A pensar o impensável:
Um cancelamento da dívida e um ano jubileu com uma
reabilitação
por Michael Hudson
Atingimos o ponto em que podemos finalmente ser capazes de romper a membrana de
dissonância cognitiva que tem estado a cegar o povo. Um curso simples de
ciências económicas principiando no secundário,
continuado numa faculdade e a seguir refinado numa
pós-graduação deveria explicar aos estudantes
porque é errado acreditar na publicidade que a Wall Street apregoou
durante o último meio século: A promessa enganadora de que uma
economia pode enriquecer seguindo a matemática da "mágica do
juro composto".
A irrealidade desta promessa deveria ser imediatamente evidente ao examinar a
matemática do crescimento exponencial
. Já no tempo da Revolução Americana, economistas
financeiros popularizavam o contraste que Malthus a seguir imitaria na sua
teoria da população: Dívidas crescem a taxas
"geométricas", ao passo que a própria economia cresce
apenas "aritmeticamente", de um modo mais lento e mais linear.
Tudo o que é necessário é colocar esta ideia junto
à definição básica do balanço: As
poupanças de uma pessoa são emprestadas e tornam-se
dívidas de outras pessoas. Assim, a "mágica do juro
composto" para os poupadores significa igualmente uma "mágica
do endividamento explosivo" em outros lugares na economia. E na medida em
que os credores insistem em proteger-se do inevitável incumprimento pela
tomada de posse do colateral, é natural que a maior parte das
dívidas da economia seja devida aos seus maiores activos: terra e
edifícios. Isto explica porque dívidas hipotecárias
têm de ser reembolsáveis e "libertas de toxicidade".
A "mágica do juro composto" refere-se à tendência
das poupanças para duplicar e reduplicar exponencialmente, com uma
ascensão correspondente no que os devedores devem do outro lado do
balanço. Esta matemática tem estado a operar ao longo da
história, desde quando o encargo do juro foi inventado na Suméria
em algum momento por volta do ano 2750 AC. Em toda sociedade conhecida, o
efeito foi concentrar riqueza nas mãos das pessoas com dinheiro. Nos
últimos anos, nem mesmo é necessária a posse de moeda para
fazer isso. O poder para endividar outros a si próprio pode ser
alcançado através da livre criação de
crédito. Contudo, o resultante crescimento exponencial explosivo no
endividamento deve entrar em colapso no ponto em que o seu juro e outros
encargos inerentes (agora aumentados por comissões exorbitantes, multas
sobre cheques sem fundos, custos com cartões de crédito e outras
penalidades) absorvem todo o excedente económico.
A DÍVIDA NÃO PODE SER PAGA
Este é o ponto que foi atingido e ultrapassado no dias de
hoje. Ele desenvolveu-se ao longo de muitas décadas. Mas há uma
grande relutância em aceitar o facto de que a dívida não
pode ser paga. "Os pobres são honestos", como me explicou um
banqueiro, e acreditam que "uma dívida é uma
dívida" e deve ser paga. (Não é isto em que
acreditam Donald Trump, Bear Stearns ou a AIG, mas eles estão no topo da
pirâmide económica, não na sua base).
Ao longo de anos numerosos editores rejeitaram livros que lhes propus sobre o
assunto. Eles explicavam-me: "Ninguém quer ler como a bolha
irá arrebentar pelo menos enquanto ela não se romper.
Você não poderia escrever um livro sobre como ganhar um
milhão de dólares com o colapso económico que está
para vir? Isso seria um best-seller, Prof. Hudson. Mas dizer às
pessoas que elas não podem pôr poupanças de lado e pagar pela sua
aposentadoria é como dizer-lhes que terão mau sexo depois dos 50
anos de idade. Isso não vende. Volte quando tiver boas
notícias".
Estas são palavras que ouço desde meados da década de
1980. Passei muito tempo a olhar através da história a fim de
verificar como o fracasso em eliminar a sobrecarga da dívida levou ao
colapso da república imperial de Roma, e ao do Império Otomano
que no fim do século XIX era conhecido como "o saqueador do
Egipto" e "a ruína da Pérsia". Também
publiquei uma série de quatro colóquios de assiriologistas e
arqueólogos que descreviam como anteriormente, desde cerca de 2500
até talvez 3000 aC, os babilónios e outros governantes do Oriente
Próximo souberam manter livres os seus cidadãos livres e
preservar a sua propriedade da terra por meio da anulação de
dívidas pessoais e agrárias ao assumirem o trono um
verdadeiro "feriado fiscal" ou quando as
condições económicas ou militares garantiam uma
Reabilitação
(Clean Slate)
geral. (A série foi financiada e publicada pelo Peabody Museum de
Harvard e agora está disponível junto à
CDL Press
).
Estas reabilitações foram adoptadas literalmente, quase palavra
por palavra, no Ano do Jubileu Bíblico, Leviticus 25. Até a
mesma palavra hebraica,
deror,
foi utilizada para
andurarum
babilónico proclamado pelos governantes da dinastia Hamurabi de 2000 a
1600 aC. Assim, para mim é notável que homens de hoje que se
afirmam líderes cristãos ignorem o facto de que no próprio
primeiro sermão dado por Jesus, na Nazaré (Lucas 4:14-30), ele
desenrolou o pergaminho de Isaías 61 e prometeu que tinha vindo
"para proclamar o Ano do Senhor", o Ano Jubileu. Esta era a
"boa notícia" literal que pregava a Bíblia, como os
pergaminhos do Mar Morte ilustraram abundantemente.
Mas é um sinal do poder da ideologia do credor que mesmo a
essência deste documento fundador da civilização ocidental
tenha sido ignorado por uma visão distorcida daquela cristandade
primitiva. O judaísmo e outras religiões foram entusiastas, o
que não é surpreendente. A passagem de Lucas sobre este
sermão fundador de Jesus conclui destacando que "todas as pessoas
na sinagoga ficaram furiosas quando ouviram isto. Elas levantaram-se,
acompanharam-no para fora da cidade e levaram-no para a beira da colina sobre a
qual a cidade fora construída, a fim de lançá-lo abaixo no
despenhadeiro".
Lançarem-no no despenhadeiro! Foi a isto que os revoltantes senadores
romanos da extrema direita conduziram os seguidores dos irmãos Graco na
colina do Senado, num exercício de violência política que
impediu Roma de conceder alívio para a dívida no fim do segundo
século AC. Tito Lívio, Diodorus, Plutarco e outros historiadores
da época atribuíram a previsível queda do Império
Romano às suas duras leis do endividamento orientadas a favor dos
credores. Mas hoje, há historiadores a publicar livros especulando que
talvez o problema estivesse nas canalizações de chumbo ou nas
taças de chumbo do seu vinho, ou doença, ou super-extensão
imperial, ou superstição tudo excepto a causa para a qual
os próprios historiadores romanos apontavam.
Ainda estamos a viver com as consequências da revolução
oligárquica de Roma. Que é o que torna tão importante as
audiências desta semana no Congresso sobre a dádiva de US$700 mil
milhões. Primeiro através da força militar e a seguir
através da sujeição à dívida e a
servidão, Roma deixou como herança para a Europa um corpo de leis
baseado na propriedade e orientado para o credor. Mas desde o século
XIII, país após país alterou o equilíbrio outra vez
em favor dos devedores para salvá-los da
escravização pela dívida, das prisões para
devedores, do endividamento permanente, para lhes dar uma
reabilitação ao nível individual.
LUTERO, MARX E A USURA
Handel organizou a primeira execução de
O Messias
como um acto beneficente a fim de conseguir dinheiro para salvar devedores de
prisões irlandesas, e todos os anos aquele oratório era repetido
com essa finalidade caritativa. Martinho Lutero advertiu acerca da
matemática do juro composto como o
monstro Caco
,
a devorar tudo. Mas as denúncias de Lutero quanto à usura
são excluídas das suas obras publicadas em inglês, e
estão disponíveis nesta língua apenas no Volume III de
O Capital
de Marx e no Livro III das suas
Teorias da Mais Valia.
A discussão do juro e da banca tornou-se tão marginalizada que
mesmo quando eu ensinava a cadeira "Moeda e bancos" na New School de
Nova York, em fins da década de 60 e princípios da de 70, isto
não fazia parte do núcleo do currículo e era tratado como
um tópico especial. (Felizmente, este não é o caso no
lugar em que estou agora na Universidade de Missouri, em Kansas City. Mas
levou muito tempo para chegar aqui).
Por trás desta alteração na escolha legislativa estava a
percepção de que nenhuma economia se pode manter com o fardo de
dívidas a crescerem a taxas exponenciais mais rapidamente do que cresce
a própria economia. Nenhuma economia pode crescer a taxas exponenciais
fixas, só as dívidas é que se podem multiplicar desta
forma. Eis porque a dádiva de US$700 mil milhões do sr. Paulson
aos seus colegas da Wall Street não pode funcionar.
O que isto pode conseguir é proporcionar uma transferência
ocasional de riqueza para iniciados que já estão a jogar o
sistema débito-crédito e a sugar rendimentos financeiros para si
próprios. Todos os banqueiros da Wall Street, correctores e
administradores de fundos com quem tenho falado durante muitas décadas
sabem disto. Eis porque eles se pagam a si próprios bónus anuais
tão grandes e grandes salários a cada ano. A ideia é
sacar tanto quanto puderem. Tal como no velho ditado: "Você
só tem de fazer uma fortuna uma vez na vida". Eles têm
estado a guardar as suas fortunas em outros lugares, ano após ano,
principalmente em activos tangíveis: imobiliário (livre de
hipotecas), mobiliário fino, barcos e troféus artísticos.
O plano deles agora é aperfeiçoar o que já era bom
tomar os US$700 mil milhões de Paulson e fugir. Não se trata de
uma "salvação do sistema financeiro". Trata-se de uma
dádiva para iniciados, para liquidarem todas as suas apostas
más. Companhias de todas as categorias livrar-se-ão das suas
hipotecas más, e também dos seus maus empréstimos de
carros, pagamentos de mobiliário, empréstimos com cartões
de crédito, empréstimos a estudantes todas dívidas
que qualquer actuário competente poderia ter dito desde o início
que nunca poderiam ter sido pagas.
A NOVA CLEPTOCRACIA
Não é isto o que o secretário do Tesouro Paulson
reconhece, o que é uma vergonha para ele. Na última sexta-feira
de Setembro ele foi acompanhado pelo presidente do Fed, Bern Bernanke, a
cantarem em uníssono um estribilho publicitário para a nova
cleptocracia da América que soa tão falso que o Congresso e o
público americano devem ouvir as desafinações. O
Financial Times
de Londres, bem como um grande número de europeus percebe isto. Isto
é que tem estado a conduzir a taxa de câmbio do dólar esta
semana. Parece mais fácil para os estrangeiros reconhecer a
ameaça da transformação da democracia americana numa
cleptocracia opressora.
Esta mudança é sempre repentina, organizada sob
condições de emergência. Aqueles com memória de 12
anos atrás verão George Bush a desempenhar o papel de Boris
Yeltsin na Rússia, em 1996, a pagar aos contribuidores da sua campanha
dando-lhes todo o excedente económico que o governo poderia expropriar
no infame plano "empréstimos por acções"
aplaudido e apoiado pelo secretário do Tesouro de Clinton (e actual
conselheiro de Obama) Robert Rubin. (Moral: precisaremos ter um Putin no
nosso futuro próximo para bloquear o golpe anti-democrático?)
Quão irónico é isto tudo! Remontando à
década de 1970, havia a teorização de que as economias
russa e americana estavam a convergir. A ideia era que ambas moviam-se rumo a
mais centralizados controles de Estado, financiamento de Estado,
subsídio de Estado e um complexo industrial-militar. Ninguém
esperava que a convergência se verificasse ao estilo Yeltsin com
dádivas do governo a iniciados a fim de criar um novo grupo de
multimilionários financeiros os "sete banqueiros" sob
Yeltsin em 1996, e a gang de hoje do Compadrio Capitalista do sr. Paulson.
Vamos examinar os eufemismos como um exercício de duplo pensamento
orwelliano. O sr. Paulson defendeu o seu "programa de alívio para
activos perturbados"
("troubled asset relief program", TARP)
afirmando que "activos hipotecários ilíquidos ... perderam
valor ... sufocando o fluxo de crédito que é tão
vitalmente importante para a nossa economia". O crédito que
é "tão vitalmente importante" assumiu a forma de maus
empréstimos. Contra a pretensão do sr. Paulson, o problema
não está em que eles são "ilíquidos". Se
este fosse o problema, ele seria meramente temporário. Os bancos do
Federal Reserve são destinados a proporcionar liquidez com bons
colaterais, naturalmente.
CREDORES DEVEM ASSUMIR AS PERDAS
Como observou o colunista Martin Wolf, do
Financial Times,
na quarta-feira 24 de Setembro, o problema é que o valor facial dos
empréstimos hipotecários e uma série de outros maus
empréstimos excede de longe os actuais preços de mercado ou os
preços que provavelmente serão concretizados este ano, no
próximo ano ou no ano seguinte a este. Eles estão empacotados no
que a imprensa financeira denomina correctamente como "produto
tóxico". O salvamento não é eficiente, escreve ele,
"porque só se pode tratar da insolvência pela compra de maus
activos a muito acima do seu verdadeiro valor, garantindo portanto grandes
perdas para os contribuintes e proporcionando um salvamento ilimitado para a
maior parte dos investidores irresponsáveis"
[1]
. "O caminho mais simples para recapitalizar instituições
conclui ele é forçá-las a aumentar o
património líquido e suspender os dividendos. Se isto não
funcionasse, poderiam ser forçadas a conversões de dívida
em acções. A atractividade de permutas
dívida-acções é que elas criariam perdas para os
credores, as quais são essenciais para a saúde a longo prazo de
qualquer sistema financeiro". Esta é a chave: se as
dívidas não podem ser pagas, então os credores devem
assumir as perdas.
Estes maus empréstimos são tóxicos porque só podem
ser vendidos com uma perda nem que seja porque os investidores
estrangeiros já não confiam na honestidade dos banqueiros de
investimento ou nos administradores de dinheiro dos EUA. Aqui está o
problema que o Congresso não está desejoso de constatar e
enfrentar. Muitos destes empréstimos são absolutamente
fraudulentos. E eles estão a ser vendidos por vigaristas. Vigaristas
que trabalham para bancos. Vigaristas que utilizam a fraude
contabilística tal como a fraude que levou ao despedimento de
Maurice Greenber da AIG e dos seus émulos na Fannie Mae, Freddie Mac e
outras companhias que entraram em contabilidade tipo Enron.
Não é isto o que a mágica do juro composto prometera. Mas
é onde ela tem de acabar, com inevitabilidade matemática. Esta
mágica foi uma publicidade chamariz de administradores de dinheiro da
Wall Street e promotores do "capitalismo fundo de pensões" (ou
"capitalismo popular" como era chamado no Chile pelos Chicago Boys a
trabalharem para o regime assassino do general Pinochet, e pelos conservadores
da Margaret Thatcher na Inglaterra). A promessa é que se as pessoas
confiarem estes fundos a indivíduos que fazem muito, muito mais do que
prometem, mas têm a vantagem da selecção natural de serem
muito, muito cobiçosos, elas receberão uma perpétua
duplicação de juros. É supostamente desta forma que as
pensões dos trabalhadores americanos ainda serão pagas
pela mágica, não pelo investimento directo. Os aposentados em
perspectiva são supostos assegurarem uma boa vida pelo investimento das
suas poupanças em empréstimos a assaltantes corporativos que
demitiram, despediram, reduziram e externalizaram estes mesmos trabalhadores.
O truque é convencer os empregados a entregarem os fundos de
pensão a administradores financeiros cuja ideia era fazer dinheiro da
economia pela extracção de juros e dividendos dos trabalhadores,
proprietários de casas e companhias que estavam a ser compradas com a
alavancagem da dívida. Em última análise é a
alavancagem da dívida por si própria que é suposta
alimentar ganhos de capital.
Isto levou à loucura. A solução mais louca de todas para
o governo seria dar ao sector extractivo financeiro ainda
mais
dinheiro fundos que nenhum prestamista privados está desejoso de
proporcionar, nem mesmo fundos abutre. Nenhuma firma privada foi capaz de
descobrir o que o sr. Paulson e o desventurado sr. Bernanke estão
hipocritamente a prometer: que um acordo viável, mesmo uma quase
criação de dinheiro, pode ser feito comprando lixo agora e
esperando que "a economia" fique boa.
Simplesmente, o que é "a economia" que se supõe
efectuar esta façanha notável senão seus devedores
hipotecários e corporativos? O governo deve fazer tal como os
funcionários responsáveis pela imposição da lei
agiram para impedir o que o Countrywide Financial e outros prestamistas
predatórios faziam: empurrar Hipotecas com Taxa Ajustável
explosiva e hipotecas com "situação líquida
negativa" para devedores, em termos que muitas vezes começavam por
um isco e terminavam num anzol. As companhias privadas podiam ser desafiadas e
o seu conjunto de comissões penalizadoras rejeitado por um tribunal.
Mas talvez o Congresso possa arquitectar uma lei que imponha estes termos duros
aos eleitores. Seria como se vivêssemos num sistema em que o povo
votasse de acordo com o seu próprio interesse.
Promessas de que os "contribuintes" serão capazes de recuperar
grande parte deste dinheiro são uma ficção. Se houvesse
uma esperança de recuperar este dinheiro, então os investidores
lá de fora fundos estrangeiros de compras, bancos estrangeiros,
fundos de riqueza soberana do estrangeiro teriam estado desejosos de
comprar o Bear Stearns, o Lehman Brothers, a AIG e outras companhias a algum
preço. Mas eles não quiseram tocar nisto a preço nenhum.
Por que deveria então o Tesouro dos EUA pagar até três
vezes o dinheiro para a Guerra do Iraque, que acabará por ser perdido,
depois de pagar os jogadores pelas suas próprias más apostas?
Estes banqueiros já colocaram todo o risco do lado dos seus clientes e,
fizeram lobby para reescrever as leis da bancarrota, em favor dos devedores.
Tal como o assunto agora se apresenta, os US$700 mil milhões
serão utilizados a fim de financiar os bónus deste ano,
salários e comissões de vendas de milhões de
dólares deste ano, e para contribuir ainda mais para os fundos de
aposentadoria com paraquedas dourados que administradores financeiros sifonaram
a fim de proporcionar segurança líquida para si próprios.
Assim, estamos de volta ao lema básico destes dias: "Você
só tem de fazer uma fortuna uma vez na vida". Para eles, agora
é o momento de tornar estas fortunas tão grandes quanto puderem.
Porque a partir daqui é tudo colina abaixo.
Porque os bancos não concederão empréstimos
Aqui está porque a lógica governamental da dádiva é
falaciosa: Trata-se de uma dádiva, não de um salvamento
(bailout).
Um salvamento é concebido para manter o barco a flutuar. Mas o barco
Wall Street existente, carpinteirado pelos banqueiros de investimento que
procuravam descarregar o seu lixo, deve afundar. A questão no momento
em que afunda é simplesmente de saber quem será capaz de agarrar
os botes de salvação e quem se afogará.
Há uma razão para os bancos não concederem
empréstimos: a habitação e o imobiliário comercial
já estão tão pesadamente hipotecados que não
há valor de renda
(rental value)
disponível (sobre e acima de despesas operacionais, impostos correntes
e serviço da dívida) para penhorar aos bancos. Ainda custa mais
comprar uma casa do que arrendá-la. Nenhum aumento do montante de
crédito, excepto hiper-inflação, pode curar isto. Nenhuma
redução da taxa de juro levará bancos a arriscarem-se a
fazer um novo mau empréstimo isto é, um empréstimo
que provavelmente apodrecerá e acabará com o banco a assumir uma
perda depois de o mutuário abandonar o imóvel ou incumprir.
Saberá o Congresso o que é que lhe estão a dizer para
fazer? Suponha-se que "contribuintes" estejam a espremer dinheiro
para fora das "tóxicas" hipotecas lixo que compraram de
investidores que compraram estes maus empréstimos. O único meio
de fazer isso seria os preços do imobiliário serem elevado para
níveis ainda mais elevados. Isto significa uma proporção
ainda mais elevada de salários líquidos dos compradores de casa
em perspectiva.
O sr. Paulson percebe isto. Foi por isso que ele orientou a Fannie Mae e o
Freddie Mac a inflacionarem mais os preços de todo o imobiliário.
Pelo menos para os actuais possuidores de hipotecas serem pagos pelos actuais
devedores a venderem para o proverbial "louco maior". A
esperança no plano de Paulson é que haja suficientes "loucos
maiores" com bastante dinheiro para tomarem emprestado de ainda mais
enlouquecidos novos prestamistas hipotecários. Só a Fannie Mae,
o Freddie Mac e a Federal Housing Agency estão desejosas de fazer
empréstimos tão loucos, e isto é só porque
estão a ser orientados pelo sr. Paulson para actuar neste caminho
enlouquecido.
Aqui está o problema em seguir as ordens do sr. Paulson e conceder ainda
mais empréstimos: Todo conselheiro imobiliário conhecido
prevê uma nova queda de 20 a 30 por cento nos preços da
propriedade ao longo dos próximos doze meses. Isto é actualmente
a previsão padrão. O seu significado é que além de
estarem inscritos na contabilidade os mais de cinco milhões de atrasados
e arrestados que o sr. Paulson já reconheceu, ainda mais famílias
terão abandonado o combate por esta altura do próximo ano.
Irá o fundo de dádiva dos US$700 mil milhões tentar
receber de volta despejando muita gente das suas casas para pagar o
suficiente ao "contribuinte" a fim de salvar o Countrywide,
Washington Mutual e outros prestamistas predatórios por
empréstimos que Procuradores Gerais do estado denunciaram como
fraudulentos?
Para o governo começar mesmo a recuperar uma parte do valor dos US$700
mil milhões das hipotecas lixo compradas teria de forçar os novos
compradores de casas a pagarem aos bancos ainda maior fatia do seu rendimento.
E se eles assim o fizessem teriam menos rendimento para gastar em bens e
serviços. O mercado interno encolheria, e as receitas fiscais cairiam
aos níveis estaduais, locais e federal. O encargo da dívida
deflacionaria a economia, provocando uma retracção geral
posterior.
De modo que é aqui que a dissonância cognitiva entra em campo:
É necessário, e mesmo inevitável, para o volume de
dívida
descer
não subir restaurar o equilíbrio. Como explicou
Alan Meltzer do American Enterprise Institute (logo de onde!), a Merrill Lynch
pôde ser vendida a 22 centavos de dólar, e a economia sobreviveu
à liquidação do Lehman Brothers e do Bear Stearns.
Tais cancelamentos de dívida são uma
pré-condição para amortizar as dívidas
hipotecárias da América a níveis que sejam
comportáveis. Mas o plano do sr. Paulson é de combate a esta
maré. Ele quer que a Wall Street seja mantida a arrecadar dinheiro a
expensas da economia como um todo. Foram estes grandes bancos que fizeram
lobby no Congresso para nomear des-regulamentadores, bancos cujos
responsáveis pagam-se a si próprios enormes bónus e
concedem-se enormes paraquedas dourados. Eles foram os líderes na
grande campanha de desinformação acerca da mágica do juro
composto. E agora estão prestes a obter o resultado do seu suborno.
A pretensão é que não pagá-los ameaçaria
"a economia". A realidade é que isto só travaria o
comportamento predatório deles. Pior do que isso, para a economia como
um todo, uma assunção pelo governo destes maus empréstimos
impediria a amortização da dívida que a economia necessita!
Ainda pior. Se o Congresso viesse a ser tão destrutivo absorvendo
US$700 mil milhões de maus empréstimos (para começar), os
vendedores farão exactamente os que fizeram os cleptocratas da
Rússia. Eles apanharão o seu dinheiro e mudar-se-ão para
fora, para um país de divisa "dura". Isto ajudará a
fazer com que o dólar entre em colapso. Subirão os custos da
gasolina e os preços das demais importações. A
América será transformada numa economia de estilo russo
pós-soviética, tendo dotado uma nova cleptocracia interna de
iniciados, os quais utilizam alguns dos seus ganhos financeiros para financiar
as campanhas de Yeltsins americanos, tais como McCain.
Assim, vamos admitir que economia tomou um caminho errado durante as
últimas décadas. Como observou John Kay: "Quando o
pó assentar, muitos bancos e hedge funds terão perdido mais
dinheiro nas suas actividades de trading no ano passado ou pouco mais do que o
fizeram em toda a sua história ... A busca do valor para o accionista
prejudicou tanto o valor para o accionista como o próprio
negócio".
[2]
Preocupa-me que o salto de quarta-feira no Dow Jones médio assinale que
os grandes decidiram que há uma boa oportunidade de a vasta
dádiva ser aprovada. Os protestos republicanos parecem-me ter como
objectivo não tanto realmente travar a medida, mas declarar publicamente
para registo que se opõem a ela antes de por ela votarem. Quando
público acordar para a grande dádiva, os republicanos
poderão dizer: "Foi um Congresso democrata que fez isso,
não fomos nós. Leia os nossos protestos angustiados ".
Toda a gente está a tentar cobrir-se. Com boas razões.
Não os deixem falar em nome dos eleitores e a seguir actuar contra a
economia, apregoando que estão a tentar salvá-la. Uma
dádiva desta magnitude sem precedentes iria estropiá-la
tão prolongadamente quanto se possa discernir.
24/Setembro/2008
Notas
[1] Martin Wolf, Paulson's plan was not a true solution to the
crisis,
Financial Times,
September 24, 2008.
[2] John Kay, How we let down the diligent folk at the Halifax,
Financial Times,
September 24, 2008.
O original encontra-se em
http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=10330
.
Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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