A crise actual explicada em mil palavras

por GEAB [*]

Como já foi explicado em diversas ocasiões desde o princípio de 2006 pela equipe de investigadores do LEAP/E2020, o motor principal da crise sistémica actual encontra-se nos Estados Unidos. Este "fim do Ocidente tal como se o conhece desde 1945" anunciado em Fevereiro de 2006 pelo LEAP/E2020 é antes de tudo o colapso em todas as suas dimensões (económica, monetária, financeira, diplomática, intelectual e estratégica) do pilar da ordem mundial do século XX que foram os Estados Unidos. E é realmente este país que se encontra no coração da crise financeira e bancária que desde este Verão afecta de maneira visível o conjunto do planeta. Para adoptar uma imagem simples, doravante o pilar repousa sobre areias movediças. Isto evidentemente leva toda a arquitectura global a afundar, primeiro no seu conjunto e depois em bocados inteiros.

Neste número 17 do GEAB, a equipe de investigadores do LEAP/E2020 decidiu portanto concentrar-se na análise da natureza da crise sistémica global agora em curso [1] e publicar uma explicação em apenas mil palavras da crise actual da sua articulação com o conjunto da crise sistémica. Esperamos que esta explicação sem jargão especializado ajude o maior número possível de pessoas a melhor compreenderem os acontecimentos dos meses e anos que estão por vir. Pois, e isto é um ponto essencial, consideramos que mais nenhum centro de poder tem a capacidade de travar a crise sistémica global em curso, e nem mesmo de limitar o seu impacto global [2] .

Desde 1945, e de maneira intensificada após o afundamento do bloco soviético a partir de 1989, a economia americana tornou-se o pilar único do conjunto do sistema financeiro e bancário mundial. A desconexão de 15 de Agosto de 1971 [3] do valor da divisa americana com o ouro (ou com qualquer outra contrapartida física, portanto disponível em quantidade limitada) abriu o caminho para um crescimento exponencial da quantidade de US dólares em circulação. A emergência crescente de novos pólos de produção industriais, tecnológicos ou de serviços no mundo, com o pano de fundo do enfraquecimento crescente da formação dos recursos humanos nos Estados Unidos e portanto da competitividade da produção americana, implicou um acrescentamento sem equivalente histórico da dívida americana (pública e privada). Esta dívida portanto tornou-se progressivamente, graças à inventividade dos operadores financeiros e à cumplicidade mais ou menos crédula de toda a cadeia bancário-financeira (bancos centrais, agências de notação, medias financeiros, políticos, economistas, etc...), a principal produção dos Estados Unidos.

. A chegada ao poder de G.W. Bush e da sua equipe de ideólogos ou negocistas implicou uma explosão fenomenal da produção deste tipo de "valores", as dívidas [4] , com a benção muito activa do então presidente da Reserva Federal, Alan Greenspan [5] : dívida pública, dívidas imobiliárias, dívidas automóveis, dívidas de cartões de créditos [6] , ... por toda a parte a dívida impôs-se como o bem mais "produzido" pela economia dita dominante. E o resto do mundo continuou a comprar este novo produto "made in USA", as elites ocidentes em particular estando fascinadas pela incrível inventividade da Wall Street e do seu anexo, a City londrina.

Contudo, desde há vários anos, não importa que pessoa com dois olhos para ver (ou seja, nem um perito nem um decisor cujos olhos aparentemente não servem senão para ler relatórios sobre a realidade ou comunicados de imprensa) e que atravessasse os Estados Unidos podia constatar que, ao contrário da Europa ou da Ásia, o país estava em pleno empobrecimento generalizado: infraestruturas deterioradas [7] , educação em queda livre, imigração crescente com fraco nível de instrução, dependência energética exterior cada vez maior, atrasos tecnológicos múltiplos: que vai reembolsar, e como, esta dívida colossal em expansão constante?

. Mas até ao 11 de Setembro, à invasão catastrófica do Iraque, ao Katrina e a destruição parcial de Nova Orleans, e mais recentemente à queda da ponte sobre o Mississipi, todo o mundo parecia, tal como os peritos, não ver senão os números publicados pelo próprio sistema que lhes vendia o produto "dívidas", números que naturalmente asseguravam que tudo ia bem e que o devedor médio eram solvável.

E depois, progressivamente, com uma aceleração crescente desde a cerca de um ano, a realidade, este parâmetro aborrecido de todas as equações produzidas pelos peritos e pelos ideólogos, fez-se convidar no sistema bancário-financeiro. Bolha após bolha (Internet, imobiliário, subprime), as tentativas de aumentar a produção de dívidas continuaram, com a esperança seja de que a economia real alcançaria o nível da dívida produzida seja de que o resto do mundo continuaria indefinidamente a comprar da dívida americana refinanciando-se com novas dívidas americanas (cada vez mais refinadas, como as famosas CDOs, Collaterized Debt Obligations , destinadas a partilhar os riscos quando de facto elas infectavam todo o sistema com estes mesmos riscos).

Mas a explosão da bolha imobiliária desencadeia uma sequência fatal, como desde Fevereiro de 2006 o GEAB já havia antecipado mês após mês, a qual progressivamente conduziu-nos a meados de 2007 e à tomada de consciência pelos grandes operadores bancário-financeiros de que o devedor final desta imensa fábrica de produzir dívidas que se tornaram os Estados Unidos, ou seja, o consumidor americano médio, já era insolvável, ou estava em vias de se tornar proximamente [8] com o pano de fundo da recessão americana já encetada [9] .

A partir da Primavera de 2007, ponto de inflexão da crise sistémica global (GEAB nº 12, Fevereiro de 2006), estes grandes estabelecimentos começaram a tentar avaliar a sua exposição sem realmente tomar a medida da crise pois, mais uma vez, o hábito, o conformismo, deixavam pensar que haveria uma "retomada da economia americana", que "a queda dos preços do imobiliário seria breve", que "o emprego manter-se-ia", que "o investimento das empresas repartir-se-ia", que "os rendimentos bursáteis aliviariam as consequências do afundamento dos preços imobiliários", etc... Toda a gente pôde ler ou ouvir esta litania de "votos piedosos" apresentados como análises sérias nos grandes medias financeiros, ou pelos próprios bancos centrais.

No meio do Verão de 2007 os grandes bancos internacionais tiveram de render-se à evidência: uma proporção muito importante (mas ainda inquantificável, na ausência de medida exacta da crise em curso) de todas estas dívidas jamais seria reembolsada. A evolução do mercado dos Commercial Papers , garantidos sobre activos (essencialmente financeiros), que servem para o financiamento das empresas e que está no cerne da crise bancário-financeira actual, é muito significativa. Como ilustra o gráfico abaixo, trata-se com efeito de um afundamento puro e simples que começou em Agosto último.

. À vista das datas de pagamento a vir, e dos seus compromissos incontornáveis, os grandes bancos decidiram portanto por-se a acumular liquidezes reais (e não mais pseudo-liquidezes como a maior parte dos produtos financeiros vendidos nestes últimos anos a milhões de poupadores, fundados em última análise sobre dívidas americanas) [10], e portanto a cessar de financiar operações potencialmente portadores de perdas maciças. Neste caso, eles cessaram nomeadamente de se emprestarem fundos mutuamente uma vez que, tendo cada um mergulhado muito na especulação com base nas dívidas americanas, uns suspeitavam dos outros de estarem ainda mais expostos e portanto de se arriscarem à falência.

Pois é exactamente disto que se trata. E é por isso que o BCE inunda literalmente os bancos europeus com liquidez. Jean-Claude Trichet deve recordar-se do afundamento do Crédit Lyonnais [11] . A crise do subprime não é senão um detonador. É, com efeito, o conjunto da bolha financeira fundada sobre a dívida americana que está vias de explodir, pois o consumidor americano está exangue no momento mesmo em que a economia americana entra em recessflação (recessflation) como foi descrito pelo LEAP/E2020 no GEAB Nº 16 (Junho de 2007). Atrás dos empréstimos imobiliários de risco estão doravante todos os empréstimos imobiliários americanos, os empréstimos automóveis, os empréstimos dos cartões de crédito americanos, ... que doravante enfrentam uma alta exponencial das suas taxas de não-reembolso (a dívida pública segue a tendência, com a baixa do dólar e dos Títulos do Tesouro americano).

Dito por outras palavras: os mais avisados na esfera bancário-financeira mundial (o que exclui nomeadamente a maior parte do actuais dirigentes dos grandes bancos internacionais) sabem que nos próximos seis meses, haverá bocados inteiros da sua actividade e dos seus balanços que vão se desvanecer em fumo, ou seja, exibir perdas récords.

. E como o contágio da economia real já está a decorrer não só nos Estados Unidos como também no conjunto do planeta, doravante é o afundamento dos mercados imobiliários britânico, francês e espanhol que está no programa deste fim do ano de 2007, ao passo que a Ásia, a China e o Japão terão de enfrentar simultaneamente a queda das suas exportações para o mercado americano e a baixa rápida do valor de todos os activos em dólares americanos (divisas como títulos do tesouro americano, acções de empresas americanas, etc...). O gráfico acima indica muito claramente os países que vão sofrer os choques mais brutais na sequência da explosão da bolha do endividamento americano, a saber o Japão, a China, o Reino Unido e países exportadores de petróleo em US dólares.

Acerca da sequência dos acontecimentos, a equipe do LEAP/E2020 não faz actualmente senão duas interrogações para as quais não tem elemento de resposta preciso: quantos peritos, banqueiros centrais, jornalistas financeiros, políticos americanistas fascinados pelos EUA serão capazes de compreender este encadeamento de fenómenos que põe em causa a sua visão do mundo? E se o fizerem, fa-lo-ão a uma velocidade suficiente, sem esperar os "Godots" que não chegarão (a saber os "novos saltos", as "retomadas" que supostamente serão programados numa América de hoje que não tem mais nada a ver com aquela de meados do século XX)?

Doravante está aberta a corrida de velocidade entre a realidade e a teoria. Uma crise sistémica é finalmente o tipo de corrida cujo vencedor é sempre, em última análise, a realidade. Os decisores, se estiverem conscientes, podem ao menos evitar a colisão brutal e frontal com os factos, poupando assim grandes danos às suas populações. Os meses que vêm aí, por todo o planeta, vão separar o joio do trigo.

Em contra-partida, o que é certo para LEAP/E2020 é que a "Muito Grande Depressão Americana" anunciada para 2007 apresentou-se ao encontro com a História e que ela vai ter consequências sem qualquer paralelo com a crise de 1929, mesmo que certos indicadores comuns às duas crises tenham passado para o vermelho desde há meses, e mesmo que 1929 permaneça o último ponto de comparação possível na História moderna [12] .

Notas:
(1) Quanto à fase de impacto da crise sistémica global, LEAP/E2020 estima que doravante o terceiro período desta fase descrita no GEAB Nº 8 (15/10/2006) será de facto muito mais longo do que o previsto pelas nossas equipes e que ele se estenderá de facto até o princípio de 2009.
(2) E não é a impotência da Reserva Federal em impedir uma recessão americana, um acelerador da crise em curso, que vai modificar a análise do LEAP/E2020 quanto ao assunto. Fonte: CNNMoney , 13/09/2007
(3) Para mais informação: Universidade de Sherbrooke , Canadá.
(4) Para uma visão mais ilustrada desta explosão das dívidas americanas é útil consultar o sítio US National Debt Clock .
(5) Hoje Alan Greenspan gostaria de reescrever a história e pretender que não tem nada a ver com a ruína financeira que está em vias de assolar seu país (fonte: New York Post, 14/09/2007); entretanto, ele foi um dos ardentes promotores de um dos principais detonadores da crise actual, a saber, os empréstimos imobiliários a taxa variável (fonte: Slate , 27/02/2004).
(6) E a corrida dos consumidores americanos aos cartões de crédito para tentar manter o seu nível de vida, após o fim do sonho do empréstimo hipotecário ad aeternam, vai-se traduzir nos próximos meses por novos embaraços para os grandes estabelecimentos financeiros. Fonte: Sioux City Journal / AP , 14/09/2007
(7) A título de exemplo, a Associação Americana dos Engenheiros Civis estima em US$ 1600 mil milhões ao longo de cinco anos os investimentos necessários unicamente para por em bom estado as infraestruturas (estradas, portos, aeroportos, adução de água, barragens, ...) dos Estados Unidos. Décadas de imperícias colectivas transformaram-se assim numa factura gigantesca que pesa sobre o futuro de todos os americanos. Fonte: American Society of Civil Engineers .
(8) A insolvabilidade do consumidor americano foi descrita no GEAB N°9 (Dezembro 2006).
(9) O exemplo do mercado automóvel nos Estados Unidos, que simultaneamente se afunda e vê subir os incidentes de pagamentos com as vendas anteriores, é muito eloquente. Fonte: The Colombus Dispatch , 02/09/2007
(10) Cf. a este respeito as Recomendações do LEAP/E2020 no GEAB N°17 (Setembro 2007)
(11) Cf. GEAB N°17
(12) Cf. GEAB N°17 para a comparação entre a crise de 1929 e a de 2007


[*] Global Europe Anticipation Bulletin. Comunicado público Nº 17, de 15/Setembro/2007

O original encontra-se em www.leap2020.eu


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
18/Set/07