A auto destruição do capitalismo da dívida (I)
Num período de menos de um ano, aquilo que fora descrito pelas
autoridades estado-unidenses como um problema financeiro temporário
relacionado com o estouro da bolha habitacional redundou numa crise
completamente madura no próprio núcleo do capitalismo de livre
mercado.
Durante anos um punhado de analistas estivera a advertir que a
desregulamentação maciça dos mercados financeiros e o erro
da privatização do sector público durante as
últimas duas décadas ameaçaria a viabilidade do
capitalismo de livre mercado. Mas a fixação ideológica
neoliberal permanece firmemente arraigada nos círculos dirigentes dos
EUA, fertilizada pelas irresistíveis contribuições de
campanha dos especuladores da Wall Street, expurgando metodicamente as
agências reguladoras de tudo o que tentasse manter um senso de realidade
financeira.
Esta ideologia de "o mercado sabe melhor" permitiu que o país
deslizasse numa insustentável condução errática
quanto à sua dívida maciça assumida
vertiginosamente por todos os participantes do mercado, que vão desde os
bancos supostamente conservadores, bancos de investimento e outras
instituições financeiras não bancárias, até
corporações industriais, empresas patrocinadas pelo governo
(government sponsored enterprises, GSEs) e indivíduos.
A outrora dinâmica economia dos EUA transformou-se num sistema em que
é difícil encontrar alguma instituição, companhia
ou indivíduo que não tenha a sua cabeça na dívida
especulativa. O capitalismo subcapitalizado, também conhecido como
capitalismo da dívida, foi o motor do crescimento da bolha da
dívida estado-unidense nas últimas duas décadas. Este
capitalismo canceroso é causado por um fracasso da banca central.
Face a um vasto colapso sistémico do capitalismo da dívida, onde
o capital tornou-se perigosamente inadequado e novo capital arriscado e
proibitivamente escasso, tendo sido esmagado pela dívida maciça
colaterizada por excessivos activos de valor declinante e com uma crise de
crédito que claramente exige reestruturação dinâmica
e cuidados intensivos abrangentes, aqueles nos EUA que são
responsáveis pelo bem estar financeiro do país parecem ter estado
a reagir tacticamente de crise em crise com um roteiro de firme
negação dos factos óbvios, dos sintomas e das
tendências, sem sinais de qualquer grande estratégia ou plano
coerente para salvar o sistema canceroso da auto-destruição
estrutural.
Esta abordagem improvisada de curto prazo para artificialmente estimular
preços de acções no mercado em colapso e para manter
instituições financeiras insolventes com salva-vidas
técnicos conduzirá apenas ao desastre a longo prazo de toda a
economia.
Mas esta abordagem é preferido por aqueles que detêm autoridade,
presos no auto engano de o capitalismo do mercado não regulamentado
ainda ser fundamentalmente saudável. Eles tentam acalmar os mercados
asseverando que a confusão actual é meramente um pequeno gargalo
de liquidez que pode ser manuseado pela entrega por parte do banco central de
mais liquidez contra o pleno valor facial de colaterais de valor em
declínio.
A mensagem é que, se o dinheiro fácil na forma de dívida
for tornado infindavelmente disponível, de certo modo a economia
recuperará deste esmagamento do crédito, não obstante o
facto de a dívida excessiva ter sido a causa do problema; ou de maus
empréstimos poderem ser tornados bons pelo Congresso se der ao Tesouro
dos EUA autoridade para comprar maus empréstimos com quantias ilimitadas
de dinheiro dos contribuintes.
Mas estas medidas incrementais adoptadas até agora pelo Tesouro e pelo
Federal Reserve dão a estas duas unidades do governo responsabilidade
directas sobre a saúde financeira a longo prazo do país parecerem
como correctores vigaristas
(rogue traders)
em pânico a comerciarem para as contas nacionais na esperança
desesperada de marcarem uma vitória no próximo trimestre pela
elevação da aposta, para conter alegadamente isolados pontos
quentes de crise. O efeito agregado soma-se a uma vasta
nacionalização invisível do insolvente sector financeiro.
A sua receita para estabilizar um mercado de dívida desestabilizado
é mais dívida pública para suportar socialismo corporativo.
Durante anos, qualquer um a advertir que as empresas patrocinadas pelo governo
(GSEs), nomeadamente a Fannie Mae e o Freddie Mac, deveriam ser
incluídas nas exigências normais de capitalização
era ridicularizado pelas poderosas máquinas de lobby que estas GSEs
empregavam como sendo um fomentador do medo. O capital é considerado
como supérfluo no novo jogo do capitalismo da dívida erguido pelo
complexo hedging circular. Em resultado, as GSEs tornaram-se a cauda
monstruosa que sacode o cão das finanças habitacionais.
A conversa actual acerca da necessidade de conter a especulação
nas
commodities
e nos mercados financeiros para estabilizar preços é
despropositada, especialmente para os crentes do capitalismo de mercado. Todas
as transacções de mercado são especulativas por natureza.
A especulação tanto pode estabilizar preços como
desestabilizá-los, mas apenas no curto prazo. Níveis de
preços a longo prazo (inflação ou deflação),
como Milton Friedman apropriadamente observou, são sempre
fenómenos monetários. A actual tempestade no sistema financeiro,
a implosão das hipotecas subprime, a crise de crédito da
convulsão no mercado de papeis comerciais apoiados por activos, a
subcapitalização dos bancos comerciais e de investimento, a
disfunção das agências de classificação, a
insolvência de seguradoras (de títulos) monoline, as perdas
financeiras maciças das GSEs e a multidão de outros problemas
financeiros que permeiam abaixo do radar dos media, são o resultado, e
não a causa, desta turbulência do mercado. (Ver
Perils of the debt-propelled economy
,
Asia Times Online,
September 14, 2002.)
A Fanny Mae e o Freddy Mac, GSEs que desde 1938 proporcionavam fundos
hipotecários para o mercado habitacional, foram criados como parte do
New Deal para ajudar famílias de baixo rendimento. Eles foram
privatizadas em 1958 em termos que alterariam o seu mandato social e
inevitavelmente iria levá-los à perturbação
financeira em grande escala. Finalmente, mas subitamente, estas GSEs
encontraram-se em perigo de incumprimento das suas dívidas
maciças, superiores a US$5 milhões de milhões
(trillion),
no decorrer uma única semana.
Está profundmente enraizada na cultura política dos EUA a
visão de que o crédito é um serviço público
financeiro, tal como o ar e a água, e deveria ser igualmente
acessível a todos, não apenas aos ricos. A democracia
económica tem sido o núcleo forte da democracia política
estado-unidense. Mas de tempos em tempos, este princípio de democracia
económica é ensombrado pelo extremismo do livre mercado que
empurra a economia do país para dentro de extensas depressões.
O US National Housing Act foi promulgdo em 27 de Junho de 1934, como uma das
várias medidas de recuperação económica do New Deal
a fim de retirar o país da Grande Depressão. Ela lei permitiu o
estabelecimento de uma Administração Federal da
Habitação (Federal Housing Administration, FHA). O Título
II do Housing Act dispunha acerca dos seguros dos empréstimos
hipotecários feitos por prestamistas privados, removendo o risco
desagregado no empréstimo dos mutuários de baixo rendimento para
longe dos mutuantes privados e administrando o risco a uma escala nacional por
meio de uma agência governamental a fim de aproveitar a lei dos grandes
números, um teorema em probabilidades que descreve a estabilidade a
longo prazo de uma variável aleatória. Estas
associações eram para ser corporações independentes
regulamentadas pelo administrador, e a sua finalidade principal era comprar e
vender as hipotecas seguradas pelo FHA sob o Título II.
Apenas uma associação chegou a ser formada sob esta autoridade.
Em 10 de Fevereiro de 1938, esta associação, a National Mortgage
Association of Washington, tornou-se subsidiária da Reconstruction
Finance Corp, uma corporação governamental. O seu nome foi
alterado naquele mesmo ano para Federal National Mortgage Association (Fannie
Mae). Com a emendas efectuadas em 1948, o Título II do US National
Housing Act tornou-se a carta estatutária para a Fannie Mae.
A barreira do pagamento final
Antes da Grande Depressão, a compra de uma casa era difícil para
a maior parte das pessoas nos EUA. Naquele tempo, um futuro comprador tinha de
fazer um pagamento inicial de 40% e pagar a liquidar a hipoteca em três a
cinco anos. Até o último pagamento, os mutuários pagavam
apenas os juros do empréstimo. Todo o principal era pago numa quantia
fixa como pagamento final
(balloon payment).
Os prestamistas podiam exigem o pleno pagamento do empréstimo pendente
a qualquer momento que escolhessem, muitas vezes num momento menos vantajoso
para os seus tomadores. Isto permitia aos mutuantes utilizarem arrestos como
meios para tomarem posse das propriedades que desejavam.
Durante o período do boom da década de 1930 passou a existir um
rudimentar mercado secundário de hipotecas. O crash do mercado de
acções de 1929 terminou com o boom imobiliário e levou
à insolvência muitas companhias privadas de garantias quando os
preços entraram em colapso. Quando as condições
económicas pioraram, cada vez mais tomadores de empréstimos
deixaram de cumprir hipotecas porque não podiam conseguir o dinheiro
para o pagamento final ou "rolar"
(roll over)
sua hipoteca devido ao baixo valor de mercado das suas casas.
A fim de retirar o país da Grande Depressão, o Congresso criou o
FHA através do National Housing Act de 1934. O programa de seguros do
FHA protegia os prestamistas do risco de incumprimento a longo prazo, nas
hipotecas de taxa fixa. Como este tipo de hipoteca era impopular junto aos
prestamistas e investidores privados, em 1938 o Congresso criou a Fannie Mae
para refinanciar as hipotecas seguradas pelo FHA.
Quando os soldados da II Guerra Mundial voltaram para casa, o Congresso aprovou
o Serviceman's Readjustment Act de 1944, o qual deu autoridade ao Department of
Veterans Affairs (VA) para garantir empréstimos aos veteranos sem
pagamento inicial ou exigências de prémios de seguros. Muitas
instituições financeiras consideraram esta
disposição um investimento mais atraente do que títulos de
guerra.
Com a revisão do Título III, em 1954, a Fannie Mae foi convertida
numa corporação de propriedade mista, ficando as suas
acções preferenciais na posse do governo e as ordinárias
na dos privados. Foi nesta altura a aprovação da
Secção 312, que deu ao Título o título resumido de
Federal National Mortgage Association Charter Act.
Com as emendas efectuadas em 1968, a Federal National Mortgage Association foi
dividida em duas entidades separadas, uma que ficou conhecida como Government
National Mortgage Association (Ginnie Mae) e a outra mantendo o nome de Federal
National Mortgage Association (Fannie Mae). A Ginnie Mae permaneceu no governo
e a Fannie Mae passou a ser possuída por acções reservadas
ao governo. A Ginnie Mae tem operado como uma associação
totalmente governamental desde as emendas de 1968. A Fannie Mae, como
companhia privada a operar com capital numa base auto-sustentável,
expandiu-se a comprar hipotecas para além dos tradicionais limites de
empréstimo do governo, estendendo-se a um mais vasto conjunto de
rendimentos.
No princípio da década de 70, a inflação e as taxas
de juro subiram drasticamente. Muitos investidores afastaram-se para longe das
hipotecas. A Ginnie Mae facilitou a tensão económica ao emitir
em 1970 a sua primeira garantia com título apoiado por hipoteca
(mortgage-backed security, MBS). Os investidores consideraram esta MBSs
garantidas altamente atractivas. Também em 1970, sob o Emergency Home
Finance Act, o Congresso permitiu à Federal Home Loan Mortgage Corp
(Freddie Mac) que comprasse hipotecas convencionais de
instituições financeiras seguradas a nível federal. A
legislação também autorizou a Fannie Mae a comprar
hipotecas convencionais. O Freddie Mac introduziu o seu próprio
programa MBS em 1971.
As autorizações da Fannie e do Freddie dão a estas GSEs
isenções de impostos estaduais e locais, permitindo-lhes
exigências de capital relativamente magras, e proporcionando-lhe a
capacidade para contrair empréstimos às mais baixas taxas
possíveis a fim de conceder empréstimos a taxas próximas
das do mercado. Ao longo dos anos, esta vantagem serviu não para
reduzir os preços das casas e dos pagamentos de hipotecas a fim de
ajudar compradores de baixo de rendimento e sim para enriquecer seguradoras de
dívidas e correctores.
Vencimento da linha de crédito
Cada agência tem agora uma linha de crédito de US$2,25 mil de
milhões junto ao Tesouro, estabelecida a aproximadamente 40 anos
atrás pelo Congresso num tempo em que a Fannie tinha apenas cerca de
US$15 mil milhões de dívidas abertas. Ela agora tem uma
dívida total da ordem dos US$800 mil milhões, ao passo que o
Freddie tem cerca de US$740 mil milhões. Hoje as duas companhias
também possuem ou garantem empréstimos com valor facial de mais
de US$5 milhões de milhões, cerca da metade das hipotecas do
país. Analistas de mercado estimam que o valor de mercado deste passivo
possa ser de menos de 50%, a menos que o mercado habitacional se recupere. Por
outras palavras, as GSEs enfrentam uma exposição ao incumprimento
de US$3,5 milhões de milhões se não puderem levantar novos
fundos no mercado de crédito.
No princípio da década de 1980, a economia estado-unidense
rodopiou para uma recessão profunda. As taxas de juros eram altas ao
passo que os preços das casas estavam a cair, permanecendo para
além do alcance de muitos compradores de rendimento baixo e médio
porque o crescimento do rendimento permanecia estagnado. A economia dos EUA
enfrentava um problema dual de deficiência de rendimento e
desvalorização monetária. Neste fraco ambiente do mercado
imobiliário, a Ginnie Mae, a Fannie Mae e o Freddie Mac criaram
programas para manusear hipotecas de taxa ajustável. A garantia da
Ginnie Mae é apoiado na fé absoluta e no crédito dos
Estados Unidos. Hoje, os títulos MBS garantidos pela Ginnie Mae
são um dos mais amplamente possuídos e comerciados no mundo. A
Ginnie Mae garantiu mais de US$1,7 milhões de milhões em MBSs.
Historicamente, 95% de todas as hipotecas FHA e VA foram titularizadas
através da Ginnie Mae. A Ginnie Mae é uma fiadora, uma
segurança. A Ginnie Mae não emite, vende ou compra MBSs, nem
compra empréstimos hipotecários. A Ginnie Mae não
está em aflição financeira.
A Fannie Mae é outra história. Muitas das opções
inovativas em hipotecas introduzidas durante o princípio da
década de 1980 para ressuscitar o fraco mercado habitacional em
recessão foram exploradas para alimentar uma bolha habitacional com
liquidez excessiva proporcionada pelo Federal Reserve, ajudando compradores de
rendimento baixo e médio a comprarem casas que o seu rendimento
estagnado não podia permitir. A Fannie continua a operar sob uma
autorização do Congresso que a direcciona a canalizar os seus
esforços para o aumento da disponibilidade e acessibilidade da
propriedade de casas para americanos de rendimento baixo, moderado e
médio. Mas as Fannie Mae não recebe financiamento ou apoio do
governo, e é um dos maiores contribuintes do país bem como,
até agora, uma das corporações mais sistematicamente
lucrativas.
A companhia evoluiu e passou a ser possuída por accionistas, uma
corporação de administração privada que apoia o
mercado secundário para empréstimos convencionais. O seu mandato
do Congresso de manter casas acessíveis foi em grande medida esquecido
em favor de um boom sem precedentes no mercado habitacional. Mas ela continua
a operar sob uma autorização do Congresso que lhe proporciona
fundos de baixo custo apenas com uma supervisão superficial do US
Department of Housing, do Urban Development e do Tesouro.
A Fannie Mae tem duas linhas primárias de negócio: Investimento
em carteira, pelo qual a companhia compra hipotecas e MBSs como investimentos,
financiando tais compras com dívida; e garantia de crédito, a
qual envolve garantir mediante uma remuneração
(fee)
o desempenho do crédito de famílias únicas e de
empréstimos multi familiares.
Possuidores de dívida além mar
Durante a bolha habitacional, a qual foi criada essencialmente com a ajuda do
dinheiro fácil do Fed, a Fannie era altamente lucrativa, com altos
retornos para os seus felizes accionistas e compensação lucrativa
para os seus executivos. Acima de tudo, ela proporcionava um contínuo
fluxo de rendimento e lucro para a Wall Street e bancos centrais de todo o
mundo enquanto os proprietários de casas eram afundados num caminho
traiçoeiro de eventual arresto. Segundo dados do Council of Foreign
Relations, bancos centrais possuem US$925 mil milhões de dívida
nas duas GSEs. A China encabeça a lista com US$420 mil milhões
na dívida do Freddie e da Fannie; a Rússia e o Japão
vêm em segundo lugar com uma dívida conjunta nestas GSEs de US$407
milhões. Outros países que possuem a dívida incluem
Singapura, Formosa e vários países ricos em cash no Golfo
Pérsico.
O negócio da carteira de investimento da Fannie inclui
empréstimos hipotecários comprados através dos EUA de
instituições de empréstimos hipotecários aprovadas.
Ela também compra MBSs, produtos de hipoteca estruturada e outros
activos no mercado aberto. O rendimento da corporação deriva da
diferença entre o que rendem estes investimentos e os baixos custos
subsidiados para financiar a compra dos mesmos, habitualmente da emissão
de dívida nos mercados interno e internacional. A Fannie Mae tem hoje
US$3,46 milhões de milhões em MBS pendentes, detidos por uma rede
dispersa de investidores, incluindo bancos centrais estrangeiros,
encabeçados pelo da China.
Os GSEs agora apenas oralmente cumprem a sua missão de proporcionar
produtos e serviços que aumentem a disponibilidade e acessibilidade da
habitação para compradores de rendimento baixo, moderado e
médio através da operação no mercado
secundário, ao invés do mercado primário de hipotecas.
A Fannie Mae compra empréstimos hipotecários a mutuantes
hipotecários, instituições de poupança,
uniões de crédito e bancos comerciais, dessa forma tornando a
encher a oferta de fundos hipotecários daquelas
instituições. Ela tanto empacota estes empréstimos em
MBSs, as quais ela garantia em pleno e atempadamente o pagamento do principal e
dos juros, ou compra estes empréstimos a dinheiro e retém as
hipotecas na sua própria carteira. Mas o papel da Fannie em anos
recentes tem sido abastecer a bolha habitacional com o excesso de liquidez
libertado por um caprichoso banco central, comprando com um lucro
economicamente não saudável hipotecas que dependia de uma
contínua ascensão nos preços das casas para além da
projecção razoável do crescimento do rendimento dos
compradores das casas. Isto transformou os EUA de um país de
proprietários de casas num país de casas arrestadas.
A Fannie Mae é agora um dos maiores emissores do mundo de títulos
de dívida, o líder no mercado hipotecário estado-unidense
de US$14 milhões de milhões. As obrigações de
dívida da Fannie Mae são tratadas como títulos de
agência estado-unidense no mercado, a qual está apenas abaixo dos
US Treasuries e acima da dívida corporativa AAA. Este estatuto da
agência deve-se em parte à criação e
existência da corporação decorrer de uma lei federal, da
missão pública que ela alegadamente cumpre e da continuidade dos
laços que ligam a corporação ao governo dos EUA
através de uma fraca supervisão. Ela beneficia da
aparência, embora não a essência, de ser apoiada pelo
crédito soberano que limita a fraude clara e é protegida pela
doutrina do demasiado grande para cair.
As obrigações de dívida da Fannie Mae recebem tratamento
favorável numa perspectiva regulamentar. Os títulos Fannie Mae
são "títulos isentos" sob as leis administradas pela US
Securities and Exchange Commission, na mesma medida das
obrigações do governo dos EUA. Além disso, a
dívida da Fannie Mae qualifica-se para tratamento mais liberal do que a
dívida corporativa sob os estatutos e regulamentos federais dos EUA e,
numa medida limitada, estatutos e regulamentos estrangeiros. Administradores
de fundos que compram dívida GSE estão protegidos de desafios
fiduciários.
Alguns destes estatutos e regulamentos tornam possível a
instituições receptoras de depósitos investirem na
dívida da Fannie Mae mais liberalmente do que em dívida
corporativa e outros títulos apoiados por dívida e apoiados por
activos. Outros permitem certas instituições investirem na
dívida da Fannie Mae a par de obrigações dos Estados
Unidos em quantias ilimitadas. A Fannie Mae utiliza uma variedade de
veículos de financiamento para proporcionar aos investidores
títulos de dívidas que cumpram seus objectivos de investimento,
comércio, hedging e financeiros, nem todos dos quais servem o interesse
público. A Fannie Mae tem capacidade para emitir diferentes estruturas
de dívida em vários pontos da curva da renda
(yield curve)
devido à sua grande e consistente necessidade de financiamento. Quando
o Tesouro retirou os títulos a 30 anos, estas agências GSE
saltaram para preencher o vazio no financiamento a longo prazo.
Ideologia triunfante
A privatização da Fannie Mae e do Freddie Mac foi um movimento
ideológico. Ela era financeiramente desnecessária pois o
crédito soberano poderia ter financiado todas as necessidades de
hipotecas habitacionais para rendimentos baixos, moderados e médios sem
que fosse extraído lucro para investidores e correctores privados.
Estes instrumentos de dívida da agência desempenharam um papel
crucial no desenvolvimento e sustentação da bolha de
crédito nos EUA que agora volta à casa para se empoleirar.
De facto, o fundo de risco de ambas as agências foi questionado, dentre
muitos outros, pela voz do capitalismo do mercado livre, o
Wall Street Journal,
em 20 de Fevereiro de 2003 num editorial acerca da segurança da Fannie
Mae e do Freddie Mac, da sua estabilidade e da sua administração
financeira, caracterizando ambas as agências como companhias de risco
sempre crescente que "parecem-se a hedge funds fracamente
administrados" ... "indevidamente expostas a risco de crédito
com grandes posições em derivados", e que elas
"utilizam todos os tipos de derivativos" e "estão
expostas a não quantificados riscos de terceiros nestas
posições". Tais preocupações teriam sido
evitadas se ambas as agências fossem financiadas directamente com
crédito governamental, e o custo da habitação para
americanos de rendimento baixo, moderado e médio teria sido mais baixo.
Quando isto acontece, o governo é agora confrontado com a perspectiva de
ter de salvar estas GSEs com fundos públicos.
O termo "subcapitalização" para
instituições financeiros é simplesmente um eufemismo
desinfectado para insolvência. A fonte real da actual turbulência
de mercado é mais do que a perversidade das GSEs que fugiram da trilha
das suas finalidades públicas. Trata-se de outro sintoma do fracasso do
banco central. O mundo está agora a testemunhar o lento mas firme
colapso do regime de banco central que passou a existir nos EUA em 1913, o qual
fracassou no cumprimento do seu mandato de administrar o sistema
monetário para manter a estabilidade de preços e o pleno emprego.
Políticas monetários disfuncinais adoptadas por todos os bancos
centrais, liderados pela Reserva Federal dos EUA, permitiram ao mercado retirar
capital para fora do capitalismo de livre mercado para transformá-lo num
gigantesco
esquema Ponzi
.
Na década de 1990, a intenção original do Congresso para
as GSEs foi desviada da criação de condições
acessíveis de propriedade das casas para as famílias com
rendimentos baixos e moderado para um novo papel de apoiar uma bolha
habitacional que permitia às famílias comprarem casas a
preços cujas hipotecas os seus rendimentos não podiam atender. O
lucro da apreciação dos preços habitacionais foi
principalmente para os originadores das hipotecas e bancos que compravam e
vendiam MBSs para investidores que também lucravam com a compra de
dívida com dívida colaterizada com a dívida que estavam a
comprar. O capital subitamente tornou-se apenas um valor nocional no mercado
de derivativos da dívida. Compradores de casas compravam hipotecas sem
pagamento inicial, bancos e correctores de hipotecas vendiam a dívida a
titularizadores
(securitizers)
que vendiam-na s investidores institucionais os quais tomavam emprestado
utilizando os títulos como colateral. Os GSEs também se tornaram
muito lucrativos, abandonando os compradores das casas ao incumprimento das
suas hipotecas quando o mercado virou-se sobre eles. Todo o ciclo de
transacção não exigia qualquer capital.
A Fannie Mae e o Freddie Mac, classificadas como AAA pelas principais
companhias de classificação de crédito do mundo,
estão agora a ser tratados como comerciantes de derivativos como se
estivessem classificados cinco níveis abaixo porque os emissores
estão lamentavelmente subcapitalizados para a dimensão da
dívida que assumiram. Os credit-default swaps ligados ao US$1,45
milhão de milhões de dívida vendida por estas duas maiores
companhias financeiras de hipotecas, alegadamente apoiadas pelos EUA,
são comerciadas a níveis que implicam que os títulos
deveriam ser classificados como A2 pelo Moody's Investors Service. O
preço dos contratos utilizados para especular sobre a capacidade de
solvência da Fannie Mae e do Freddie Mac e para proteger contra um
incumprimento duplicou nos últimos dois meses.
Indiferença à garantia da dívida
Os traders estão indiferentes à implícita garantia do
governo da dívida das GSE quando as perdas de créditos crescem e
aumentam as preocupações acerca de as mesmas não terem
capital suficiente para aguentar a maior derrocada habitacional desde a Grande
Depressão. A Fannie Mae perdeu 80% do valor de
capitalização no mercado no primeiro semestre de 2008 no New York
Stock Exchange; e o Freddie Mac perdeu 70%. Estas duas GSEs relataram perdas
conjuntas de mais de US$11 mil milhões, e levantaram mais de US$20 mil
milhões de novo capital desde Dezembro de 2007. Depois de a Lehman
Brothers Holdings Inc ter divulgado o relatório de 7 de Junho de 2008 a
dizer que uma nova regra contabilística pode exigir às GSEs que
levantem outros US$75 mil milhões em novo capital, as
acções do Freddie Mac caíram mais 18% e as da Fannie Mae
16%.
(A 2ª e última parte do artigo será publicada amanhã)
22/Julho/2008
[*]
Presidente de um grupo de investimento privado com sede em Nova York. Seu
sítio web encontra-se em
http://www.henryckliu.com
.
O original encontra-se em
http://atimes.com/atimes/Global_Economy/JG22Dj06.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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