A uberização económica: nova forma de servidão
Um motorista de táxi de Nova Iorque de 65 anos, de Queens, Nicanor
Ochisor, enforcou-se na sua garagem em 16 de março, dizendo, numa nota
que nos deixou, que empresas como a Uber e a Lyft haviam tornado
impossível ganhar o suficiente para viver. Foi o quarto
suicídio de um motorista de táxi em Nova Iorque nos
últimos quatro meses, incluindo em 5 de fevereiro, o motorista de carros
de aluguer, Douglas Schifter, de 61 anos, que se suicidou com uma espingarda no
exterior da municipalidade.
Escreveu Schifter: "Devido ao enorme número de carros
disponíveis com taxistas desesperados tentando alimentar suas
famílias, as tarifas vão sendo cada vez mais esmagadas, abaixo
dos custos operacionais, forçando profissionais a sair do
negócio. Eles contam o dinheiro deles e nós somos expulsos das
ruas em que conduzíamos, tornando-nos sem abrigo e com fome. Não
serei um escravo a trabalhar por uns míseros trocos. Prefiro estar
morto". Dizia ainda que durante os últimos 14 anos havia trabalhado
100 a 120 horas por semana.
Schifter e Ochisor foram dois dos milhões de vítimas da nova
economia. O chamado
"corporate capitalism"
está a instituir uma servidão de neo-feudal em muitas
profissões, criando uma condição na qual não
há leis laborais, nem salário mínimo, nem
benefícios, nem segurança no trabalho, nem
regulamentação. Trabalhadores pobres e desesperados são
obrigados a suportar 16 horas por dia e são violentamente atirados uns
contra os outros.
Os motoristas da Uber fazem cerca de 13,25 dólares por hora. Em cidades
como Detroit, este valor cai para
8,77 dólares
. Travis Kalanick, o antigo CEO da Uber e um dos fundadores, tem um
património líquido
de 4,8 mil milhões de dólares. Logan Green, o CEO da Lyft, tem um
património líquido de 300 milhões de dólares.
As elites empresariais tomaram o controlo das instituições de
decisão incluindo o governo, destruíram os sindicatos,
estão a restabelecer as condições de trabalho desumanas
que caracterizaram o século XIX e o início do século XX.
Quando os trabalhadores da General Motors realizaram uma greve de 44 dias em
1936, muitos estavam a viver em barracas que não tinham aquecimento nem
água canalizada; Poderiam ser postos em casa durante semanas sem
compensação, não tinham benefícios médicos
ou reforma e muitas vezes eram despedidos sem explicação. Quando
completavam 40 anos o seu contrato podia ser rescindido. O salário
médio era de cerca de 900 dólares por ano numa altura em que o
governo determinou que uma família de quatro pessoas precisava de um
mínimo de 1 600 dólares para viver acima da linha da pobreza.
Os administradores da General Motors implacavelmente perseguiam os activistas
sindicais. A empresa gastou 839 mil dólares em 1934 com detectives para
espiar os activistas sindicais e infiltrarem-se em reuniões do
Sindicato. A GM encarregou o grupo terrorista branco
Black Legion
do qual o chefe de polícia de Detroit era suspeito ser membro
de ameaçar e atacar fisicamente activistas sindicais e assassinar
os
dirigentes, como George Marchuk e John Bielak, ambos mortos a tiro.
O reinado da classe capitalista todo-poderosa está de volta com uma
vingança. As condições de trabalho de trabalho de homens e
mulheres são empurradas para trás, não irão
melhorar até que se recupere a militância e se reconstruam as
organizações populares que tomem poder aos capitalistas. Existem
cerca de 13 mil táxis licenciados na Cidade de Nova York e 40 mil carros
para aluguer e limusines. Os motoristas deveriam, como os agricultores fizeram
em 2015
com tractores em Paris
, fechar o centro da cidade. E os taxistas de outras cidades deverim fazer o
mesmo. Esta é a única linguagem que os nossos mestres
corporativos entendem
Os capitalistas que estão no governo são tão cruéis
como eram no passado. Nada irrita tanto os ricos como ter de partilhar uma
fracção da sua obscena riqueza. Consumidos pela ganância,
tornados insensíveis ao sofrimento humano por uma vida de hedonismo e
extravagância, desprovidos de empatia, incapazes de autocrítica ou
auto-sacrifício, rodeados de sicofantas e aduladores para satisfazerem
os seus desejos, apetites e exigências. Capazes de usar a sua riqueza
para ignorar a lei e destruir os críticos e adversários, eles
estão entre o que há de mais repugnante na espécie humana.
Não nos deixemos enganar pelas campanhas dos hábeis
relações públicas das elites vemos Mark Zuckerberg,
cujo património líquido é de 64,1 mil milhões de
dólares, montando uma propaganda massiva contra as
acusações de que recaem sobre ele e o Facebook de explorar e
vender as nossas informações pessoais ou pela
bajulação das novas celebridades nos media, que actuam como
cortesãos e apologistas dos oligarcas. Esses indivíduos
são o inimigo.
Ochisor, um imigrante romeno, possuía uma
insígnia de táxi de Nova Iorque
(estas insígnias eram em tempos cobiçadas, dado que motoristas
de táxi que as possuam podem arrendar os seus próprios
táxis a outros motoristas). Ochisor conduzia no turno da noite, durante
10 a 12 horas. Sua esposa dirigia o turno do dia. Mas depois a Uber e a Lyft
inundaram a cidade com carros, mal pagando aos motoristas. Há cerca de
três anos, o casal passou a dificilmente poder compensar as despesas. A
casa do Ochisor estava prestes ir para execução de hipoteca. A
sua insígnia taxista, que em tempos valia a 1,1 milhão de
dólares, havia caído para 180 mil dólares. A queda
dramática desse valor, que ele esperava poder arrendar por 3 000
dólares por mês, ou vender para financiar sua reforma, liquidou a
sua segurança económica. Enfrentava a pobreza e a ruína
financeira. E não estava sozinho.
Os arquitectos corporativos da nova economia capitalista não têm
intenção de parar o ataque. A sua intenção é
transformar todos os trabalhadores em temporários, presos na humilhante
armadilha de trabalho com baixos salários, em part-time, em sectores de
serviços, sem segurança de emprego e sem benefícios, uma
realidade que eles consolidam inventando novas expressões como
"the gig economy", "a economia espectáculo".
John McDonagh
começou a conduzir um táxi em Nova Iorque há 40 anos.
Ele, como a maioria dos taxistas, trabalhava com garagens possuídas e
operadas por empresas. Ele era pago com uma percentagem do que ganhava a cada
noite.
"[Então] podia-se ganhar a vida", disse-me ele. "Todos
compartilharam o encargo. A garagem partilhava-o. O motorista partilhava. Se
tivesse uma noite boa, a garagem ganhava dinheiro. Se tivesse uma noite ruim,
era partilhada. Isto não é mais assim. Agora está-se a
utilizar carros em leasing".
O leasing financeiro exige que um motorista pague 120 dólares por dia
pelo carro
e 30 pelo combustível. Os motoristas começam um turno com 150
dólares de dívida. Por causa da Uber, Lyft e outros
apps
em
smartphones,
os rendimentos dos motoristas foram cortados para metade em muitos casos.
Motoristas de táxi podem terminar seus turnos de 12 horas devendo
dinheiro. Os motoristas estão a enfrentar falências,
execuções de hipotecas e despejos. Alguns estão na
condição de sem abrigo.
"A TLC [New York City Transportation and Limousine Commission] queria
limitar os taxistas
yellow cab
a 12 horas de trabalho por dia", disse ele, referindo-se aos motoristas
de táxi com insígnias taxistas que podem receber passageiros em
qualquer lugar nos cinco distritos. "Houve um protesto. Motoristas de
táxi protestaram porque tinham de trabalhar 16 horas por dia para
sobreviverem. Foi tudo cortado. Todos estavam a lutar por serviços
extra. Estava-se num semáforo com dois ou três táxis.
Via-se alguém na rua com bagagem e ultrapassava-se no vermelho para
chegar até ele. Porque isso poderia ser uma corrida para o aeroporto.
Estava a arriscar a própria vida, arriscando a receber multas, ao fazer
coisas que nunca se faziam antes".
Não temos quaisquer cuidados de saúde", disse.
"Sentados essas 12 a 16 horas por dia, está-se a contrair diabetes.
Não há nenhuma circulação de sangue. Engorda-se e
depois há o stress adicional por não se estar a ganhar qualquer
dinheiro".
A Uber e a Lyft em 2016 tinham 370 lobistas activos em 44 Estados, superando
alguns dos maiores executivos e empresas de tecnologia de acordo com o National
Employment Law Project. "O total de lobistas da Uber e da Lyft superou a
Amazon, Microsoft e Walmart juntos". As duas empresas, como muitas
empresas de lóbi, contrataram também os reguladores do governo
anterior. O ex-chefe da Comissão
New York City Taxi and Limousines
, por exemplo, está agora na administração da Uber. As
empresas têm usado o seu dinheiro e os seus lobistas, a maioria dos quais
são membros do Partido Democrata, para se libertarem da
regulamentação e supervisão impostas à
indústria do táxi. As empresas que usam
apps
inundaram a cidade de Nova York com cerca de 100 mil carros não
regulamentados nos últimos dois anos.
"O táxi tem de ser de uma determinada marca" disse McDonagh.
"É um Nissan. [
a Nissan ganhou a licitação
para o fornecimento de táxis da cidade]. Cada táxi tem que
cobrar um determinado preço. Quando baixa, é regulado pela
cidade. Acrescentaram uma série de impostos extras, para o agente de
tranferência de mensagens (MTA) e para cadeiras de rodas [metade dos
táxis amarelos são obrigados a dar-lhes acesso até 2020] e
um imposto de
hora de ponta
.
A Uber entra. Não há regulamentos para nada. Eles podem escolher
o tipo de carro que quiserem. Qualquer cor de carro. Podem alterar os
preços. Quando o serviço é lento podem baixa-los e quando
estão com mais movimento podem aumentá-los. Pode ser duas ou
três vezes, ao passo que os táxis amarelos usam a mesma tarifa o
tempo todo. Ir ao aeroporto Kennedy a partir de Manhattan são 52
dólares, não importa como esteja o trânsito, não
importa quantas horas leva para chegar lá. A Uber irá aumentar os
seus preços duas ou três vezes e o cliente pode ter que pagar 100
dólares para chegar ao aeroporto Kennedy. Enquanto a indústria de
táxis é regulamentada quase até à exaustão.
A Uber vem com a nova tecnologia, descobrindo maneiras diferentes de como fazer
dinheiro... É o fim para os táxis amarelos".
McDonagh diz que "A Uber é um leasing de carros". "Eles
dispõem de concessionárias de carros que os vendem. E anunciam
como. "Ouça, você pode ter mau crédito. Venha para a
Uber. Vai ter dinheiro ou um empréstimo para comprar um carro". E o
que eles fazem é pegar directamente no dinheiro que o motorista faz a
cada dia para pagar o empréstimo. Eles é que não podem
perder. E se ficar abaixo do estipulado, eles vão vender o carro para a
concessionária e depois torna-lo a vender para o motorista imigrante
seguinte. Há todo um golpe em andamento".
"Você não tem a visão do mundo de um taxista",
disse McDonagh. "Mas há aquele famoso termo "a corrida para o
fundo". Você trabalha mais horas por menos salário. Esta
é a nova economia do trabalho. Alguém vai usar um Uber para ir
para um
Airbnb
e pegar no telefone para encomendar alguma coisa da Amazon e comer na sua
casa. Todas essas lojas vão agora desaparecer. Dos empregados das lojas
aos taxistas. Sinto-me como se fosse um ferreiro ou um compositor
tipográfico num jornal a tentar explicar-lhe o que costumava ser a
indústria de táxis. Estamos a tornar-nos obsoletos".
"O pessoal está dormindo no táxi", disse McDonagh.
"Eles vão para o aeroporto Kennedy às 2 ou 3 da
manhã. Vão para a fila e dormem até conseguir um
passageiro do primeiro voo que virá da Califórnia algumas horas
mais tarde. Tem gente que não quer ir a casa durante uns dias. Ficam na
rua a rondar para tentar ganhar dinheiro. É perigoso para o passageiro.
A quantidade de acidentes vai subir porque os taxistas ficam sonolentos".
McDonagh disse que os carros da Uber e da Lyft deviam ser regulamentados. Todos
os carros devem ter taxímetros para garantir uma
remuneração adequada para os motoristas. E os motoristas devem
ter cuidados de saúde e benefícios. Nada disso vai acontecer,
enquanto vivermos sob um sistema de governo onde as nossas elites
políticas dependem de contribuições de campanha das
empresas e aqueles que deviam regulamentar a indústria olham para essas
empresas como o seu futuro emprego.
"Temos que limitar a quantidade de táxis, especialmente aqui na
Cidade de Nova York," disse McDonagh. "Fizemos isto na
indústria de táxis durante 50 anos, por que não podemos
fazer isso agora com a Uber? Estão a acrescentar 100 carros por semana
pelas ruas de Nova Iorque. Isto é a loucura. Quando se chama um Uber, a
maior queixa que as pessoas têm agora é: "o carro aparece
aqui demasiado rápido, em dois ou três minutos. Não consigo
nem me vestir. ... Estão a rodar vazios por toda a cidade, esperando por
uma chamada".
"Os cavalos do Central Park estão regulamentados", salientou.
"Há 150. Eles têm uma boa vida, os cocheiros, os cavalos e as
charretes. Chega a Uber e diz: "nós queremos trazer a Uber aos
cavalos. E queremos adicionar 100 mil". Vamos ver como o mercado vai lidar
com isso. Sabemos o que vai acontecer. Ninguém vai ganhar dinheiro. Eles
tomam todo o Central Park. E agora ninguém pode ir a nenhum lugar porque
existem 100 mil cavalos no Central Park. Seria considerado loucura fazer isso.
Eles não fariam isso. Quando se trata de indústria de
táxis, tudo o que podia haver durante 50 anos eram 13 mil táxis
mas dentro de um ano ou dois vamos ter mais 100 mil. Vamos ver como funciona o
mercado assim! Sabemos como funciona o mercado".
"Eles [os cavalos] trabalham menos horas [do que os motoristas de
táxi]", disse ele. "Os cavalos não trabalham com
temperaturas muito quentes ou muito frias. Se você acredita em
reencarnação, deve reencarnar como um cavalo do Central Park. E
eles vivem no West Side de Manhattan. Nós vivemos em caves em Brooklyn e
Queens. Não melhorámos o nosso nível de vida, isso
é certo."
Ver também:
Federação Portuguesa de Táxi
Sector do táxi: PS/PSD/CDS cedem mais uma vez aos interesses das multinacionais
[*]
Foi correspondente na América Central, Oriente Médio,
África e nos Balcãs. Trabalhou para
The Christian Science Monitor, National Public Radio, The Dallas Morning News
e
The New York Times.
O original encontra-se em
Truth Dig
e em
www.informationclearinghouse.info/49082.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|