A crise capitalista e as confusões entre marxistas

por Zoltan Zigedy [*]

1 – Rebentou uma crise com o colapso da Lehman Brothers em 2008, mas ela já vinha a caminho há algum tempo. Pode explicar resumidamente como encara essa crise?

Os economistas e os analistas — apanhados a observar um acontecimento que, para eles, pura e simplesmente não podia acontecer – retratam o colapso de 2007-2008 como algo isolado, um acidente provocado por uma coincidência improvável de falhas humanas. Claro que essa perspetiva esconde as falhas sistémicas inerentes do sistema capitalista.

As sementes da atual crise foram semeadas muitas décadas antes. A intensa competição global resultante do renascimento pós-guerra das economias europeias e asiáticas, repleta de novas tecnologias, envolvendo novos princípios de organização industrial e inundando os mercados globais com produtos inovadores, exerceram uma pressão enorme na taxa de lucro. A implícita guerra-fria da contratação laboral – as políticas de apoio aos EUA, à NATO e à SEATO mantêm a paz laboral e recebem compensação, pelo menos de acordo com a produtividade e o custo de vida – exerceram pressão das bases sobre os lucros capitalistas.

O resultado da estagnação dos anos 70.

O capital encontrou uma solução: entrar numa guerra desenfreada aos trabalhadores e aos salários. O eixo Thatcher-Reagan, de terra queimada, repôs a lucratividade (e a celebração das suas recompensas) através do agravamento febril da taxa de exploração.

O colapso do socialismo da Europa de Leste acrescentou novos mercados e mão-de-obra barata às condições favoráveis para a realização de lucros. Não é de admirar que a perda do farol do socialismo no mundo real tenha sido profundamente desmoralizante para o movimento laboral. Muitos marxistas ocidentais passaram a olhar para o umbigo ou para o "repensar" do projeto socialista.

Sem me deter em pormenores, a híper-acumulação desta era triunfalista alargou as fronteiras das oportunidades disponíveis de investimento produtivo e seguro. Assim a explosão dos exóticos [derivados] financeiros (e "lucros" financeiros) começou a absorver os excedentes. Do lado do investimento, isso assumiu a forma de capital de risco e as iniciais ofertas públicas "dot.com" no final dos anos 90. A especulação de risco inflacionou uma enorme bolha de valor virtual e de dívidas sem garantia. Como sabemos, aquilo acabou muito mal.

A partir de 2001, o capital procurou reagir e sustentar a lucratividade. O colapso de 2007-2008 mostra que isso não é possível sem malabarismos especulativos e sem um temerário cortejar do risco. Parece-me que ainda é esse o caso.

2 – Há uma certa discussão entre os marxistas sobre a evolução do capitalismo depois da II Guerra Mundial e a compreensão tradicional da taxa de declínio de lucro versus as teorias de financiarização e de superlucros/subconsumismo. Essas teorias são conflitantes ou é possível conciliar a taxa de declínio do lucro com a financiarização e a monopolização e concentração da riqueza?

A. Os marxistas do pós-guerra, tanto nos países socialistas como no ocidente, caíram sob a influência de Keynes, colocando a principal contradição do capitalismo no poder de compra estagnado (ou em declínio) da classe trabalhadora (subconsumismo). Essa foi uma explicação conveniente e atraente para a crise mas, infelizmente, não corresponde aos factos, ignora o processo de acumulação e encoraja uma viragem para a social-democracia.

Economistas marxistas ficaram impressionados, injustificadamente, com o "êxito" do apoio para deter o aparentemente imparável colapso económico da Grande Depressão. Embora o que veio a ser chamado de política "keynesiana" possa ter abrandado, ou mesmo detido a hemorragia, não curou a ferida. Mas muitos marxistas concluíram – erradamente – que, se o consumo instigado à força impedia um colapso maior era porque a crise havia sido provocada por um consumo insuficiente.

Nem a Grande Depressão, nem a atual crise foram precedidas por qualquer choque de consumo, um acontecimento que, se tivesse ocorrido, teria dado algum crédito a uma explicação subconsumista da crise. Por outro lado, as crises provocaram um choque no consumo, um importante fator para a ampliação e alargamento do decurso da crise. Portanto os factos parecem sugerir que os subconsumistas confundem causa com efeito.

O relativamente longo período do pós-guerra sem uma importante crise sistémica (1945-1972) seduziu ainda mais muitos marxistas ao reconhecimento do êxito das prescrições da política de Keynes. Atribuindo a estabilidade aparente do sistema capitalista ao apoio ao consumo do estado de bem-estar, concluíram que a queda do consumo era a explicação demonstrada da crise capitalista. A grave e prolongada década de estagflação que se seguiu deveria ter lançado alguma dúvida quanto a essa conclusão demasiado fácil.

B. O colapso de 2007-2008 lançou um interesse renovado e bem-vindo na explicação da tendência-da-queda-da-taxa-de-lucro da crise capitalista endémica. Fora da corrente marxista dominante, Henryk Grossman e Paul Mattick foram, com frequência, vozes isoladas que apoiaram esta explicação que foram buscar, em grande parte, ao volume III do Capital de Marx. Embora lhes devamos muito por tirarem esta teoria da prateleira, eles desenvolveram-na de uma forma mecânica, formalista, alheia ao método de Marx. E a nova geração de defensores, em grande parte marxistas académicos, infelizmente, seguiram por esse caminho. Não entenderam que as leis da tendência – como a tendência da queda da taxa de lucro – não são demonstrações lógicas, mas descrições de forças sociais e económicas que modelam o decurso duma trajetória de estruturas sociais (neste caso, do capitalismo).

O grande valor da explicação da taxa de lucro é que situa a causa da crise na fonte primeira do processo de acumulação da produção capitalista. Insiste em que a causa primeira do mau funcionamento tem que ser procurada, e encontrada, no principal elemento que alimenta o capitalismo como um sistema económico, ou seja, o lucro.

Na minha opinião, só pode aparecer uma explicação robusta da crise sistémica do capitalismo se se começar pelo papel fundamental da taxa de lucro – o determinante que mantém a classe capitalista no jogo reprodutivo ou, quando o sistema desaba, fora do jogo e à sua margem. Creio que ainda está por aparecer uma explicação contemporânea abrangente da natureza da crise capitalista, embora eu tenha contribuído para isso com os meus modestos escritos.

C. A "financiarização" não é uma explicação da crise. Pelo contrário, é quase sempre uma caracterização (tal como a sua irmã gémea, a "globalização"), uma descrição jeitosa dum aspeto da atual crise. Ninguém aceitaria a "atomização" como uma explicação válida do que acontece numa reação atómica. Nem nós devemos aceitar a "financiarização" a não ser como um neologismo útil para indicar que um certo tipo de artifícios financeiros desempenhou um papel na atual crise. A minha opinião é que "especulação" e "aceitação de riscos" captam melhor as dimensões financeiras da crise em curso para os que precisam duma muleta concisa.

Quando são pressionados a desembrulhar a financiarização para revelar uma teoria explicativa, os seus defensores referenciam os conhecidos acontecimentos da desregulamentação, o crescimento das instituições financeiras, a sua penetração em empresas não-financeiras, a evolução de esquemas novos e exóticos, etc. Mas essas evoluções, na maior parte dos casos, já se vinham a desenvolver desde o tempo de Lenine. Além disso, não há uma ligação óbvia entre essa evolução e o início da crise económica. Mas essa ligação prova-se facilmente pela queda da rentabilidade. Basta olhar para a Countrywide, a Washington Mutual, o Merrill Lynch, e a Lehman Brothers para ver como a especulação e a aceitação de riscos esvaziaram os riscos e geraram um recuo económico e o pânico.

Pode haver uma síntese de três concorrentes para uma teoria marxista da crise?

Não creio. Mas há aspetos de cada um deles que podem ser incluídos numa teoria marxista da crise. Nenhuma teoria marxista adequada pode deixar de abordar a inovação financeira e o estatuto peculiar do lucro financeiro; tem que prestar uma atenção especial ao efeito amplificador da dívida. E a luta de classes unilateral desempenha um papel inegavelmente importante, gerando uma super-exploração, a consequente super-acumulação e o resultante capital abundante à procura dum retorno fugidio. Dito isto, a tendência do capitalismo para gerar pressão baixista sobre a taxa de retorno mantém-se a peça central de qualquer teoria adequada da crise capitalista.

3 – Ouvimos falar muito da recuperação dos EUA, mas você descreve-a como um 'movimento ao retardador' (slug-like motion). Qual é o verdadeiro estado da economia dos EUA, atualmente?

A economia dos EUA está num marasmo. Falta-lhe ímpeto para fugir ao marasmo, e mantém-se precariamente à tona. Mantém-se à tona porque, voluntária ou involuntariamente, o resto do mundo aceita a sua parte do fardo. A RP da China continua a comprar enormes quantidades de dívida dos EUA, juntamente com o Japão. Mantém-se à tona porque o resto do mundo ainda tem que desafiar o dólar como o meio global de troca, permitindo que ele enfraqueça ou se reforce consoante as necessidades da economia dos EUA. Mantém-se à tona porque são os EUA que estabelecem as regras do comércio e dos câmbios em seu benefício. É a recompensa pelo domínio imperialista.

Internamente, a economia dos EUA está no sistema de apoio à vida (life support) a que os economistas chamam "o efeito riqueza". Ou seja, a atividade económica baseia-se no sentimento subjetivo de bem-estar patrocinado pelos aumentos no mercado de ações e pelo aumento no valor das casas. Hoje em dia, estes dois aumentos pouca ou nenhuma ligação têm com as realidades do mercado. Claro que o efeito riqueza só se aplica aos que possuem casas e ativos financeiros.

Os restantes vivem à custa de salários estagnados e de benefícios e contraindo dívidas (o rendimento familiar mantém-se ao. nível de 1990). O capital continua a espremer cada gota dos trabalhadores americanos. Recentemente, um camarada calculou que o salário inicial dum operário da indústria automóvel num estabelecimento sindicalizado (UAW), ajustado à inflação, está equiparado ao de um operário da Ford em 1914, na altura em que Henry Ford "generosamente" aumentou os salários dos operários para eles poderem comprar o Modelo T.

Adiante, o melhor prognóstico é a continuação da estagnação. Um choque, possivelmente como repercussão da UE, do Brasil, da China ou do Japão, ainda poderá abalar esta estabilidade periclitante. Além disso, há muitos sinais de que as práticas financeiras pré-colapso estão de novo a ultrapassar as fronteiras da racionalidade.

4 – Você comparou o período em que estamos aos anos 30 e contestou a noção de que o investimento do New Deal tenha provocado uma recuperação e apontou, ao invés, para o papel da II Guerra Mundial. Considera que a guerra é um instrumento político que possa ser usado hoje e quais as suas preocupações quanto a isso?

William Z Foster , um comunista americano que escreveu no início da Guerra-Fria, desenvolveu a ideia do keneysianismo militar. O valor da sua obra – minimizada e negligenciada por causa do anticomunismo intelectual – foi denunciar a ligação entre o militarismo e a política económica governamental. Para a classe dominante americana, a ideia do "balão de oxigénio", da intervenção orçamental através do setor público, era muito mais atrativa se fosse prestada através de despesas em contratos abertos com empresas militares e de armamento do que as despesas com o bem-estar humano. Nos primeiros o governo dava receitas às empresas, nos últimos davam algumas esmolas à população.

Essa mesma classe dominante aprendeu lições importantes nos anos 30 e 40: a recuperação mais completa da Grande Depressão foi conseguida rapidamente pelo militarismo alemão hitleriano. E a economia americana só começou a recuperar vitalidade com a formação militar que levou à entrada dos EUA na II Guerra Mundial.

Depois da queda da União Soviética, falou-se muito de "dividendos da paz" e duma redução radical das despesas militares nos EUA.

Isso não aconteceu – um facto que demonstra com segurança que o militarismo está inextricavelmente entranhado na política económica dos EUA, visto que não havia, nem podia haver, nenhuma ameaça a sério para a segurança dos EUA, na sequência imediata da Guerra-Fria.

Apesar disso, a subserviente máquina dos media tem inventado novos inimigos a fim de impedir que o público americano ponha objeções ao militarismo. Curiosamente, vemos a opinião pública a passar do ceticismo para um consenso ao longo das permanentes campanhas dos media monopolizados, a favor da guerra,

Em parte, a bizarra campanha anti-Rússia e a demonização de Putin, só é racional no quadro duma explicação económica do militarismo. Os EUA prevêem gastar mais de um milhão de milhões de dólares durante os próximos trinta anos, na modernização do seu programa de armamento nuclear. Isso só se pode justificar ao público inventando ameaças duma potência nuclear. As armas nucleares não são necessárias contra homens de sandálias com espingardas AK-47, granadas atiradas por mísseis e aparelhos explosivos improvisados. Mas a Rússia tem armas nucleares.

A revista liberal The Nation documentou recentemente as ligações financeiras entre chefes militares reformados e a indústria de armamento. Os mesmos ex-almirantes e generais denunciados no artigo estão omnipresentes nos média americanos, aparecendo como especialistas sobre política externa enquanto apelam ao confronto e à agressão. Servem de correia de transmissão entre o militarismo e o público e os órgãos governamentais.

Não é nenhum mistério porque é que vivemos sob a ameaça constante da violência e da guerra.

5 – Como define o sistema globalmente? Fala-se muito do neoliberalismo e do capitalismo financeiro ou capitalismo financiarizado, mas como o compreendemos melhor?

É fácil cair na armadilha de tirar uma foto instantânea ao sistema capitalista global e retirar conclusões apressadas, de anunciar uma nova fase, uma nova tendência, uma nova era… Certamente, isso funciona para um artigo ou livro provocador, que desaparece rapidamente, ou para aparições em entrevistas na televisão. Nas últimas décadas fomos bombardeados com palavras novas, intelectualmente em voga, como "neoliberalismo", "globalização" ou "financialização", teorias prodigiosas como o declínio do estado-nação e disparates profundos como o Império de Hardt e Negri. Felizmente, estes, e os da sua igualha, apenas distraem, raramente persistem.

Em vez de pegar nesse isco irresistível, vou mencionar algumas tendências importantes. Os últimos trinta anos foram marcados por mudanças significativas na divisão internacional do trabalho. Uma verdadeira revolução na logística juntamente com mudanças políticas na Europa de Leste e na RP China integraram novos exércitos de trabalhadores no sistema capitalista global. Estes desenvolvimentos levaram a uma deslocação das manufaturas para áreas distantes, de salários baixos. A acompanhar esta viragem, houve o aumento da finança, dos seguros, do imobiliário e dos serviços, nos países em que as manufaturas diminuíam. Esta nova divisão de trabalho provocou um crescimento drástico na taxa global de lucro, um nível de rentabilidade que, neste momento, já acabou.

Os mercados de trabalho em áreas de salários baixos estão agora a endurecer enquanto a crise e o desemprego cortaram a compensação aos trabalhadores nos países em que anteriormente havia salários altos. A convergência global de salários é o supremo resultado previsível da competição do mercado de trabalho sem restrições nem proteção.

Os trabalhadores das áreas de salários extremamente baixos (RPC, Índia, Brasil, etc) que experimentaram o sabor duma vida melhor, agora querem mais.

Os trabalhadores que foram esmagados, dada a competição internacional e o desemprego provocado pela crise, querem repor e melhorar o seu nível de vida.

Impedindo o caminho para a conquista destas exigências continua a existir um sistema capitalista resistente, cheio de recursos. E, impedindo com frequência o caminho da luta por essas exigências, há instituições e líderes complacentes – líderes sindicalistas, políticos e partidos políticos – que estão a prestar mau serviço aos trabalhadores no século XXI.

Expressões fantasistas e teorias especulativas apenas escondem o facto de que a lógica do capitalismo e do imperialismo, a manifestação internacional do capital, ainda dominam no século XXI.

6 – Globalmente, o sistema está objetivamente em crise em muitas frentes, mas no "ocidente" a sua hegemonia política e cultural mantém-se incontestada, sob qualquer forma séria. É ainda um caso em que o progresso virá provavelmente da periferia para o seio do imperialismo?

Inquestionavelmente, a luta contra o imperialismo, em especial no Médio Oriente e na América latina, ocupou uma arena central e colocou mais desafios às elites dominantes do que as lutas anticapitalistas no Ocidente. Mais decepcionante ainda é a ausência no Ocidente dum movimento poderoso anti-imperialista – um movimento anti-guerra, anti-intervencionista – de solidariedade com o anti-imperialismo do Médio Oriente e da América Latina. Este não é um capítulo especialmente nobre da história da esquerda ocidental.

Hoje, qualquer avaliação cuidadosamente objetiva do capitalismo, revelará profundas vulnerabilidades. Questionará a sustentabilidade da frágil economia global, a viabilidade do sistema político corrupto, antidemocrático e denunciará horrorizado a vulgaridade e o niilismo da cultura burguesa.

Mesmo assim, o objetivo de substituir o capitalismo por um sistema profundamente mais justo e democrático parece muito distante. Uns desistiram da tarefa, reduzindo-se ao incremento ou à acomodação, acreditando, sem qualquer realismo, que podemos corroer o capitalismo gradualmente ou sub-repticiamente. Outros ainda têm visões de utopias do século XIX, de comunidades cooperativas que coexistem com o capital monopolista. A teocracia do mercado livre criou uma geração disposta a adorar os deuses do individualismo e da espontaneidade como exemplificado na esquerda pelo anarquismo. Em resumo, a política da esquerda no ocidente agita-se num caldeirão de ideologia loucamente idealista e mal orientada.

Claro que isto é frustrante, em especial para os que estudam a história e o movimento dos trabalhadores.

A desilusão e a confusão não são algo novo no projeto socialista. Um terço do Manifesto Comunismo é dedicado a denunciar os becos sem saída e as ideologias absurdas que Marx e Engels contestaram na sua época.

Lenine registou satiricamente a situação desanimadora da esquerda russa após o fracasso da revolução de 1905. Devemos ficar surpreendidos, depois do desmantelamento do socialismo europeu, que alterou a história há quase 25 anos, que grande parte da esquerda ocidental ainda esteja a recompor-se?

Contudo, o exemplo de Lenine mostra bem que é precisamente quando há uma confusão política generalizada, que o marxismo (e o leninismo) necessita desesperadamente de lançar a clareza e a unidade na luta anticapitalista.

Penso que estamos nesse momento.

[*] Economista, estado-unidense, zzs-blg.blogspot.ie/

O original encontra-se em politicaleconomy.ie/?p=855 . Tradução de Margarida Ferreira.


Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .
19/Nov/14