O crash de 2010
por Guilherme da Fonseca-Statter
[*]
Para quem se tenha habituado a ver, estudar e compreender as coisas da
sociedade em geral e da economia em particular, através das ferramentas
analíticas desenvolvidas a partir de Marx, é extremamente
difícil fazer uma leitura desprendida do livro de Santiago Becerra,
"El Crash del 2010 Toda la verdad sobre la crisis"
[1]
O livro está escrito numa linguagem escorreita e fluída, em
estilo jornalístico e sem grandes problemas de leitura. Fez-me lembrar
os dois ou três livros de Jacques Attali que até hoje tive coragem
para ler. Utilizando aqui uma imagem popular, no entanto mais aplicável a
Attali do que a este livro de Becerra, poderá a esse respeito dizer-se
que há nesses escritos "muita parra e pouca uva".
Tendo dito isto, importa fazer agora uma análise crítica do seu
conteúdo substantivo.
Relativamente ao modo de ver as coisas do mundo da economia, torna-se claro que
o autor se situa numa posição "keynesiana", quer ao
dedicar o seu livro à memória de John Kenneth Galbraith, quer
dando a um dos capítulos o nome de "Joan Violet Robinson",
sendo estes autores dois dos mais conhecidos economistas keynesianos "de
esquerda".
Até pelo seu cariz jornalístico e sensacionalista, o trabalho de
Santiago Becerra acaba por se cingir a uma análise descritiva e ao
nível da superfície fenomenológica da realidade social e
económica. Ou seja, não procura "buscar" mais fundo na
explicação das causas, próximas ou remotas, das crises.
Estas simplesmente acontecem porque será essa a
calendarização da evolução dos sistemas sociais. Em
linguagem chã, "acontecem porque têm que acontecer", e
acontecem quando acontecem porque isso está na natureza das coisas.
Nesta perspectiva é razoável um qualquer leitor deduzir que a
financeirização do sistema e a desregulação dos
mercados veio a acontecer, não por causa da lógica
intrínseca do capitalismo e da sua permanente geração de
excedentes, designadamente valores que acabam por se converterem em capital
financeiro, mas por causa do predomínio ideológico da Escola de
Chicago e da chegada ao poder por parte de personalidades como Margareth
Tatcher e Ronald Reagan.
A respeito da financeirização do sistema deve ser assinalado que
o autor de
"El Crash de 2010"
faz uma denúncia lúcida e em linguagem clara daquilo que foi um
dos grandes
"bluffs"
do crescimento económico dos últimos anos na União
Europeia. Estou aqui naturalmente a referir-me ao caso emblemático da
Irlanda, ou "o tigre celta"... A denúncia e discussão
do tema é feita com recurso a uma linguagem viva e em resultado de
observações pessoais e de carácter impressionista.
Um outro ponto a assinalar: a elaboração do livro de Santiago
Becerra parece ter subjacente uma filosofia da História de cariz
claramente idealista. Para o autor, tal como para Max Weber, o capitalismo
terá surgido em consequência da emergência do individualismo
calvinista, em contraponto de um suposto colectivismo da Igreja
Católica.
Um outro ponto a assinalar será o de uma perspectiva da
evolução histórica de tipo pendular, ainda que
alargando-se a área geográfica de expansão e se verifique
uma continuada acumulação de capital
"latu sensu".
Segundo o autor, a sociedade humana, pelo menos de há uns 2.000 anos a
esta parte, teria evoluído de modo cíclico. O autor refere-se
repetidas vezes à ocorrência de "crises
sistémicas" e à sucessão de "sistemas" ao
longo dos últimos milhares de anos. Teríamos assim tido 18 crises
sistémicas, a primeira das quais se teria caracterizado pela
aceitação oficial do cristianismo como religião no
Império Romano.
Cada "sistema" teria uma duração de 250 anos e a
intervalos de um quarto de milénio, cada sistema ou "modo de fazer
as coisas" daria origem a um outro sistema ou "modo de fazer as
coisas". Nesta ordem de ideias o autor diz-nos que em 2010 o ano do
próximo
"crash"
terá início a 19ª crise sistémica,
ficando-nos a dúvida sobre a razão de "tudo isto ter
começado" (digo eu...) há 2.000 anos atrás e
não 2.000 ou 3.000 anos antes.
Da leitura do texto que a esse respeito está pouco ou nada
sistematizado poderá deduzir-se que na fase final de cada
"ciclo sistémico" de 250, haverá como que um
período de transição, com a duração
aproximada de 60 anos. Aparentemente seria durante essa fase final e de
transição que iriam surgindo as ideias que iriam dar origem e
prevalecer no novo "ciclo sistémico".
Assim, o feudalismo teria acabado por volta de 1215. Esta data, escolhida pelo
autor, teria tido o significado simbólico de ser a data em que os
barões saxónicos impuseram a Magna Carta ao Rei João Sem
Terra, significando com isso o "princípio do fim" da ideia de
soberano "afastado das coisas do seu reino".
Cerca de 60 anos mais tarde, em 1275, teria início algo que
(provavelmente se deveria chamar de "feudalismo superior" (?) o qual
duraria até, mais ou menos até 1525. Seguir-se-ia uma fase de
transição de aproximadamente 60 anos, até se entrar no
sistema de "mercantilismo", o qual por sua vez duraria até
1775, começando então a fase de transição para o
capitalismo, com "data de nascimento" aproximadamente em 1820.
Tudo isto é tratado ou parece estar implícito num capítulo
com um total de nove páginas, com o título
"La Caída del Imperio Romano",
e que começa com a pergunta crucial de
"Que es una crisis sistémica".
Na esteira de explicações idealistas, Becerra atribui o
princípio do fim do Império Romana à adopção
do cristianismo como religião oficial do Império.
É assim que a anunciada crise de 2010 seria o fim do capitalismo tal
como a "crise de 1820" teria sido o fim do "mercantilismo"
o qual, por sua vez, viera substituir o sistema anterior (o feudalismo?...). De
acordo com esta calendarização, o autor dir-nos-ia pelo
menos de forma implícita que, por volta de 2070, a sociedade
humana entraria num novo sistema, sendo que a fase de declínio final e
de transição se iniciaria em 2010. Repito, manda a honestidade
que se diga que estes elementos parecem estar
apenas implícitos
no texto de Santiago Becerra.
Por outro lado, Becerra aponta a data de 1815 (Congresso de Viena) como a
reposição do Antigo Regime (derrotado pela
Revolução Francesa) e como o princípio de uma
situação de compromisso (digo eu...) entre a aristocracia, o
poder real e a burguesia, estando esta em vias de assumir a liderança
incontestada (mas consentida?...) no novo regime ou sistema capitalista.
O autor utiliza a palavra "sistema" quer para designar o modo de
produção (no sentido marxista desta expressão), ou seja, o
"capitalismo", o "feudalismo", etc., quer ainda para
designar fases longas no interior da evolução de cada sistema.
O autor parece partir da premissa de que já estamos numa fase
"pós global", isto quando para muitos observadores o processo
de globalização está ainda longe de se concluir. Se
quisermos ser rigorosos, embora se reconheça que o sistema capitalista
está hoje completamente integrado à escala global, a verdade
é que ainda há povos e regiões menos integradas e,
sobretudo, uma grande fracção da sociedade humana que está
em processo de exclusão relativamente aos eventuais benefícios da
globalização. No que respeita à actual
situação da crise em que, de acordo com a generalidade dos
autores, já nos encontramos, Santiago Becerra limita-se a apontar as
causas politicamente correctas já enunciadas por outros autores,
designadamente a financeirização do sistema e a
desregulação neoliberal.
Deve no entanto assinalar-se que o autor presta especial atenção
à característica fundamental do sistema capitalista sem, no
entanto discorrer muito (ou pouco...) sobre as causas dessa
característica fundamental. Estou a aqui agora a referir-me à
necessidade ou compulsão do sistema capitalista em produzir sempre mais
e cada vez mais. Sendo que essa necessidade de expansão permanente das
actividades produtivas acaba por vir a chocar-se com o esgotamento progressivo
dos recursos naturais. Em particular as fontes de energia.
Os limites físicos ao continuado crescimento da produção e
do consumo viriam assim a forçar a emergência de um novo
"modo de fazer as coisas", sendo a crise sistémica que se
aproxima apenas a face visível da transformação social e
económica inerentes ao período de transição.
Um apontamento final sobre a calendarização da crise. Tendo
adoptado para com as outras 18 crises sistémicas uma razoável
flexibilidade na sua calendarização, seria razoável
esperar da parte do autor alguma prudência em indicar uma data precisa
para um fenómeno específico: neste caso uma queda brusca e
repentina nas bolsas de valores (que é o que significa um
"crash".
..). Sendo que um tal fenómeno é por sua vez apresentado como
mais um incidente de percurso no desenrolar de uma crise sistémica.
Entretanto, enquanto que para a generalidade dos autores, esse fenómeno
(ou "inflexão sistémica") já terá
acontecido, para Santiago Becerra tudo isto que já estamos presenciando
serão apenas ainda os preliminares. A ver vamos...
Julho/2009
[*]
Licenciado em Sociologia do Trabalho pelo ISCP da Universidade Técnica de
Lisboa, doutorado em Estudos Africanos pelo ISCTE.
[1]
El crash del 2010 Toda la verdad sobre la crisis
, Santiago Niño Becerra, ed.
Los Libros del Lince
, Barcelona, 2009, 232 pgs., ISBN: 978-84-937038-0-6
Esta resenha encontra-se em
http://resistir.info/
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