamente a expansão de empréstimos bancários para habitação e expandindo os gastos militares do governo. O boom dotcom, até então a maior bolha financeira da história, foi substituído e ultrapassado de longo pela bolha habitacional. O total da dívida contratada por entidades dos EUA quase duplicou durante o boom; ela ascendeu a 2, 68 vezes o PIB em 2000, a 3,46 vezes o PIB em 2007. [5] Disse em 2003 Stephen Roach, economista chefe do Morgan Stanley: "O Fed (bancos central dos EUA) tornou-se, com efeito, um soprador de bolhas em série". [6]

A enorme maré de liquidez que jorrava da economia americana no período pós 2001 teve o efeito imediato de elevar a taxa de crescimento da própria economia mundial. Ao aumentar a procura nos EUA, ela aumentou as compras estado-unidenses de bens importados do resto do mundo. Mais uma vez, com acesso fácil a fundos, investidores ricos nos países imperialistas procuraram altos retornos no Terceiro Mundo. As entradas de tais fundos nos mercados de acções e nos mercados imobiliários do Terceiro Mundo levaram a taxas de crescimento relativamente altas em muitos países do Terceiro Mundo, incluindo a Índia. A evaporação destes fundos agora está a levar ao mergulho súbito destas mesmas economias e esvaziou as inchadas jactâncias de governantes da Índia e de outros países de que as suas economias haviam-se tornado potências mundiais.

Após o colapso do boom das dotcom, a indústria nos países imperialistas ficou com considerável capacidade inutilizada e permaneceu arredia a empreender novos investimentos. Assim, apesar do crescimento relativamente alto da economia durante a bolha habitacional, a indústria nas economias imperialistas preferiu canalizar os seus lucros para o sector financeiro ao invés da criação de activos físicos. (Portanto, mesmo dois anos após os EUA serem considerados ter saído da recessão de 2001, os empregos recusavam-se a crescer da maneira que o fazem durante uma recuperação.) No Extremo Oriente, a indústria, tendo sofrido o crash de 1997-98, recusou-se a investir. Portanto a economia mundial sofria baixo investimento por um lado e consumo desenfreado da economia dos EUA por outro.

Crise

A contradição entre a expansão do sector financeiro e a estagnação do sector produtivo subjacente encontrou finalmente expressão no colapso recente. O disparador específico para o recente colapso financeiro foi uma "inovação" deste nos EUA chamada "titularização" ("securitisation"). Um banco reuniria maços de empréstimos que havia feito e vendia estes maços a investidores. Isto é, o investidor possuiria um pedaço de papel conferindo-lhe uma fatia dos rendimentos que viriam para o banco de um grupo particular de tomadores de empréstimo. Com este método, os bancos recuperariam deste mercado de investidores a quantia que haviam concedido como empréstimos habitacionais a outros, bem como gordas comissões, e neste processo seria livre para expandir mais uma vez a concessão de empréstimos. Estes títulos de papel ofereciam aos investidores retornos mais altos do que outros lugares nos quais eles pudessem investir o seu dinheiro. Mas eles foram apenas o ponto de partida para um enorme edifício de dívida e especulação. Vários outros títulos foram concebidos e emitidos por diferentes instituições financeiras baseados no agrupamento conjunto de rendimentos dos títulos originais; e novas apostas especulativas centradas sobre o risco de incumprimento de vários grupos de tomadores de empréstimos. Aqueles que compraram todos estes títulos tomaram emprestadas enormes somas para poder fazê-lo. As finanças ascenderam e assim o fez a economia baseada sobre isto. De acordo com algumas estimativas, nos EUA, aproximadamente 80 por cento do aumento no emprego e quase dois terços do aumento do PIB nos anos anteriores à crise derivou directa ou indirectamente do sector imobiliário. [7]

Desde a década de 1980, por outro lado, os salários nos EUA (assim como no mundo todo) foram reprimidos por políticas neoliberais, mesmo quando um elite minúscula acumulava riqueza sem paralelo. Esta repressão salarial teria minado o consumo e levado a uma depressão muito mais cedo se o consumo em massa não houvesse sido sustido pela expansão colossal da dívida habitacional. À medida que a expansão avançava, os bancos davam empréstimos para segmentos cada vez mais pobres (o "sub-prime"). Entretanto, toda aquela dívida em última análise tinha de ser servida a partir de rendimento e a estagnação nos rendimentos dos trabalhadores significava que eles não podiam sustentar o serviço da dívida. Isto levou a uma elevação da taxa de incumprimentos nos empréstimos habitacionais. Por sua vez, o edifício gigante das finanças e da especulação baseado naquela dívida estraçalhou-se. Ou seja, a contradição subjacente do capitalismo reafirmou-se.

Exportação de poupanças do Terceiro Mundo para os EUA

No cerne da crise actual está igualmente a relação entre o imperialismo, particularmente o americano, e o Terceiro Mundo. Um aspecto importante desta relação nos últimos anos é o grande influxo de capital de países do Terceiro Mundo – China, outras economias do Extremo Oriente e os exportadores de petróleo do Golfo – os quais sustentaram a expansão estado-unidense. Estes países acumularam grandes excedentes comerciais; os seus bancos centrais investem estes excedentes nos EUA, principalmente nos instrumentos de dívida do seu governo. Estes fluxos cobrem o gigantesco défice de transacções correntes dos EUA (isto é, o défice em que os EUA incorrem no comércio de bens e serviços). Estes fluxos de capital para os EUA não financiam apenas o seu défice de transacções correntes; eles são tão grandes que financiam mesmo o investimento gigante dos EUA no exterior. [8] E enquanto o investimento estrangeiro nos EUA nos títulos de divida do governo tem baixo retorno, o investimento dos EUA no estrangeiro rende altos retornos. Consequentemente, os EUA, apesar de serem um enorme devedor líquido, ganham mais com os seus investimentos no estrangeiro do que pagam aos outros pelos seus investimentos nos EUA. Nas palavras de Kenneth Rogoff, antigo economista chefe do FMI, "Este enorme subsídio aos contribuintes americanos é, sob muitos aspectos, o maior programa de ajuda estrangeira do mundo". [9] (Parte do investimento estado-unidense no exterior está, naturalmente, aplicado no Terceiro Mundo. Bancos centrais do Terceiro Mundo, como o RBI da Índia, têm sido obrigado, por sua vez, a investir algo deste fluxo de rendimentos em dívida do governo dos EUA – uma hemorragia múltipla.

Por que então países como a China, outros países do Extremo Oriente e os exportadores de petróleo do Golfo compram dívida do governo dos EUA? Isto deve ser visto no contexto da dominação global dos EUA (um importante elemento da qual é a sua supremacia militar esmagadora). Nesta base os EUA asseguraram o reinado contínuo do dólar como a principal divisa internacional e portanto asseguraram que constitua o grosso das reservas de câmbio estrangeiras dos bancos centrais. Os EUA também têm utilizado a sua influência como o maior importador do mundo para impor condições aos maiores exportadores do mundo.

Ao mesmo tempo, o actual padrão de comércio e de fluxos financeiros também beneficia as elites de certos países do Terceiro Mundo. O florescimento das exportações (na base da dura exploração de trabalhadores) rende-lhes lucros ricos. Além disso, o fluxo de fundos internacional ajuda-os de diversos modos. O capital estrangeiro ao fluir para dentro de países do Terceiro Mundo promove a procura do consumidor das classes altas e os lucros corporativos; e num clima de fundos fáceis e baratos, os investidores globais estão desejosos de financiar os sonhos globais de grandes capitalistas do Terceiro Mundo, como os Tatas e Ambanis. Mesmo quando o facto da exploração imperialista é tão rematado como nunca, os seus contornos e padrões estão a mudar.

As poupanças que certos países do Terceiro Mundo estão a exportar para os EUA são tornadas possíveis pela supressão do consumo do seu próprio povo trabalhador (isto é, pagando salários baixos aos trabalhadores, tributando e pagando pouco aos camponeses). O mais gritante exemplo deste padrão é o da China, a qual espantosamente poupa deste modo metade do rendimento nacional. São tão altas as poupanças da China que apesar de ter a mais elevadas taxa de investimento do mundo elas dispõe de poupanças excedentes para exportar. No caso de outros países em desenvolvimento, as poupanças excedentes que estão a ser exportadas não são o resultado do aumento das poupanças e sim da queda do investimento interno sob o domínio de políticas económicas neoliberais. Na verdade, "há uma escassez global de investimento, com o investimento tendendo a declinar" [10] mesmo durante o período anterior de alto crescimento. Portanto a relação no centro da economia mundial é de parasitismo.

O imperialismo estado-unidense no declínio

Contudo, o imperialismo estado-unidense já ultrapassou o seu apogeu. A sua última grande aposta foi sustentar o seu poder económico em declínio pelo exercício do seu esmagador poder militar. O seu objectivo foi não só a simples pilhagem da riqueza petrolífera como também o controle deste recursos estratégico, e a reafirmação da hegemonia do dólar sobre a qual repousa o seu destino. Este exercício, planeado para ser ágil e cirúrgico, ficou atolado numa inesperadamente forte e tenaz resistência nacional nos países ocupados, fazendo com que os EUA tenham de pagar uma factura militar cada vez maior.

Agora os EUA foram forçados a recentrar as suas energias políticas inteiramente no resgate da sua economia naufragada, pelo que necessita manter entradas contínuas de capital. Mesmo preservando a grande fachada de liderança global, os EUA são forçados a pedir a cooperação de outras potências em várias esferas (a primeira viagem ao estrangeiro da secretária de Estado foi à China, para pedir-lhe que continue a investir na dívida do governo americano; ali ela teve de colocar tema de estimação dos EUA em relação à China, os "direitos humanos", em banho-maria). Os vários organismos económicos internacional dominados pelos EUA – FMI, Banco Mundial e Organização Mundial de Comércio – estão a cambalear sob o impacto da crise actual e não estão em condições de assumir o comando. Os fundos do FMI e do Banco Mundial são insignificantes em comparação com a escala dos empréstimos requeridos. Quando diferentes países correm para escorar as suas economias internas contra a tempestade internacional, a agenda de "globalização" da OMC foi posta de lado. Ainda mais importante: o reinado do dólar como a principal divisa internacional, o qual tanto repousa sobre a hegemonia estado-unidense no mundo como ajuda a manter esta hegemonia, agora ficará sob um questionamento crescente devido aos próprios esforços dos EUA para livrar-se da crise. [11] Como destaca Rogoff: "Uma grande expansão na dívida... certamente tornará mais difícil para os EUA manter a sua dominação militar, a qual tem sido um dos suportes do dólar". [12]

À medida que a crise se aprofunda, as tensões e conflitos entre diferentes potências imperialistas, bem como outros países capitalistas tais como a China, agudizar-se-ão, e novos blocos emergirão. Quaisquer esforços americanos para reduzir o seu enorme défice comercial exigiriam uma redução do mercado de outros países, os quais não o abandonariam sem combate. Um período de discórdia quanto a mercados está a assomar.

A gravidade da crise actual é comparável apenas à da Grande Depressão da década de 1930. Como tal, ela tocou o dobre de finados da era neoliberal. Mesmo que a ideologia neoliberal sobreviva de uma forma modificada, e ela continuará a opor-se aos esforços das outras escolas principais de teoria económica da classe dominante (keynesianismo) para restaurar o crescimento, no futuro próximo ela já não pode desfrutar a supremacia inquestionável que detinha. Entretanto, ainda não é claro o que substituirá o neoliberalismo não diluído, e no momento actual há confusão e melancolia entre os ideólogos dos círculos dirigentes nos principais países capitalistas.

Os estados capitalista outrora abraçaram abertamente [13] certos instrumentos keynesianos – tais como o de o Estado promover a procura agregada, e assim estimular o investimento privado, através do gasto deficitário – mas sem aceitar as percepções mais sombrias de Keynes quanto à tendência inerente do capitalismo à decomposição. Assim, enquanto Keynes, seguindo a lógica da sua teoria, era forçado a reconhecer a necessidade de "uma algo abrangente socialização do investimento", tal nível de socialização é claramente incompatível com o capitalismo. As perspectivas são negras para um capitalismo que venha a emergir da crise actual com a utilização de instrumentos keynesianos isolados.

Crise ambiental

Além disso, no sistema keynesiano, tudo o que importa é que a despesa aumente, que os trabalhadores tenham emprego, e o crescimento recomeçará/continuará. Keynes não só apoiava explicitamente a ordem social existente como enfatizava que o que estava a ser produzido e consumido não tinha relevância. Contudo, no domínio do capitalismo e mais particularmente sob o imperialismo, o carácter do crescimento tornou-se uma questão cada vez mais premente para a sobrevivência da humanidade. Mesmo quando a crise mundial do processo de acumulação capitalista chega a um máximo, as crises mundiais criadas pelo processo de acumulação capitalista estão a desenvolver-se rapidamente.

Por um lado, a produção da mais básica necessidade da vida, o alimento, está ameaçada – pela falta de investimento, pelo desvio da terra para utilizações não agrícolas e produções agrícolas para usos não alimentares (ex.: biocombustíveis) e pela grave degradação do ambiente. Por outro lado, a natureza do actual crescimento económico é em si própria ambientalmente insustentável. A adição das secções mais ricas em alguns países do Terceiro Mundo à categoria de "consumidores de classe mundial" está a salientar quão insustentável isto é. Se, por alguma magia, o consumo no Terceiro Mundo pudesse ser elevado ao nível daquele nos países imperialistas, e mantendo o mesmo padrão, isto multiplicaria o consumo de recursos naturais e agravaria enormemente a produção de resíduos e a degradação ambiental.

Este padrão de consumo predatória e destrutivo foi criado pelo capitalismo monopolista a fim de criar mercados e com isso facilitar a sua própria acumulação de capital. Ele nada tem a ver com as necessidades físicas das pessoas, o seu sentimento de felicidade e segurança, ou o desenvolvimento das suas capacidades. Tudo isto pode ser melhor preenchido com um padrão de consumo radicalmente diferente. Contudo, isso exigiria um sistema social diferente, baseado na produção para as necessidades do povo, o socialismo.

Impacto sobre o Terceiro Mundo

A atenção mundial é focada nos desenvolvimentos dramáticos e nos enormes pacotes de salvamento nos países imperialistas, e na verdade o povo trabalhador daqueles países imperialistas está destinado a experimentar grande sofrimento. Mas o maior impacto imediato desta crise será sofrido no Terceiro Mundo. Nos últimos anos, economistas, colunistas e líderes políticos propalaram a noção de que as economias do Terceiro Mundo haviam "desconectado" do mundo desenvolvido, e continuariam a crescer mesmo quando estas últimas estagnassem. [14] A teoria da desconexão agora foi enterrada. Naqueles países do Terceiro Mundo que experimentaram um desenvolvimento industrial relativamente maior, a queda nas exportações, bem como a queda na procura interna (devida à queda em entradas de capital), estão a levar a reduções em escala muito grande. Ainda mais: o vasto campesinato do Terceiro Mundo está a ser devastado por um crash nos preços de commodities agrícolas (quando a procura se retrai e quando especuladores abandonam seus investimentos a fim de compensar perdas em outros mercados financeiros). Tudo isto só pode piorar a fome prolongada de investimento agrícola e, por sua vez, a crise alimentar mundial.

Se bem que seja teoricamente possível que estes país reorientem as suas economias para a promoção da procura interna e assim gerar um mercado para o crescimento industrial contínuo, a economia politica destes países (isto é, a natureza da classe dominante nos mesmos, a forma como o excedente social é gerado, apropriado e redistribuído) apresenta um obstáculo a tal reorientação. Pois uma tal reorientação exigiria uma grande transferência de recursos para o povo trabalhador, o que teria a oposição das classes dominantes.

Este período de agitação e declínio da hegemonia estado-unidense, por outro lado, apresentará grandes oportunidades para o avanço das lutas dos povos e das forças que combatem por uma ordem social alternativa tanto nos países capitalistas avançados como, mais ainda, no interior do Terceiro Mundo. Isto, no momento em que a crise convence os povos do mundo da irracionalidade e barbárie do capitalismo. A emergência de irrupções militantes anti-Estado na Grécia, a greve geral de trabalhadores franceses, as manifestações na Islândia culminando na queda do governo, a ocupação de uma fábrica em Chicago pelos trabalhadores e manifestações de trabalhadores na Rússia e na China são arautos de lutas de classe iminentes.

O estouro da bolha indiana

O PIB da Índia cresceu em 2003-08 no ritmo mais rápido de qualquer período de cinco anos. As suas taxas de investimento subiram para níveis comparáveis a de economias do Extremo Oriente. Os valores das suas acções mais do que quadruplicaram. Financiado pela banca internacional o sector privado corporativo da Índia começou a adquirir empresas além-mar. E a elite dos negócios e da política do país começou a envaidecer-se considerando-se como a classe dominante de uma nova superpotência económica.

No espaço de tempo de uns poucos meses tudo mudou. O crescimento do PIB está em queda e o sector manufactureiro caiu num mergulho; as firmas indianas mais famosas estão a ter perdas e a cancelar investimentos planeados; o mercado de acções entrou em crash; aquisições no estrangeiro estão a demonstrar-se pesos mortos atados aos pescoços de muitas corporações; e o convencimento da elite dirigente evaporou-se.

À economia indiana, tal como se desenvolveu historicamente, falta uma dinâmica interna poderosa tal como a que emergiria de uma procura interna saudável e amplamente dispersa. Especialmente a partir da década de 1980, ela virou-se cada vez mais para entradas de capital estrangeiro a fim de promover o seu crescimento. Portanto ela é sistemicamente vulnerável. Na última vez em que o fluxo de capital estrangeiro (na forma de empréstimos) secou, em 1990-91, a economia indiana sofreu um mergulho. Ela foi forçada a submeter-se ao "ajustamento estrutural" dirigido pelo FMI a fim de conseguir novos empréstimos. Desde então, a sua vulnerabilidade aumentou muitas vezes pois ela "globalizou-se", tanto na esfera comercial como financeira.

O recente episódio de alto crescimento da Índia (2003-08) foi principalmente o resultado do mar de liquidez dos EUA. Uma inundação de capital especulativo estrangeiro entrou na Índia através de vários caminhos, com influxos líquidos de capitais elevando-se a um pico de US$108 mil milhões em 2007-08. Estes influxos alimentaram uma elevação aguda na concessão de empréstimos bancário a consumidores das classes média e alta para a compra de casas e automóveis. Isto por sua vez alimentou a procura em todo um conjunto de indústrias. Entradas de capital especulativo estrangeiro inflaram grandes bolhas no mercado de acções e no sector imobiliário, resultando em que magnatas industriais indianos e barões do imobiliário fossem avaliados (na base da alta conduzida pela especulação nos preços das acções e da propriedade) como estando entre os homens mais ricos do mundo. As indústrias para satisfazer o consumo da elite, desde companhias de aviação a bens duráveis, incharam. Todas estas indústrias são de capital intensivo e criam pouco emprego (com a excepção parcial da construção).

Enquanto isso, os sectores que empregam a esmagadora maioria da força de trabalho, e que fornece a maior parte dos bens de consumo em massa, nomeadamente a agricultura e a indústria de pequena escala, foram privadas de investimento e mesmo de crédito para fundo de maneio; eles estagnaram ou mesmo retrocederam durante o boom do sector corporativo. Portanto o emprego e os salários estagnaram durante longo tempo durante a expansão. Quando finalmente começaram a subir a seguir a um boom sustentado da construção, a escassez de alimentos (o resultado no sub-investimento na agricultura), juntamente com a especulação em commodities agrícolas, levou a altas elevações de preços, arrancando grande parte dos ganhos de rendimento do povo trabalhador.

Após o estouro da bolha da economia internacional, assim aconteceu também com a bolha da economia da Índia. Prevê-se que as entradas de capital líquido venham a cair de US$10 mil milhões em 2008-09 – uma queda de 91 por cento. O índice Bombay Stock Exchange (Sensex) caiu de 20.873 em 08/Janeiro/2008 para 8.541 em 20/Novembro/2008, e tem permanecido neste último patamar desde então. As taxas mensais de crescimento industrial despencaram de 9,8 por cento em Agosto/2007 para -2 por cento em Dezembro/2008. [15]

A classe dominante indiana vê esta crise como sendo exclusivamente de liquidez e lucratividade do sector corporativo privado. Assim, ela adoptou um conjunto de medidas para assegurar o fluxo de fundos bancários para o sector corporativo compensar a redução de entradas externas; efectuou novos afrouxamentos de restrições ao investimento institucional estrangeiro (IIE) e ao investimento directo estrangeiro (IDE) em diferentes sectores; fez concessões fiscais amplas e deu subsídios à exportação; forçou as instituições financeiras do sector público a apoiarem preços de acções através de compras; promoveu procura para o imobiliário e indústrias automobilísticas forçando bancos do sector público a tornarem mais baratos e mais facilmente disponíveis empréstimos para casas e automóveis; e reduziu drasticamente o preço do combustível para aviação a fim de ajudar companhias aéreas privadas (em contraste com a moderada redução nos preços do gasóleo e da gasolina). Houve apenas duas medidas de gastos directos em 2008-09 e ambas foram insignificantes: Rs 200 mil milhões [€3,01 mil milhões] de gastos adicionais do Governo Central e um aumento do limite que os governos dos estados podem tomar emprestado.

Contudo, num implacavelmente rigoroso clima para lucros, não é provável que estas medidas disparem um novo boom de investimento do sector corporativo privado, especialmente porque o último boom terá deixado firmas com excesso de capacidade. Ao invés disso, os fundos e concessões serão utilizados pela grandes firmas para sustentar a sua precária – em alguns casos perigosa – posição financeira (exemplo: muitas das firmas imobiliárias podem na realidade estar insolventes, uma vez que se considere a queda nos preços dos terrenos). Ao mesmo tempo, estas medidas reduzirão rendimentos fiscais, desviarão crédito bancário dos sectores que dele precisam com urgência, subsidiarão consumo de luxo (tal como viagens aéreas e automóveis) e permitirão novos controles estrangeiros em sectores até agora restringidos.

O alto crescimento dos últimos tempos não foi em si mesmo de qualquer beneficio para o povo, uma vez que os empregos e rendimentos que, de um modo mesquinho, proporcionou com um mão retirou-a com a outra. Além disso, o crescimento foi baseado em cada vez mais enviesamento da economia em direcção à procura da elite, alimentadas por entradas do estrangeiro; isto não podia sustentar-se para sempre. (A classe dominantes e os seus economistas imaginaram sem dúvida que a economia da Índia, e mesmo a sua vida política, poderia "desconectar" permanentemente das condições da maioria do seu povo.) Finalmente, embutido no padrão deste crescimento rápido houve toda espécie de actividades económicas indesejáveis, dissipadoras e mesmo danosas, tais como a proliferação de automóveis e viagens aéreas, infraestrutura urbana para automóveis, cuidados de saúde corporativos, retalho organizado, agricultura corporativa, usurpação de terra agrícola pelo imobiliário, privatização da água e de outros recursos naturais, e assim por diante.

Se bem que o povo como um todo não haja beneficiado deste padrão de crescimento, o colapso do mesmo provocará um golpe imediato para muitos – na forma de reduções de trabalhadores e de preços agrícolas deprimidos para camponeses. Centenas de milhares de trabalhadores estão a ser reduzidos no sector exportador – têxtil e vestuário, polimento de diamantes, bens de couro, turismo, etc. Lay-offs e reduções também estão a caminho em vários sectores destinados a satisfazer a procura da elite e da classe média, tais como automóveis, hotéis, companhias de aviação, bens duráveis e, acima de tudo, construção. Os preços no produtor de commodities agrícolas, que há apenas sete ou oito meses estavam em ascensão, estão agora destinados a cair com o enfraquecimento da procura e a transmissão de sinais de preço internacionais para a Índia; o campesinato está em outro longo período de preços deprimidos. (Mas a tendência a longo prazo de fraco crescimento da produção agrícola, e o domínio do comércio privado sobre as commodities agrícolas, levou a que os preços dos alimentos permanecessem altos; de facto, a inflação no preço de alimentos chegou mesmo a subir nos últimos meses.) Como instituições financeiras quase insolventes no Ocidente tentam aguentar-se pela liquidação dos seus investimentos no Terceiro Mundo, as saídas de capital da Índia têm aumentado. A rúpia caiu de Rs39,37 por dólar em Janeiro/2008 para aproximadamente Rs52 hoje.

Entretanto, o que o colapso assinala é que este crescimento era em si próprio inviável. O facto de o "crescimento" ter gerado tão magro emprego no seu momento de pico limitará a extensão do dano que o seu colapso pode provocar. Além disso, o potencial cancelamento de alguns grandes investimentos – tais como a apropriação de terras em zonas económicas especiais (ZEEs), ou os projectos de destruição de emprego com o retalho organizado – de facto beneficiarão o povo. A redução do tráfego aéreo seria certamente uma coisa boa. E a solução para o problema da natureza não remunerativa da agricultura indiana não é criar um outro boom especulativo.

Exactamente ao inverso da preocupação da classe dominante da Índia, a preocupação do povo indiano não é descobrir meios de atrair novos fluxos de capital estrangeiro ou de reinflar a bolha corporativa na economia. Ao contrário, estes esquema vão directamente contra o seu interesse. O interesse do povo está em fazer reivindicações imediatos tais como as que se seguem: Investimento estatal, e apoio, na agricultura e actividades relacionadas; crédito, apoio financeiro e outra assistência necessária (inputs, marketing) a pequenos produtores não agrícolas (pequena e micro indústria, artesanato/bordados); um aumento maciço na geração de emprego directo pelo Estado; a universalização do Sistema de Distribuição Pública (em três sentidos: cobertura real de todas as áreas e famílias; provisão de condições plenas para uma família; e inclusão de todas as necessidades básicas, não meramente de cereais); universalização e um nível decente de cuidados de saúde pública; construção de escolas adequadas com emprego de um contingente completo de professores qualificados; assegurar habitação adequada para as massas urbanas; e muitas outras medidas como essas.

Ao mesmo tempo, o interesse do povo está em exigir que a economia do país não fique mais subjugada aos fluxos de capital estrangeiro, ou orientada para a procura externa ou procura de luxo ao custo do genuíno desenvolvimento nacional e democrático. E finalmente, como a longo prazo a escassez de emprego persiste, a exigência dos camponeses de acesso à terra e outros activos rurais para cultivo deve vir fortemente à tona.

Naturalmente, isto equivale a exigir uma mudança da própria política económica. Nos tempos de hoje, quando a crise global desacredita o próprio sistema capitalista, a exigência de uma tal mudança ganhará círculos cada vez mais vastos de aderentes nestes países. O papel dos estudantes sinceros de economia política é explicar ao povo as causas reais da crise actual, e a necessidade de lutar por uma política económica que possa dirigir o excedente social do país para o cumprimento das necessidades sociais reais do presente e do futuro.

Março/2009

Notas:
1. Interview in Asian Age, 22/12/08.
2. Harry Magdoff e Paul Sweezy, Stagnation and the Financial Explosion, 1987.
3. John Bellamy Foster e Fred Magdoff, "Financial Implosion and Stagnation: Back to the Real Economy", Monthly Review, December 2008.
4. Ellis, Luci e Kathryn Smith, "The global upward trend in the profit share", BIS Working Papers no. 231, 2007, e International Labour Office, Global Wage Report, 2008-09 confirm the downward trend in wage share.
5. US Federal Reserve Flow of Funds Accounts, citado em Harish Damodaran, "Getting 'real' about financialisation", Hindu Business Line, 6/10/08.
6. "Endless bubbles", 20/6/03.
7. Joseph Stiglitz, "Will the dam break in 2007?", Project Syndicate, 2006.
8. Em 2007, dos fluxos de capital bruto para os EUA de US$2,1 milhões de milhões, US$731 mil milhões foram para financiar o défice de transacções correntes; os investidores estado-unidenses reciclaram US$1,3 milhão de milhões destes influxos como investimentos no exterior. Kristin Forbes, "Underlying determinants of global currency usage", Peterson Institute of International Economics, 2008.
9. "Betting with the house's money", Guardian, 7/2/07. Além disso, como observa Krugman, "O encanto da situação da América é que as nossas dívidas externas são na nossa própria divisa. Isto significa que não teremos a espécie de espiral financeira da morte que a Argentina experimentou, na qual um peso em queda provocou as dívidas do país, as quais eram em dólares, para inchar de valor em relação aos activos internos". New York Times, 19/1/08.
10. Rogoff, op. cit.
11. Os compradores da dívida do governo dos EUA estão cada vez mais preocupados porque o crescimento desenfreado de tal dívida levará a uma queda drástica do dólar e portanto no valor dos seus haveres.
12. "America will need $1,000 billion bail-out", Financial Times, 17/9/08.
13. Não há dúvida, os EUA já praticam um tipo de remédio keynesiano invisível desde 2001, ao incorrer em défices orçamentais, mesmo quando fazem falsos elogios ao neoliberalismo.
14. Ao mesmo tempo eles relacionam qualquer melhoria de crescimento no Terceiro Mundo a maior "globalização" – a qual implicaria maior integração, e portanto correlação de taxas de crescimento, com os países desenvolvidos.
15. De facto, devido a aumentos nas taxas de juros e a uma desaceleração de empréstimos aos consumidores por parte dos bancos a partir do segundo semestre de 200 6, as taxas de crescimento industrial têm estado a deslizar já desde o princípio de 2007 – uma indicação de quão pesadamente a procura industrial dependia do crédito barato e fácil para o consumidor.


[*] Research Unit for Political Economy, com sede em Mumbai. Email: rupeindia@rediffmail.com ou rupeindia@yahoo.co.in . Nossos agradecimentos Nirmal Chandra e Jacob Levich pelos seus penetrantes comentários à primeira versão.

O original encontra-se em http://www.rupe-india.org/47/depression.html


Este ensaio encontra-se em http://resistir.info/ .
24/Jun/09