Anatomia de uma crise financeira de alcance planetário
por Michael R. Krätke
[*]
Quatro semanas atrás o mundo ainda parecia estar em ordem: a economia
mundial e os mercados financeiros estavam no apogeu. Agora temos um crack
bursátil a prazo que desagua numa crise do mercado monetário: os
bancos centrais não deixam de injectar capital nos mercados financeiros.
Na Alemanha, o Banco Regional da Saxónia está em sérias
dificuldades e teve de ser resgatado pelas caixas económicas e outros
bancos regionais com uma dose para a sobrevivência de 17,3 milhões
de euros. O estado da Saxónia garante esta soma extremamente incomum,
que ultrapassa o seu orçamento anual.
A classe política exercita-se em esconjuros de boa saúde, mas
todos os afectados sabem que o pior está para chegar. O mais tardar,
quando explodirem outras bolhas especulativas. Por agora, a bela nova ordem
dos mercados financeiros internacionais "liberalizados" vê-se
submetida a uma dura prova. O dogma popular, segundo o qual os mercados
financeiros e a economia mundial são tanto mais
"eficientes" e "estáveis" quando mais
desregulamentados e liberalizados estiverem, essa fé dos broncos, ficou
em suspenso. Por toda a parte ouve-se o clamor pela imposição de
regras e travões aos agentes dos mercados financeiros.
Mais de 5 milhões de casas à venda nos EUA
O que se passou? Nos EUA explodiu uma gigantesca bolha imobiliária.
Juros baixos, preços imobiliários em aumento constante
(até 20% ao ano nos melhores lugares), um mercado hipotecário em
expansão hiperbólica, mantiveram a economia dos EUA a trote. O
boom alimentava o consumo privado, o endividamento das famílias
estado-unidenses subia desaforadamente até chegar, em média, a
120% do rendimento anual, constituído em três quartas partes por
dívidas hipotecárias. Os bancos hipotecários e os fundos
imobiliários ofereciam crédito barato às pessoas,
inclusive àqueles que nunca teriam podido permitir-se possuir casa
própria. A ruína previsível de inúmeros
proprietários de casas não representava o menor problema,
enquanto, é claro, se mantivesse o boom. Os bancos e as sociedades
financeiras ganharam fabulosamente com isso, tal como a multidão de
gestores imobiliários.
Há meses agravam-se os atrasos [nos pagamentos], e as vendas
forçadas sobem astronomicamente: mais de 5 milhões de casas
estão à venda nos EUA. Pela primeira vez em dez anos
começam a baixar os preços e disparam os juros. A crise explodiu
como não podia deixar de ser no segmento subprime do
mercado, entre as famílias mais pobres com poucos rendimentos (e, em
termos reais, descendentes). Mais de dois milhões de norte-americanos
perderam as suas casas, há mais de 500 mil milhões de
dólares acumulados em atrasos: um tsunami de hipotecas falidas arrasa o
país.
Com a quebra espectacular, em Junho último, de dois hedge funs
multimilionários pertencentes ao quinto maior banco estado-unidense de
investimentos Bear Stearns perderam-se, de imediato, 1.600
milhões de dólares. Além disso, as acções
do Bear Stearns despenharam-se, tal como as de muitos outros fundos de
investimentos, bancos e seguradoras: mais de 200 mil milhões de
dólares perderam-se da noite para a manhã. A Wall Street
estremeceu, e o resto dos mercados de valores do mundo reagiu de imediato.
Pois o colapso dos fundos hedge era um sinal de alarme para todos os iniciados.
Os bolsistas reagiram com pânico mas logicamente: pois os
créditos atrasados encontram-se por toda a parte, e são bombas
relógio colocadas não só no sistema financeiro
estado-unidense como no mundo todo. Porque a bolha imobiliária
só podia crescer na medida em que os financeiros continuassem a
acreditar na possibilidade de por à venda, a qualquer momento,
até os piores e mais arriscados créditos hipotecários.
Esses créditos, tal como todos os demais tipos de dívida, assim
como os pagamentos futuros de juros e amortizações,
transformaram-se em mercadorias comerciáveis. De modo que até os
créditos frouxos e ainda cambaleantes serviam de base a uma
vertiginosamente expandida super-estrutura de derivados creditícios em
mãos de especuladores profissionais. Créditos
hipotecários e de outros tipos foram empacotados em massa e utilizados
como garantia para novos títulos: os bancos hipotecários vendiam
esses títulos respaldados por hipotecas
(mortgage backed securities)
transferindo assim o seu risco creditício para outros, para bancos,
fundos de investimentos e seguradoras. Estes não se preocupavam com a
qualidade da dívida hipotecária original, porque também
eles, por sua vez, pretendiam vender esses títulos.
Enquanto se mantém um boom imobiliário, esses títulos
são investimentos monetários lucrativos, os hedge funds os
disputam, a securitization de todo tipo de dívidas e a emissão
desses títulos apoiados hipotecariamente converte-se num ramo em auge,
ao qual se abalançam fundos especiais. O comércio em escala
planetária com esses derivados dá-se à margem das bolsas,
a concorrência entre os grandes hedge funds dispara os seus
preços, de maneira que sobre a bolha imobiliária forma-se uma
nuvem de bolhas ulteriores de derivados.
Mas o que acontece quando todos os créditos que se encontram na base
falham em massa? Então torna-se imperiosamente claro para os afectados
que estão a cavalgar sobre uma onda de valores fictícios gerada
por eles próprios. Uma vez que as garantias não são de
nada, desvanece-se o valor dos títulos garantidos, os bancos querem a
devolução dos dinheiros emprestados a curto prazo, os hedge funds
não podem continuar a vender os seus títulos e entram em
bancarrota. Em consequência, também aqueles bancos, seguradoras e
fundos de investimento que financiaram a especulação com esses
derivados vêem-se em apertos muito sérios. Uma vez que esses
derivados foram comercializados à escala planetária,
vêem-se subitamente em dificuldades bancos que jamais financiaram uma
hipoteca nos EUA. Mas participaram como o IKB, como o Westdeutsche e o
Banco Regional da Saxónia e muitos outros em hedge funds, quando
não criaram os próprios, que especulavam com tais derivados
creditícios. Suas perdas repercutiram através das
cotações dos mercados de valores. Por todo o mundo, os valores
financeiros despenharam-se e, à espera de uma onda de quebras, os
investidores fugiram em massa. Também os bancos que jogam na primeira
divisão, e que nada têm a ver com a especulação
imobiliária, vêem-se agora em apertos.
As economia exportadoras chinesa e alemã e o fim dos mercados
estado-unidenses
Caídos os primeiros bancos, como nos EUA, ou penosamente resgatados,
como na Alemanha, principia o acto seguinte do drama: a crise do mercado
monetário. Uma vez que os bancos sabem que todos os demais estão
atolados, mas não com que profundidade, põem limites severos ao
empréstimo inter-bancário, exigindo juros elevados para
créditos a curto prazo. Por outras palavras: o sector mais
estável dos mercados financeiros, o tráfego creditício
inter-bancário, contrai-se subitamente. Só os bancos centrais
podem então intervir como
lender of last resort
como prestamistas de último recurso , o que fizeram
maciçamente durante dias.
O Banco Central Europeu (BCE) injectou mais de 200 mil milhões de euros
no mercado monetário para créditos a curto prazo, o FED
estado-unidense abriu a torneira creditícia menos generosamente, mas
baixou claramente os juros e alongou o prazo dos créditos a curto prazo.
Em todo o mundo o exemplo foi seguido. Ainda que com isso parecesse superada
de imediato a crise do mercado monetário, o certo é que a crise
financeira mundial apenas começou.
Para cobrir perdas, os hedge funds e os bancos vendem os títulos que
ainda conservam algum valor, títulos petrolíferos ou
títulos de metais. Não tarda então a cair o preço
do petróleo e os preços dos metais por toda a parte. Muitos
investidores conservadores do mundo inteiro fogem procurando refúgio nos
títulos seguros, ou seja, nos estatais. Simultaneamente, interrompe-se
a onda de fusões e tomadas de controle empresariais que só
em 2007 já se elevava, no conjunto do planeta, a mais de 3 milhões de
milhões de dólares uma vez que os bancos restringem
drasticamente as suas condições creditícias. Como agora
é arriscado e muito caro conduzir com os créditos a longo prazo,
muitos mega-negócios previstos ou já em andamento, quando
não rompidos ou adiados, os bancos experimentam enormes dificuldades na
hora de continuar a fornecer créditos multi-milionários já
concedidos. As operações nos mercados de valores adiam-se, o
mercado de novas emissões vem abaixo, o segundo motor do rally
bolsístico entra em pane, adeus às acções em alta.
O fim do túnel ainda está muito longe de estar à vista.
Os mercados de valores assinalam actualmente a descida de
cotações mais abrupta dos últimos anos. Bancos e hedge
funds no mundo inteiro continuam a afastar de si os derivados
creditícios prenhes de risco que haviam financiado com dinheiro barato
japonês; os créditos têm que ser devolvidos em yenes, logo
dispara-se para cima o câmbio do yen e afundam as cotações
em Tóquio. Virá agora a crise do dólar e, com ela, a
crise do comércio mundial, de modo que para as economias exportadoras
chinesa e alemã acabaram-se os mercados estado-unidenses.
05/Setembro/2007
Do mesmo autor:
Crise dos mercados financeiros: vem aí o grande crash?
, 19/Ago/07
[*]
Estudou economia e ciência política em Berlim e Paris.
Actualmente é professor em várias universidades alemãs e
no estrangeiro, desde 1981 principalmente em Amsterdam. Co-editor da revista
alemã SPW (Revista de política socialista e economia) e da nova
edição crítica das Obras Completas de Marx e Engels
(Marx-Engels Gesamtausgabe, nova MEGA). Investigador associado do Instituto
Internacional de História Social, em Amsterdam. Autor de numerosos
livros sobre economia política internacional.
O original encontra-se em
http://www.refundacioncomunistapr.com/articulo_t.php?unitid=628
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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