A natureza da actual crise capitalista
Toda a gente concorda em que o capitalismo está a atravessar uma crise
grave, mas diferentes pessoas lêem esta crise diferentemente. A
visão mais comum, mantida mesmo por economistas progressistas como Paul
Krugman e Joseph Stiglitxz, é de que a crise é inteiramente uma
consequência do colapso da "bolha" habitacional. Uma vez que
nesta situação de crise é improvável que a despesa
privada (tanto em consumo como em investimento) aumente no futuro
previsível, uma revitalização só é
possível através de um aumento da despesa do Estado, o que
significa que tanto nos Estados Unidos como na Europa, ao invés de
adoptarem medidas de austeridade, o Estado deveria pelo contrário estar
a aumentar a sua despesa.
O facto de esta panaceia para a crise não estar a ser adoptada é
então explicado pela "má teoria económica" dos
formadores de opinião, a "má fé" dos
republicanos, a insensibilidade da direita e assim por diante. Esta
visão, em suma, encara a crise como um fenómeno isolado,
único, uma situação difícil na qual a economia dos
EUA, e portanto a economia mundial, aconteceu ter caído devido ao
colapso de um boom baseado na "bolha", a qual a anterior
política monetária irresponsável do Federal Reserve Board
sob a presidência de Alan Greenspan coniventemente estimulou.
O problema com esta visão é ser extremamente limitada; ela
não vê a verdade toda. A crise provocada pelo colapso da
"bolha" habitacional é apenas uma parte da história;
ela própria está localizada dentro de uma crise estrutural
fundamental do capitalismo. Na verdade, as "bolhas"
"dotcom" e habitacional mantiveram oculta esta crise estrutural. Com
o seu colapso temos não só a crise causada pelo próprio
colapso, como também a sua sobreposição em cima da crise
estrutural básica que agora fica igualmente revelada. Uma vez que esta
crise estrutural está incorporada na lógica do sistema
capitalista, o que temos é uma crise sistémica, não uma
crise esporádica ou cíclica, da qual não há caminho
de saída fácil. Em suma, entrámos num período de
crise prolongada do capitalismo, reminiscente da década de 1930, a qual
abrirá não imediatamente mas através de toda uma
cadeia de desenvolvimentos políticos que desencadeará, tal como
nas décadas de 30 e 40 possibilidades revolucionárias
reais de transcender o sistema.
Vamos começar por formular a pergunta: por que tanto nos Estados Unidos
como na Europa há tanta oposição à despesa do
Estado como meio de ultrapassar a crise? Por que há uma exigência
persistente de "austeridade", a qual necessariamente agrava a crise?
Dizer que é apenas "má teoria económica"
não é suficiente. A "teoria económica" que
adquire hegemonia em qualquer época é aquela que a classe
hegemónica endossa (uma proposição particularmente
verdadeira porque tem uma influência directa sobre o Estado). A
"má teoria económica" é um dos mecanismos
através dos quais os interesses corporativos-financeiros que dominam o
capitalismo contemporâneo exercem a sua pressão. A
"austeridade" está a ser imposta porque o capital financeiro
se opõe à despesa do Estado em grande escala para estimular a
economia.
Ele não se opõe ao activismo do Estado como tal, mas quer que
esse activismo assuma a forma de proporcionar incentivos para si
próprio, de promover seus próprios interesses, como o meio de
revitalizar a economia. Ele não quer acção directa do
Estado para este objectivo através de despesa pública mais ampla.
Qualquer acção do Estado que opere independentemente do capital
financeiro, que procure trabalhar directamente ao invés de trabalhar
através da promoção dos interesses
corporativos-financeiros, mina a legitimidade social do capitalismo, e
especialmente dos interesses corporativos-financeiros, pois levanta a
questão: Se o Estado é exigido para consertar o sistema
então porque é que precisamos do sistema, por que o Estado
não tem a própria propriedade? O capital financeiro nos EUA
não tem objecções aos US$13 milhões de
milhões
(trillion)
de apoio do Estado para a estabilização do sistema financeiro;
mas no momento em que a questão da despesa do Estado para revitalizar a
economia é levantada, ele começa a pregar as virtudes da
"austeridade". A era da hegemonia da finança é portanto
uma era em que "a intervenção do Estado na
administração da procura", estilo Keynes, recua para o
segundo plano.
No entanto, o capitalismo exige sempre algum estímulo exógeno
para sustentar o seu crescimento. Ele pode sustentar crescimento através
do seu próprio "vapor" por algum tempo, mas se por qualquer
razão o crescimento se extingue, incluindo a emergência de
obstáculos decorrentes do próprio crescimento, inicia-se
então uma espiral oposta de investimento cada vez mais baixo e
crescimento declinante, a qual transporta-o na direcção de um
estado estacionário, isto é, na direcção de um
estado de reprodução simples. Destrinçar o sistema para
fora da reprodução simples e assegurar que o crescimento
não perca vapor e não entre outra vez em colapso num estado de
reprodução simples é algo que é assegurado pela
operação de um conjunto de estímulos externos.
Historicamente dois conjuntos de estímulos exógenos desempenharam
este papel. O primeiro foi todo o sistema colonial que o exerceu até a
primeira guerra mundial. A expressão "sistema colonial"
é aqui utilizada não apenas para referir as possessões
coloniais e semi-coloniais como a Índia e a China como também as
chamadas "colónias de povoamento" de onde a
"população activa" foi afastada a fim de acomodar
imigrantes do núcleo capitalista. O "sistema colonial" apoiou
o crescimento sob o capitalismo da seguinte maneira: juntamente com a
migração de população para as "colónias
de povoamento" ou para as regiões temperadas de povoamento branco,
havia também uma migração paralela de capital para estas
regiões a partir do núcleo capitalista, mas esta
"exportação de capital" do núcleo era tornada
possível através de uma apropriação do excedente
das possessões coloniais e semi-coloniais. Assim a "drenagem"
de excedente sem qualquer contrapartida da Índia e de outras
colónias financiou as exportações de capital do
núcleo capitalista para as colónias de povoamento.
Mas subjacentes a estes movimentos de grandes magnitudes de "valor"
havia também importantes mudanças relacionadas com a
composição das mercadorias: a Grã-Bretanha, o principal
país capitalista e também o principal país exportador de
capital, não produzia bens que tivessem alta procura nas colónias
de povoamento como os Estados Unidos. A procura ali era substancialmente por
matérias-primas, isto é, minerais e
commodities
primárias, as quais eram produzidas nas possessões coloniais.
Assim, as exportações de capital britânicas foram tornadas
possíveis primeiro por bens britânicos como têxteis a serem
vendidos nos mercados indiano e asiáticos, e bens destes últimos
países a serem exportados para uma contrapartida, ou, onde se verificava
"drenagem", em ainda maior medida a partir destes países. Bens
britânicos podiam ser vendidos em países coloniais e
semi-coloniais porque eles eram mercados à disposição
(on "tap"):
os seus mercados podiam ser utilizados para descarregar bens britânicos,
na medida necessária, a qualquer momento.
Todo este padrão de movimento global de capital e
commodities,
que era muito conveniente do ponto de vista do núcleo capitalista,
sustentava o prolongado boom que o capitalismo testemunhou desde os meados do
século XIX até a primeira guerra mundial. Após a primeira
guerra mundial este padrão entrou em colapso. Burguesias internas nas
colónias queriam o seu próprio espaço; o Japão
emergiu como um rival da Grã-Bretanha nos mercados asiáticos; o
âmbito para investimento no "novo mundo" ficou esgotado com o
"fechamento da fronteira"; e o espaço para nova
desindustrialização em economias como a Índia
também começou a ficar cada vez mais limitado. A Grande
Depressão da década de 1930 foi uma manifestação do
facto de que o velho mecanismo para estimular a flutuabilidade no capitalismo
já não podia mais funcionar.
A Depressão acabou só quando o segundo grande estímulo
exógeno para o capitalismo, nomeadamente a despesa do Estado, se tornou
efectivo, inicialmente pelos preparativos de guerra e depois pela guerra, sob o
impacto da pressão da classe trabalhadora e da ameaça do
socialismo, pela introdução de algumas medidas de "estado
social"
("welfare state").
Mas a "intervenção do Estado na administração
da procura" também agora se esgotara: a emergência do capital
financeiro internacional como a força hegemónica sob o
capitalismo, pelas razões antes mencionadas, atenuou o espaço
para isso. Ao capitalismo, em suma, falta agora qualquer mecanismo que lhe
transmita crescimento sustentado.
Além disso, isto está a acontecer num contexto em que a
necessidade de um tal mecanismo está a tornar-se mais aguda. Vamos ver
porque. Com a globalização tem havido um fluxo muito mais livre
de capital, inclusive na forma financeira, e também de bens e
serviços, por todos os países, do que em qualquer momento
anterior na história do capitalismo. Em consequência, o capital
das metrópoles (e o grande capital interno também) podem
localizar produção nos países do terceiro mundo, onde os
salários são baixos devido à existência de reservas
de trabalho maciças, e exportar para os mercados metropolitanos. Isto
por sua vez torna os salários dos trabalhadores nos países
metropolitanos vulneráveis ao arrastamento descendente exercido pelas
reservas de trabalho existentes em países do terceiro mundo. Nos Estados
Unidos, por exemplo, nas últimas três décadas a taxa de
salário real dos trabalhadores caiu em termos absolutos aproximadamente
trinta por cento.
Nos países do terceiro mundo por sua vez os salários reais
não aumentam. Ao contrário, a pauperização e
deslocação de pequenos produtores, incluindo camponeses, que
é uma outra característica da globalização, implica
um inchaço do exército de trabalho de reserva que também
exerce uma pressão descendente sobre os salários reais dos
trabalhadores que constituem o exército de trabalho activo do
capitalismo. Tomando a economia mundial como um todo, há portanto uma
tendência para que a taxa dos salários reais dos trabalhadores
decline ou, no mínimo, para que não aumente. Ao mesmo tempo,
contudo, há uma ascensão firme na produtividade do trabalho, a
qual significa que aumenta a parte do valor excedente no produto total.
Assim, desde que uma rupia de produto atribuída aos trabalhadores
provoca um montante de consumo muito maior do que uma rupia atribuída
aos capitalistas, qualquer aumento na parte do valor excedente no produto tem,
tudo mais permanecendo constante, um efeito de depressão da procura. Se
o investimento do capitalista aumentasse quando a rupia extra lhe é
atribuída, então este efeito de depressão da procura podia
ser ultrapassado e todo o output produzido poderia ser realizado. Mas já
vimos que a tendência para o investimento dos capitalistas, muito longe
de aumentar, é para permanecer reduzida ou deprimida na ausência
de qualquer mecanismo para o crescimento sustentado. O resultado líquido
é portanto uma tendência pronunciada rumo a crises de
super-produção. O Estado capitalista que podia ter proporcionado
um antídoto a esta tendência para a super-produção
através da subida na sua despesa, e dessa forma absorver uma maior fatia
do valor excedente e ajudar a sua realização, não pode
fazer isso por causa da oposição do capital financeiro a maior
despesa do Estado.
Segue-se portanto que a incapacitação do Estado capitalista como
fornecedor de procura não só deixa o capitalismo mundial sem o
requisito do estímulo exógeno para a manutenção do
crescimento sustentado como também empurra-o ainda mais para a
estagnação devido a uma razão adicional, nomeadamente a
tendência de aumento da parte do valor excedente no produto mundial. O
capitalismo mundial está portanto preso numa profunda crise estrutural
da qual não há caminhos óbvios de escape. Isto não
quer dizer que o capitalismo entrará em colapso, pois isso nunca
acontece. Mas, tal como nos anos trinta, está a emergir uma nova
conjuntura
prenhe de possibilidades históricas para a
transcendência do sistema.
04/Fevereiro/2012
Do mesmo autor em resistir.info:
O valor do dinheiro, 14/Jan/2013
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
www.networkideas.org/news/jan2012/news06_Nature.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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