Capitalismo financeiro x capitalismo industrial

por Michael Hudson [*]

Cartoon de Arcádio Esquivel. A nossa economia está a evoluir para algo diferente do que a maioria das pessoas imagina. O sistema emergente tem parca relação com o que os livros de texto académicos descrevem, para não falar do que os políticos prometem.

Os problemas de hoje são também diferentes daqueles que marxistas e outros críticos vêm há muito denunciando. É verdade, a luta de classes foi posta em marcha novamente desde o colapso do comunismo soviético. Mas o capital industrial assim como o Trabalho são vítimas de ataque numa guerra mortífera do capital financeiro contra o capital industrial e até contra o poder dos governos de manter controlo sobre as economias nacionais.

Marx foi demasiado optimista?

Em face desta nova forma de guerra económica, as fundações do capitalismo estão a provar ser mais fracas do que Marx acreditava. Poderíamos até desejar nostalgicamente que o sistema ainda mantivesse a promessa que tinha para Marx e os seus contemporâneos vitorianos.

Desde a altura que os socialistas cunharam o termo 'capitalismo', a meio do século XIX, a palavra foi usada principalmente como uma invectiva. No entanto, para Marx significava a etapa histórica que precedia o socialismo – uma etapa que parecia prometer quase automaticamente a travessia para um mundo melhor. O papel histórico do capitalismo era preparar o mundo para o socialismo através da integração das economias nacionais de todo o mundo num mercado único, cujas corporações empresariais cresceriam tanto em escala que acabariam por constituir virtualmente um planeamento. Tudo o que faltaria ao socialismo seria tomar conta de um sistema industrial preparado e mobilizar os seus excedentes económicos para elevar as massas da Humanidade.

As teorias das etapas de desenvolvimento são inerentemente optimistas no sentido que o passo evolucionário seguinte parece estar impresso embrionariamente na molécula de DNA da sociedade (na verdade, da civilização). Marx até apoiava o comércio livre com o argumento de que este aceleraria este processo evolutivo. Inimigo da burocracia, via os governos dos seus dias dominados pelas aristocracias latifundiárias, nobrezas militarizadas ou satrápias coloniais. A sua tendência era actuar contra obstáculos reaccionários ao organismo económico que tentativa evoluir, inclinados como estavam a defender interesses especiais através de direitos adquiridos que retinham controlo político sobre os processos fiscal e legislativo.

No que concerne ao sector financeiro, as fraudes e corrupção que caracterizaram a especulação dos caminhos-de-ferro americanos e os "aguamentos" de acções, os fracassos dos grandes investimentos internacionais nos canais do Suez e do Panamá levaram à ruína os accionistas que subscreveram originalmente estes projectos. Mas isto parecia ser simplesmente parte das dores de crescimento do capitalismo industrial. No fim, esperava-se que a racionalidade vencesse. No 3º volume de O Capital (editado após a sua morte por Engels), Marx exprimiu uma fé optimista em que o capital financeiro se subordinaria ao capital industrial. Descreveu o sistema bancário como uma 'invólucro', agindo cada vez mais como o braço planeador dentro do capitalismo industrial, levando a economia mundial a aproximar-se do socialismo internacional.

Na Inglaterra, John Hobson descobriu que a raiz principal do imperialismo era a expansão do capital financeiro. A deflação da dívida levou ao sub-consumo nas economias industriais, obrigando a expansão financeira a tomar a forma de uma competição por colónias como esferas de influência, apesar de a maioria das trocas e investimento continuarem a estar centrados nos próprios países industriais principais, pois era aí que estava a maior parte do dinheiro.

Na América, imperadores da finança e os reis do imobiliário que eles entronizaram, predominavam sobre os capitães da indústria. Thorstein Veblen analisou como as relações pecuniárias – a sua estrutura financeira e monetária – distorceram o sistema económico, afastando-o do modo como deveria ser racionalmente gerido por engenheiros. Na Alemanha, cujas estruturas bancária e industrial se tornaram mais estreitamente integradas do que na Inglaterra e nos Estados Unidos, em 1910 o socialista Rudolf Hilferding cunhou a expressão "capitalismo financeiro".

Enquanto a Inglaterra se encaminhava para a entrada da Grande Guerra, Herbert Somerton Foxwell escreveu uma série de artigos para o Economic Journal em que exprimia a sua preocupação acerca da vantagem industrial que a Europa continental ganhava sobre o seu próprio país, precisamente devido a um sistema bancário mais orientado para a indústria. Os bancos ingleses tinham evoluído inicialmente a partir da banca mercantil dos ourives – concedendo crédito de curto prazo a mercadores para financiar o transporte de bens, especialmente a sua importação e exportação – e depois pelo Banco de Inglaterra, monetizando os empréstimos para o governo financiar a sua dívida de guerra (finalidade para o qual o banco fora criado em 1694). No entanto, desde o início da Revolução Industrial os bancos mercantis ingleses mantiveram-se afastados do financiamento da tecnologia manufactureira. James Watt financiou a sua máquina a vapor com fundos emprestados pela sua família e amigos, e outros industriais foram subsequentemente obrigados a fazer o mesmo. A maioria do investimento em capital industrial e outros meios de produção foi opção afastada pelos financeiros. O sistema bancário comercial limitou as suas actividades a avançar dinheiro a pronto contra ordens de exportação e a conceder outros créditos empresariais de curto-prazo, devidamente colateralizados. Isto ocorre até aos dias de hoje.

Após a I Guerra Mundial o Tratado de Versalhes atrelou à Alemanha dívidas de reparação impagavelmente grandes. Enquanto o país desnudava a sua economia na tentativa de pagar essas dívidas, os Aliados viram-se amarrados à surpreendente exigência americana do pagamento das armas que haviam fornecido aos seus aliados militares. Historicamente, tais dívidas sempre foram perdoadas aquando da cessação das hostilidades. A exigência deste pagamento pelos EUA virtualmente obrigou a Inglaterra e a França a seguirem uma linha dura de cobrança da dívida de reparação à Alemanha.

Os financeiros teóricos que insistiam que as economias eram capazes de satisfazer qualquer volume de pagamento de dívida ou de transferência de capital representam um elo intermediário entre os 'bullionistas' ricardianos do século anterior até aos monetaristas de hoje. As suas mal orientadas políticas foram contrabalançadas por John Maynard Keynes em Inglaterra e Harold Moulton nos EUA, que reconheceram haver limites para a capacidade de pagamento de dívidas. Mas os governos não responderam aos seus alertas, e o insucesso da Conferência Económica de Londres tornou a Grande Depressão inevitável.

No entanto, o capitalismo emergiu da Segunda Guerra Mundial em tão boa forma que até Estaline anunciou ao Comintern que não haveria qualquer crise económica pós-guerra. Ao contrário da Primeira Guerra Mundial, as potências derrotadas não foram afogadas em pagamentos de compensação, tendo-se reconstruído sem dívida interna ou externa. Isto proporcionou a base para os milagres económicos alemão e japonês. No caso da Alemanha, os Aliados cancelaram as dívidas na sua "Limpeza de Ficha" de Junho de 1948. O Japão viu a sua ligação pós-feudal de aristocratas latifundiários, bancários e industriais militares destruída pela reforma agrária do general MacArthur e as reformas bancárias associadas. A indústria de guerra evoluiu para um Ministério do Comércio e Indústria (MITI) orientado para o futuro.

Nas economias dos Aliados, os consumidores emergiram da guerra livres de dívidas (pois tinha havido poucos bens de consumo para comprar durante a guerra e consequentemente poucos motivos para contrair empréstimos), e com poupanças abundantes, acumuladas durante a guerra. Não houve qualquer inflação do pós-guerra, nem a espécie de deflação pós-guerra que havia estrangulado a economia britânica após a Primeira Guerra.

Os governos estavam relativamente livres de dívida, assim como os sectores empresariais e de imobiliário. As baixas taxas de juro do período de guerra haviam permitido que as dívidas amadurecessem, estendendo-se no tempo, para que os juros e as principais necessidades não elevassem os custos habitacionais ou da produção fabril.

Parecia que o futuro do capitalismo seria limitado apenas pelos horizontes tecnológicos. Ao contrário do medo generalizado dos retornos decrescentes e da exaustão dos recursos, os preços dos combustíveis e dos minerais declinaram devido às melhores técnicas extractivas do petróleo e do gás e às inovações na mineração como os grandes equipamentos de movimentação de terras e a peletização do minério de ferro. Os plásticos substituíram os recursos não-renováveis na construção, nos automóveis e em outros produtos.

De facto, uma revolução dos consumidores ocorreu com a difusão de aplicações que reduziram o trabalho, enquanto uma cultura difusa do automóvel passou a dominar a paisagem. Os custos dos telefones foram cortados, enquanto a televisão passou a transmissão a cor e por cabo. A difusão do entretenimento associada à computorização permite agora às pessoas entreterem-se até à morte, se assim o desejarem.

Os custos dos transportes foram amplamente reduzidos pelo despacho marítimo de cargas em contentores e pelo transporte aéreo mais económico, enquanto as viagens espaciais e o lançamento de satélites de comunicações ajudaram a integrar a economia mundial.

Na esfera da saúde pública, drogas maravilhosas (e DDT) ajudavam a erradicar as principais doenças, como a malária, enquanto vacinas inoculavam populações inteiras contra a poliomelite, varíola e outras mazelas. Os novos métodos de diagnóstico desde os raios-X às TACs foram acompanhados por inovações na microcirurgia, transplantes de órgãos e engenharia genética. As pessoas agora vivem mais tempo. A segurança social e a criação de planos de reforma a longo prazo providenciara segurança após a retirada de actividade, enquanto a rede de apoio social se difundira sobre a população, ajudada por leis de igualdade de oportunidades.

O que correu mal, então? Tendo a produtividade laboral aumentado e tendo sido abertos novos horizontes tecnológicos, porque é que não ficou toda a gente rica? Porque é que essas inovações não melhoraram a qualidade de vida proporcionalmente?

Um problema associado com a nova cultura de consumo foi a degradação ambiental. Apesar de reconhecida pelos economistas de meados do século XIX (em especial por teóricos da tecnologia americanos, como Erasmus Pahine Smith e Marsh, que cunharam o termo 'ecologia'), esta é apenas uma das dimensões que foi ignorada pela corrente dominante dos economistas académicos como constituindo uma "externalidade" (como o capítulo 10 discutirá em maior detalhe).

A maior parte dos problemas sérios encontra-se na esfera financeira, onde os encargos gerais da dívida da economia cresceram mais rapidamente do que a capacidade de a economia 'real' cumprir com a dívida. Poderíamos chamar às suas exigências de juros e amortização "a poluição por dívida", sufocando o ambiente económico tal como o ar e a água poluídos afectam a biosfera terrestre.

Os gastos em consumo subiram de modo marcante, mas nos anos mais recentes têm sido financiados crescentemente por dívidas, cujos pagamento de juros e amortizações absorverão rendimentos futuros. Estes rendimentos não estão mais em ascensão, mas sim em queda para a maioria dos trabalhadores. Se as mulheres e as minorias étnicas ganharam igualdade nos locais de trabalho nos últimos anos, foi principalmente porque foram forçadas a entrar para o mercado de trabalho devido a um esmagamento dos salários da maior parte das famílias.

Uma das maiores conquistas das gerações recentes foi o desaparecimento de uma guerra mundial como ameaça iminente. O colapso do Comunismo Soviético prometia um fim da corrida mundial às armas, mas os governos continuam a incorrer em défices. É como se o fim da Guerra Fria tivesse posto a guerra de classes de novo em acção. Os gastos militares não decresceram significativamente e os governos por todo o mundo descobriram uma nova fonte para alimentar défices orçamentais: corte de impostos para os ricos. Nesta nova guerra económica a táctica mais efectiva é oferecer reduções modestas nos impostos sobre os rendimentos para as classes baixas, enquanto se compensa esta diferença deslocando a tributação para os ombros dos consumidores através de impostos sobre a produção e valor acrescentado, assim como aumentando a cobrança de encargos para a manutenção da Segurança Social.

Se a economia mundial está a tornar-se mais estreitamente integrada, as forças financeiras do globalismo corporativo estão a deixar cada vez menos espaço para os governos nacionais moldarem o ambiente económico no qual opera o seu trabalho e capital. Este globalismo emana dos EUA, tomando uma forma centrípeta em vez de difundir a riqueza a partir do centro da riqueza para a periferia pobre.

Ao denominarem uma proporção crescente das suas dívidas públicas e privadas em dólares aumentaram drasticamente o encargo de dívidas para países com divisas em depreciação. Prenderam ainda economias estrangeiras à órbita da diplomacia económica estado-unidense, principalmente forçando-as à dependência do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da sua instituição-irmã, o Banco Mundial. Estas instituições impõem o mesmo monetarismo orientado para o credor que destruiu a economia mundial nos anos 20, despoletando a Grande Depressão. Em vez de ajudar as economias devedoras e pobres do mundo a desenvolverem-se, os programas do FMI e do Banco Mundial "subdesenvolvem"-nas, polarizando as suas economias entre uma riquíssima camada superficial e uma paupérrima maioria. Transformado no braço americano para a Guerra Fria sob a direcção de Robert McNamara, o Banco Mundial tornou-se um poderoso braço para uma nova luta de classes global, mais notoriamente na Rússia e na Ásia Oriental.

O resultado tem sido deixar as economias mais pobres do mundo cada vez mais afundadas em dívida e tão atadas financeiramente que se vêm obrigadas a vender a instituições financeiras internacionais os poucos activos que se mantêm no domínio público. Enquanto a riqueza e os rendimentos se polarizaram como resultado da intervenção activa do Banco Mundial e do FMI em nome das cleptocracias dominantes por toda a África, América Latina e Ásia, os ambientes físicos destes países devedores têm sido devastados pelas consequências ecológicas dos programas de exportação de matérias-primas do Banco Mundial. Desencadearam-se pandemias graças ao desmantelamento dos programas públicos de saúde, que foram despojados dos orçamentos de Estado em favor do pagamento da dívida externa crescente. Tais condições congelaram a capacidade dos governos para conter novas doenças e empreender gastos sociais que beneficiem a sociedade.

Ao invés de serem usados produtivamente, os procedimentos de privatização têm sido dissipados principalmente para financiar o corte de impostos para os mais ricos e para não cobrar impostos sobre o investimento estrangeiro, subsidiando ainda a fuga de capitais. A privatização do processo político entregou o controlo aos maiores contribuidores das campanhas e aos proprietários dos media.

O resultado é bastante diferente do que anunciava a promessa tecnológica dos primeiros anos industriais pós-guerra. O mundo confronta-se agora com a desindustrialização sem ter elevado os níveis de vida para a maioria das populações. As forças de trabalho são reduzidas sem terem atingido a prosperidade que lhes foi prometida. O que aconteceu, essencialmente, é que o capitalismo industrial foi substituído por um capitalismo financeiro rematado.

Características do capitalismo rentista de hoje

A pulsão por ganhos de capital em mercados imobiliários e em mercados de valores

Enquanto o velho capitalismo industrial procurava lucros, o novo capitalismo financeiro procura ganhos de capital principalmente na forma de preços de terras mais elevados e preços de outros activos que originem renda. Esta tendência deve-se em parte a uma tentativa de escapar à tributação de rendimentos. Desde que o imposto sobre o rendimento foi introduzido, uma fatia crescente das receitas de negócios foi reclassificada como "fluxo de caixa" não tributável. No sector imobiliário – o sector dominante na economia em termos de volume de activos – a re-depreciação e mesmo a sobre-depreciação de edifícios e os pagamentos de juros de hipotecas deixa os rendimentos tributáveis praticamente a zero! O mesmo se passa nos negócios do petróleo e do gás, da actividade mineira, florestal, dos seguros e da banca.

O arrecadador de impostos (um eufemismo para contribuintes) sofre, uma vez que os investidores por todo o espectro económico tomam empréstimos para alavancar um retorno mais elevado sobre a situação líquida. À espera simplesmente de manter um ganho de capital para si próprios, os investidores têm estado desejosos de comprometerem virtualmente todo o seu fluxo de caixa junto a bancos e outros prestamistas.

Os antigos capitalistas industriais pelo menos obtinham os seus lucros construindo fábricas, investindo em equipamento capital para empregar trabalhadores remunerados e produzindo bens e serviços. Enquanto estes velhos capitalistas encontraram o seu epítome na manufactura, o novo capitalismo rentista está centrado no sector dos FIRE (Finance, Insurance, Real Estate – Finanças, Seguradoras e Imobiliárias). O novo objectivo é reciclar as poupanças da economia no imobiliário e no mercado de valores para aumentar os preços de terras e da situação líquida, sem criar novos activos. No mercado de valores, os ganhos de capital são conseguidos com a redução da força de trabalho e cortes na produção de modo a espremer mais receita, em vez de procurar expandir para novas fatias de mercado através de novos investimentos directos.

A terra, o maior activo da economia, dificilmente pode ser aumentada, mas seu preço pode ser aumentado. De modo similar, os preços dos mercados de acções aumentam não só devido aos fundos de pensões e outras poupanças encaminhadas para o mercado mas também devido ao volume de acções, que se vem reduzindo. As acções vêm sendo retiradas pelos piratas corporativos por troca com títulos de elevados juros (lixo) e por corporações, usando os rendimentos para comprar as suas próprias acções em vez de fazerem novos investimentos directos (a IBM é o mais notório exemplo disto, frequentemente gastando 10 mil milhões de dólares por ano nas suas próprias acções em vez de fazê-lo em pesquisa e desenvolvimento ou outro investimento de construção de mercados).

Inflação de preço de activos X inflação de commodities e de salários

Enquanto os salários nos EUA são mantidos em baixo pela des-sindicalização, out-sourcing (pagando aos trabalhadores com base na produção de um produto em vez de os empregarem a tempo inteiro) e redução dos benefícios não-salariais, os salários em outros países são devorados pela depreciação crónica da moeda, decorrente dos fluxos para o exterior com pagamento de dívidas e remessas de rendimentos.

As análises monetárias keynesianas distinguiam entre inflação de lucros e inflação de salários (e, por extensão, inflação dos preços de commodities ). Mas não houve qualquer análise independente da inflação dos preços dos activos como um fenómeno distinto. Numa época em que a maioria dos bens foram colocados em acções, a inflação foi simplesmente vista como agente de erosão do poder de compra pelo pagamento de dívida, e não criando procura por títulos. Hoje, enquanto a Reserva Federal injecta dinheiro na economia ao comprar títulos do governo ao sector privado, a inflação monetária foi contida principalmente no interior do Mercado de títulos. O efeito foi aumentar o valor dos activos financeiros baixando os seus ganhos com juros em vez de requerer rendimentos mais altos para compensar a inflação dos preços.

Mobilizando poupanças de fundos de pensões para elevar preços nos mercados de acções

Marx sustentava que os lucros sob o velho capitalismo industrial derivavam da utilização do trabalho assalariado, que definia ipso facto como exploração (o capitalismo fazia os seus lucros vendendo os produtos do trabalho a um preço superior ao que o trabalho era remunerado; O trabalho assalariado era assim a origem da mais-valia). O capitalismo financeiro moderno encontrou uma nova maneira de explorar o trabalho: mobilizar fundos de pensões, a Segurança Social e outras poupanças de reforma para aumentar os valores das acções dos mercados de valores, acções e preços dos imobiliários. No entanto, uma crescente fatia de ganhos com salários é espremida para pagar juros em dívidas pessoais.

Sob o capitalismo industrial e seus antecessores, as poupanças eram acumuladas principalmente por rentistas ricos que herdavam as suas terras e imobiliário, trust funds e outros activos. Sob o capitalismo financeiro de hoje, as poupanças da força de trabalho através de fundos de pensões e Segurança Social viram crescer o seu papel dominante nos mercados de acções e de títulos. Tal põe em questão se as poupanças dos trabalhadores serão utilizadas em seu benefício como classe, se em benefício dos rentistas.

Os défices dos orçamentos públicos derivam da nova guerra financeira, não de guerras militares

As dívidas nacionais sob o velho capitalismo derivavam quase exclusivamente de guerras. Os défices de hoje derivam principalmente do corte de impostos sobre os ricos, especialmente nos sectores imobiliário, financeiro e de seguradoras.

Enquanto o velho capitalismo era militarizado, o novo capitalismo financeiro levou a dívidas nacionais tais que as economias não mais se podem dar ao luxo de suportar guerras convencionais (pelo menos não no velho estilo; o Vietname acabou com isso para sempre). Uma proporção crescente do orçamento público é agora dedicada a pagar os juros da dívida pública. Para tornar isto ainda pior, a taxa fiscal é cortada para os rentistas que recebem os juros, acrescendo ao seu vasto leque de isenções e reduções de impostos, que vão conquistando enquanto ganham cada vez maior controlo sobre o processo político através de contribuições para campanhas e aumento de propriedade sobre os media. O poder de monopólio é normalmente enterrado nos balanços, com a categoria de intangíveis (good will), e a sua força é ampliada através de agências governamentais obedientes. Ao ganhar o controlo sobre as principais escolas de negócios através de patrocínios, os rentistas moldam o processo educativo para fazer com que tudo isto pareça natural.

A teoria economia livre de valor do capitalismo rentista

Enquanto a teoria económica clássica era ensinada maioritariamente por responsáveis religiosos, muitas vezes como filosofia moral em escolas cristãs, o estudo da Economia mudou-se agora para as escolas de negócios e empresas, cujo objectivo é simplesmente ensinar ao aluno como ficar rico, não como ser feliz ou como promover o bem-estar e a prosperidade gerais.

Os economistas clássicos centravam-se na teoria da renda como um paradigmático "ganho não-merecido" quando comparado com a indústria. Mas a economia de hoje ignora a terra como um factor de produção. A ideia de renda foi basicamente apagada da área de estudos. O antigo capitalismo usava a retórica de inspiração popular enquanto confiava no governo como suporte (incluindo a polícia). O novo capitalismo financeiro usa a retórica individualista enquanto compra o controlo dos governos e depende destes para o empréstimo de devedores para os seus créditos (os cidadãos) e para garantir a segurança dos seus activos financeiros.

Como antevisto por Marx, o capitalismo industrial caracterizou-se por uma guerra de classe entre os trabalhadores e os seus patrões. Mas o capital, industrial, assim como o trabalho, é vitimizado pelo capitalismo financeiro de hoje. As corporações industriais são alvos de piratas para serem dilaceradas, enquanto a força de trabalho é reduzida e externalizada (out-sourced). E enquanto o antigo capitalismo usava uma retórica nacionalista para se expandir por todo o mundo, o novo capitalismo financeiro usa uma retórica internacionalista de "um só mundo", quando na prática cria uma polarização económica e assimetrias entre os centros financeiros e o resto do mundo.

A negação do contraste entre trabalho e investimento produtivo e improdutivo

A força de trabalho dos EUA empregada na indústria, agricultura, transportes e produção de energia – o que os economistas clássicos do séc. XIX classificavam como 'trabalho produtivo' – praticamente não aumentou desde 1929. Praticamente todo o crescimento no emprego ocorreu ao nível dos governos federal, estaduais, locais, dos FIRE (finanças, seguradoras e imobiliárias) e de serviços relacionados com estes (como a justiça).

Fazendo distinção entre trabalho produtivo e improdutivo e crédito, os economistas clássicos classificavam este último como "improdutivo" e portanto com o carácter de encargos gerais (overhead). Mas hoje isto está a ser saudado como o grande anúncio da sociedade pós-industrial. O capitalismo financeiro de hoje considera todo o trabalho, investimento e dívida como produtivos, independentemente de como são utilizados. Parece então não haver razões para classificar a proliferação de direitos sobre a riqueza como uma actividade economicamente improdutiva ou parasitária.

Comutando os impostos para a indústria e os consumidores a fim de desonerar fiscalmente os retornos dos rentistas

Sob o capitalismo industrial e seus antecessores, os impostos eram cobrados principalmente sobre a terra e a propriedade de imóveis (inicialmente os ganhos de capital eram tributados como rendimento normal nos EUA dos anos 20). Mas o capitalismo financeiro desloca os impostos dos ganhos dos rentistas do sector FIRE para os ombros do trabalho e da indústria. Os impostos são cada vez mais extorquidos aos consumidores através das vendas, impostos sobre o consumo e IVA, ao invés de tributar o rendimento e a riqueza.

Teoria económica do equilíbrio X crescimento exponencial nos encargos gerais de dívida da economia

A teoria económica primitiva lidava com taxas de crescimento exponenciais. Na altura da Guerra Colonial da Grã-Bretanha com a América, Richard Price contrastava as taxas de crescimento das poupanças a juros compostos e simples. Em 1798, Thomas Malthus aplicou esta comparação para contrastar taxas "geométricas" de crescimento populacional a um (alegadamente) "aritmético" crescimento na oferta de alimentos.

O modelo básico para crises financeiras era a tendência para o crescimento exponencial das dívidas até que atingissem o limite a partir do qual as obrigações não mais pudessem ser cumpridas. Nesta altura o crédito era destruído e o sistema económico caía com um "crash". Por contraste, a teoria moderna assume que estabilizadores automáticos trarão de volta as economias a um estado de equilíbrio se e quando estas forem perturbadas. Tais teorias assumem feedbacks negativos (tendências que contrariam a perturbação inicial), desprezando os feedbacks positivos, como o crescimento exponencial de dívidas ou retornos em crescendo.

O pensamento económico primitivo focava-se no problema da dívida, isto é, a tendência das dívidas a crescer exponencialmente, excedendo a capacidade das economias de pagar (e de produzir). A economia moderna assume que o dinheiro é apenas "um véu", não intervindo nos processos económicos. Concentrando-se na economia "real" tangível (descrita como operando sem distorções por dívidas ou encargos gerais relacionados com endividamento), a teoria económica moderna baniu o problema da dívida para o reino das "externalidades".

A cultura é outra 'externalidade' económica ignorada. Há um século, os optimistas imaginaram que ao aumentar a produtividade o capitalismo industrial proporcionaria mais tempo de lazer e consequentemente abriria novos horizontes culturais. Mas opondo-se ao papel dos governos e usando a dívida pública como alavanca para a privatização dos que eram até então serviços públicos – incluindo televisão pública e radio-difusão, conselhos nacionais de cinema, arte e outros programas culturais – o capitalismo financeiro tendeu a comercializar a cultura degradando-a até ao seu mais comum (baixo) nível, que é também o mais lucrativo denominador comum.

O pensamento económico antigo também via a riqueza e os ganhos como viciantes. Lidou com a ameaça que levava os ricos a um comportamento arrogante e abusivo. Uma série de valores religiosos e sociais foi criada para contrariar esta tendência humana para o egoísmo viciante. Mas a teoria económica moderna baseia-se numa visão de natureza humana que de modo irrealista assume uma utilidade marginal decrescente para cada unidade sucessiva de riqueza. O problema com o vício da riqueza – e consequentemente, com a pulsão para o poder pessoal – não é reconhecido, nem tão pouco os problemas de adição ao consumo.

A nova mentalidade empresarial é diferente daquela das sociedades tradicionais. A maioria das comunidades tribais procura socializar os seus, de modo a não torná-los arrogantes ou excessivamente orgulhosos. Mas a riqueza de hoje é de tal maneira egoísta que agride os outros, na ausência de qualquer mecanismo de restrição. As características pessoais requeridas para a obtenção de êxito sob o capitalismo financeiro estão associadas com a ausência de tudo que não esteja directamente com a mentalidade do "objectivo final".

A "alta" cultura (como a ópera ou orquestras sinfónicas) tende a sofrer estrangulamento financeiro. Na medida em que a nova decadência enfatiza os efeitos superficiais, é provável que o carácter dos filmes se desloque daqueles com tramas intensas sobre o carácter (e como este lida com as tentações do excesso de arrogância da riqueza e do êxito) para os efeitos sensacionais. De certo modo, podemos dizer que a cultura se torna "proletarizada".

Na década de 1830 o economista britânico William Nassau Senior iniciou as suas palestras em Cambridge anunciando "Não estou aqui para falar sobre como fazê-los felizes, mas como torná-los ricos". A maneira de ficar rico é muito simples. Tudo o que precisamos é ganância, que é algo que não pode ser ensinado. Requer a extirpação da cultura e do que muitas sociedades acreditam ser a sensibilidade social que nos torna humanos.

Bem pagos recém-licenciados são obrigados a trabalhar entre 80 e 120 horas por semana. É assim que as corporações seleccionam os seus novos empregados de confiança. O mesmo passava-se com banqueiros, contabilistas e advogados nos anos 60. O objectivo é excluir quaisquer novos recrutas que tivessem uma vida pessoal, família, hobbies, interesses intelectuais ou culturais, ou algo que pudesse assumir precedência sobre a vida corporativa. Todo o seu horizonte pessoal devia consistir em dedicar a vida a trabalhar para o seu empregador.

Nem toda a gente queria passar por este processo de exclusão. Os banqueiros costumavam brincar dizendo que os melhores correctores de divisas estrangeiras, por exemplo, tinham de vir dos bairros de lata do Brooklyn ou de Hong Kong – alguém de uma família pobre, sem cultura cavalheiresca, frequentemente de uma família imigrante cujo único horizonte pessoal era fazer tanto dinheiro quanto possível.

Neste sentido a actual cultura dos rentistas é desumanizante. Quando a liderança das corporações passou do que Thorstein Veblen chamava os 'engenheiros' para os gestores financeiros, o objectivo deixou de ser produzir mais ou expandir fatias de mercado e sim aumentar o preço das acções, outros títulos e imobiliários. Se os executivos descobriram que o seu próprio interesse é "trabalhar para os accionistas", é especialmente porque recebem mais da sua remuneração sob a forma de opções sobre acções do que em salários. Usam ganhos corporativos não para financiar novo investimento directo mas para comprar as suas próprias acções, apoiando os seus preços. Também cortam nas actividades pouco produtivas para aumentar os ganhos e consequentemente aumentar o preço por acção.

A "cultura da cobiça" resultante tornou-se anti-tecnológica ao procurar ganhos de curto-prazo. Os gestores corporativos rodaram de departamento em departamento, gerindo-os como centros de lucro autónomos, desprezando a posição de longo-prazo da empresa em geral. Vemos nestes novos gestores – os "7 barões banqueiros" da Rússia, assim como os gestores estado-unidenses – uma imaturidade adolescente, um estilo de vida infantil e egoísta. Têm tendência a ver a vida como um jogo, em que se ganha se se acumular mais brinquedos/dinheiro que os rivais.

O papel perverso da dívida, crédito e poupanças nos dias de hoje

Enquanto os impostos são utilizados crescentemente para satisfazer a dívida pública em vez de servir para realizar serviços públicos e empregar, a deflação da dívida no sector não-financeiro deprime os preços dos bens e dos serviços, assim como o nível dos salários. As poupanças consistem basicamente de juros e dividendos de investimentos financeiros e são recicladas no pagamento de dívida e mais especulação financeira em vez de em novos investimentos directos e emprego.

A evolução disfuncional da banca comercial de hoje

Sob o capitalismo industrial que se desenvolveu em França e na Alemanha, os bancos desempenharam um papel proeminente ao fornecer financiamento a longo-prazo para a indústria, simultaneamente como credor directo e como accionista. Mas os bancos de hoje desempenham apenas um pequeno papel industrial, mesmo como intermediários, e o mercado de acções não é a fonte principal de fundos para novo investimento directo. Os bancos limitam-se a oferecer crédito colateralizado contra recibos de bens já despachados para clientes — aceites de banqueiros e conjuntos de pendentes. Até nesta área, as grandes empresas estão agora a ultrapassar os bancos através da emissão do seu próprio papel comercial.

O papel do bens imobiliários mudou fortemente devido aos modos de financiar os créditos de hipotecas a longo-prazo que apareceram nos anos 30. As Caixas Económicas (Savings and Loans, S&Ls) e bancos de poupanças mútuas transfiguraram-se de algo destinado aos pequenos compradores de casas para os grandes construtores imobiliários. Foram engolidos pelo gigantesco complexo FIRE e tornados parte do processo da globalização.

Marx previu que o capitalismo se iria industrializar menos no mundo desenvolvido, mas não previu que o capitalismo industrial se tornaria subordinado do capitalismo financeiro. Os velhos capitães da indústria foram substituídos pelos imperadores da finança e reis do imobiliário, o sector FIRE.

Bohm-Bawerk e outros imaginaram que modos tecnológicos de produção rotativos ganhariam proeminência, imaginando que o juro seria um pagamento para a espera ou "preferência de tempo". Mas o sistema financeiro de hoje está a estraçalhar a Investigação e Desenvolvimento e tecnologias que demorem tempo a desenvolver, de modo a receber retornos imediatos, ao invés de andar de mãos dadas com a tecnologia.

Enquanto o capitalismo industrial era nacionalista e patrocinado pelo estado, o capitalismo financeiro global de hoje está a desmantelar os governos. Afirma ser pacífico, uma vez que apenas os governos e nações-estado podem praticar a guerra.

Mudança do carácter da balança de pagamentos e das taxas de câmbio

Os pagamentos internacionais e valores monetários na prática e na teoria do século XIX eram dominados pelas importações e exportações. Apesar de o investimento e os "invisíveis" serem já reconhecidos por James Steuart e por matemáticos 'mercantilistas', desempenhavam um papel secundário e não foram quantificados numa base estatística sistemática até ao final da Primeira Guerra Mundial. Os pagamentos internacionais e valores monetários de hoje são atolados por movimentos de capital, especialmente acções de curto-prazo e fundos de títulos. Para os autores antigos de textos de economia isto seria como se "o cão andasse a perseguir a cauda" [expressão anglófona que significa ter uma pequeníssima parte a controlar o todo. NT].

Definição de uma economia de bolha

Uma bolha é essencialmente entendida pelo público como um situação em que os rácios de preços/vencimentos aumentam sem uma perspectiva de aumento dos vencimentos que restabeleça o rácio. O mercado de valores e os valores imobiliários sobem não devido a cálculos lógicos e ponderados de que estes activos gerem novas receitas que os façam valer mais, mas simplesmente devido a um excesso de poupanças sobre as oportunidades de investimento directo que o absorvam. A inflação dos preços de activos parece possuir uma inércia própria, criando uma expectativa de que os activos possam sempre ser vendidos a outrem por um preço superior.

A transição para uma economia totalmente de bolha ocorre no ponto em que os encargos da propriedade imobiliária que são arrendados – ou juros e custos associados à posse de activos – excedem os ganhos e o fluxo de dinheiro que é gerado. Senhorios endividados optam frequentemente por abandonar a sua propriedade neste ponto, e os empresários optam por abandonar as suas dívidas.

Quanto tempo pode uma bolha durar? Se há um limite para o processo, qual é ele?

O grau até ao qual a dívida pode subir como proporção dos ganhos pessoais, empresariais e governamentais depende da taxa de juro cobrada, a maturidade da dívida ( i.e., quanto tem de ser pago ou esquecido ao longo de cada ano), e o grau em que os impostos e outros custos absorvem as receitas. Uma vez que o ponto de inflexão é ultrapassado – quando os juros e outras despesas essenciais excedam os ganhos – a economia começa a contrair. Uma quebra na corrente de pagamentos ocorre a seguir.

Exactamente quando e onde isto ocorre raramente pode ser previsto. Geralmente há fraude financeira envolvida, como quando um corrector monetário em Singapura arrasou a Baring Brothers. Tais comportamentos tendem a proliferar em situações de bolha. O mercado de valores começa a parecer um esquema de Ponzi, requerendo um fluxo crescente de rendimentos todos os meses para premiar os investidores anteriores.

Uma definição alternativa para a Economia de Bolha foca-se então na inflação do preço dos activos – ascensão dos mercados de acções, mercados de títulos e de preços imobiliários em face de uma deflação generalizada de dívida por toda a economia. Os encargos crescentes de dívidas excedem o crescimento dos salários, das rendas imobiliárias, dos lucros corporativos e das receitas fiscais do governo. Uma deflação de dívida ocorre quando os encargos com juros absorvem todos os rendimentos gerais. Após subtrair os impostos e pagar custos de rendas, serviço de dívida e outros gastos básicos, o salário mediano e os níveis de consumo caem – e o serviço da dívida já não consegue novos empréstimos e especular.

A polarização económica entre credores e devedores é agravada pelos cortes fiscais para os ricos e uma reclassificação dos ganhos financeiros e de valores imobiliários como ganhos de capital ou formas variadas de fundos de "reserva" não-tributáveis.

Como a saúde da bolha requer uma economia moribunda

A saúde da bolha (se é que nos podemos referir a um cancro financeiro como sendo saudável) deriva da perda de força da economia em geral, empregando as suas poupanças de um modo doentio. Qualquer tentativa de restauração de saúde séria na economia "real" ameaça destruir a bolha da Wall Street, pois para estas não só as poupanças devem aumentar como devem ser desviadas do investimento em capital tangível para continuar a inflacionar os preços das acções, títulos e imobiliário. O que é saudável para a Wall Street é então um anátema para a economia em geral. É por isso que os investidores de Wall Street se retraem instintivamente quando o emprego e o investimento sobem.

A essência da bolha financeira global é que as poupanças são desviadas para inflacionar o mercado de valores, o mercado de acções e os preços imobiliários em vez de serem utilizadas para construir novas fábricas e empregar mais trabalho. O sistema ameaça entrar em colapso de tal maneira que deixará um legado de custos de limpeza financeira das dívidas por pagar que tem um equivalente nas "más poupanças", isto é, poupanças emprestadas a especuladores que usam o dinheiro simplesmente para comprar propriedades existentes em vez de utilizá-lo para criar novos activos.

Este reconhecimento pelos estrategas financeiros da Wall Street fundamenta a pressão para privatizar a Segurança Social. O sistema da Segurança Social não está doente, mas não é esse o ponto-chave. O objectivo real não é aliviar o sistema, mas sim aliviar o mercado de acções. Se as vastas somas investidas em títulos do governo pudessem começar a ser comutadas para o mercado de acções, o efeito seria elevar os preços das acções. Claro que, quando for altura de o sistema começar a pagar – quando o número de reformados exceder o número de novos empregados que contribuem para o sistema – o resultado será um fluxo de saída do mercado de acções.

Mas isso, como diria Rudyard Kipling, é outra história. A maior parte dos gestores de fundos de hoje estará regaladamente reformada, a viver dos seus bónus acumulados. A população geral será aconselhada a manter as suas acções a longo-prazo. Ser-lhes-á recordado que as acções têm ultrapassado os títulos ao longo dos últimos dois séculos.

Os jogadores financeiros operam a curto-prazo. Ao primeiro sinal de uma queda, saem, procurando surfar as ondas para cima e para baixo. Nunca os seus conselhos aos seus clientes foram tão diversos da sua própria actuação.

Além do ciclo dos negócios rumo a uma mudança de fase

Enquanto o capitalismo industrial era caracterizado por ciclos de negócios, o novo capitalismo financeiro não é primariamente cíclico no seu carácter. Representa uma mudança estrutural pois, como Hegel apontou, um aumento na quantidade torna-se, a partir de certo ponto, uma mudança na qualidade.

O capitalismo industrial era alimentado a tecnologia. A produção mecanizada cortou os custos do trabalho, tendendo a tornar o trabalho especializado e altamente instruído mais importante (por outras palavras, a ênfase dada por Veblen aos planeadores e engenheiros económicos da sociedade). Mas o capitalismo financeiro de hoje parece afastar-se do avanço tecnológico, da Pesquisa e Desenvolvimento e de mais produção. Desvaloriza a educação, prezando algo que não pode ser ensinado nas escolas: ganância, cujas sociedades anteriores associava com falta de visão.

O sistema financeiro global ( i.e., baseado nos EUA e estendido por todo o lado) é algo novo, mas no entanto é também uma regressão para o problema "pré-capitalista" da usura, das dívidas reclamadas superarem a capacidade das economias de produzir e de ganhar. A dívida com juros a capitalizar de modo composto tem andado por aí desde a milenar Suméria. Depois de polarizar as sociedades e de ser um grande catalisador da concentração da propriedade fundiária (ver Isaías e historiadores romanos), acabou por estrangular as sociedades da Antiguidade.

O problema das formações rentistas pré-capitalistas sobreviveu, no entanto, na molécula do DNA capitalista. Este DNA pode ter no entanto trazido consigo uma falha fatal para o capitalismo moderno, uma doença que se disseminou como um cancro. O pico de dívida que se ergue para esmagar os arranques económicos assinala a dominância das finanças sobre a indústria, da "riqueza virtual" (dívida não cobrada assumida como riqueza) sobre aquilo que os economistas ainda chamam de riqueza "real", como se as finanças fossem menos reais que as estruturas físicas tangíveis.

O que é novo hoje é então que na História anterior apenas no final da Antiguidade – em Roma – é que houve dinâmicas da dívida (a que Einstein chamava o milagre da natureza) não controladas. Na terra-mãe mesopotâmica da dívida com juros, as dívidas não-comerciais foram anuladas por decreto real quando começaram a tornar-se demasiado grandes. Nos tempos modernos, a bancarrota limpou dívidas à escala individual e empresarial, e até governamental. Mas o fenómeno da dívida agora libertou-se de quaisquer impedimentos, tornando-se autónomo, não subordinado aos processos económicos "reais", i.e., a acumulação tangível de riqueza e a capacidade de pagar.

Chamar ao capitalismo financeiro de hoje "moderno" implicaria que fosse progressivo. Mas é retrocessivo na medida em que representa um retorno aos problemas pré-capitalistas da usura (mas não a escravatura directa). O que é moderno é que enquanto o fardo da dívida era denunciado na antiguidade clássica, hoje o seu florescimento é bem-vindo na sua imagem reflectida – "poupanças" no lado dos activos dos balanços da economia – como que a apregoar uma próspera sociedade pós-industrial.

Supõe-se que as poupanças (que encontram o seu reflexo nas dívidas dos outros) são inerentemente associadas à capacidade de atingir novos horizontes tecnológicos, médicos e culturais. Mas na medida que dívidas/poupanças andam agora de mãos dadas com a polarização económica, estes horizontes estão a ser limitados em vez de expandidos.

A questão é: O que fazer? Como deveria a genética do nosso sistema ser redesenhada de modo a torná-la imune ao cancro da dívida?

O capitalismo industrial tornou-se notório por criar prejudiciais efeitos ambientais "externos" como a poluição, acidentes industriais e sofrimento social. O capitalismo financeiro ameaça exacerbar em vez de curar estas "externalidades". A privatização do processo político provavelmente deterá a implementação de barreiras comportamentais tais como obrigar as indústrias a serem responsáveis pela limpeza do que poluem, pela poluição que produzem ou pelos custos médicos associados a doenças relacionados com o fumo.

O capitalismo financeiro de hoje também decepcionou as esperanças de maiores progressos na tecnologia médica. A privatização dos sistemas de saúde muda o objectivo decisivo: desloca-se de curar doenças para fazer lucro. Como a banca e a finança, a tecnologia médica de maior custo poderá deslocar-se para centros bancários onde a tributação esteja ausente e onde a nova e cara tecnologia médica não precise ser disseminada por um grande número de pacientes.

Tendo-se tornado autónomo, o cancro da dívida tomou controlo sobre as políticas nacionais e globais. De facto, vemos hoje a dolarização da dívida em certos países, forçando uma depreciação monetária crónica pelo pagamento da mesma. No final dos anos 70, os municípios canadenses conseguiram poupar alguns décimos de um ponto percentual de juro ao contrair dívida em marcos alemães e francos suíços. Quando o dólar canadense caiu, o pagamento de dívidas nestas divisas subiu. De modo similar na Ásia de hoje, quando a fuga do capital minou as unidades monetárias tailandesas, indonésias, coreanas e de países vizinhos, fê-las cair e levou à bancarrota muitas empresas endividadas.

O processo de privatização exacerba este fenómeno por todo o mundo. As receitas da electricidade e outros monopólios que eram até hoje públicos estão em divisa local, mas as suas dívidas são renomeadas em dólares. Este problema de transferências cria pressão sobre as divisas – e quanto mais a divisa cai, mais dolarizado se torna o fardo da dívida.

Há que imaginar os problemas que resultariam da criação de um mercado de hipotecas russo para privatizar os bens imobiliários. Os retornos seriam em rublos mas os pagamentos de juros para o estrangeiro seriam feitos em dólares. Enquanto o rublo caía, o custo de pagamento da dívida subia.

Fenómenos tais ameaçam impor uma deflação permanente da dívida, invertendo a tendência mundial persistente que existia até há muito pouco tempo. Uma pista do que está a caminho pode ser vista nas deflações após a Guerra Civil americana, da década de 1870 e as deflações dos anos 20 na Inglaterra pós Primeira Guerra Mundial. Enquanto o capitalismo industrial beneficiou de muitas maneiras da monetização das dívidas de guerra da Europa e da América do Norte, podemos pensar na distopia financeira que vem a caminho como uma deflação de dívida de pós-guerra.

A reciclagem das poupanças no financiamento de bolhas imobiliárias e de mercados de valores é algo que nunca aconteceu deste modo antes. Em tempos passados, as pessoas contraíam empréstimos imobiliários apenas por necessidade (hipotecar a casa). As Caixas Económicas ( Savings & Loans) e Jusen japoneses são fenómenos relativamente recentes, do pós Grande Depressão. Os bancos de poupanças foram inventados no século XIX para emprestar dinheiro aos trabalhadores de bairro, não a grandes construtores imobiliários da Florida, Califórnia ou Texas. O "mutualismo" dos bancos de poupanças está agora a ser destruído.

Estas mudanças estruturais no sistema económico não são periódicas, excepto na medida que as economias também eram estranguladas pelo sobre-crescimento de dívida na Antiguidade. A sociedade cai numa depressão crónica. Novas estruturas poderão emergir enquanto a energia económica se vai perdendo, permitindo que novas formas se desenvolvam (embora de modo diverso daquele em que os seus antecessores se desmoronaram).

[*] Contribuição para The Other Canon Conference on Production Capitalism vs. Financial Capitalism,
Oslo, 3-4/Setembro/1998.   mh@michael-hudson.com


O original encontra-se em http://www.michael-hudson.com/ . Tradução de João Camargo

Este ensaio encontra-se em http://resistir.info/ .
08/Jun/09