Fidel Castro conta os momentos decisivos do golpe de estado
contra Chávez
por Ignacio Ramonet
No dia 15 de Setembro de 2006, foi distribuído na Cimeira dos
Não-Alinhados um capítulo do livro de Ignacio Ramonet:
Cem horas com Fidel Castro.
Eis aqui um excerto do capítulo 24, que diz
respeito ao golpe de estado contra Hugo Chávez.
Uma primeira tradução, a partir da edição
espanhola, já circulou, mas esta foi revista e corrigida pelo
próprio Fidel Castro, que lhe consagrou parte do seu tempo de
convalescença. O presente capítulo compreende as seguintes
secções:
O Sub-Comandante Marcos As lutas dos autóctones Evo
Morales Hugo Chávez e a Venezuela O golpe de Estado contra
CHávez Os militares progressistas Kirchner e o
símbolo argentino Lula e o Brasil.
Publicam-se aqui as secções intituladas: "O golpe de estado
contra Chávez" e "Os militares progressistas".
Você seguiu de perto o curso dos acontecimentos na Venezuela, em
particular as tentativas de desestabilização contra o presidente
Chávez?
Sim, nós seguimos aqui os acontecimentos com muita
atenção. Chávez visitou-nos em 1994, nove meses
após a sua saída [da prisão] e quatro anos antes da sua
primeira eleição para a presidência. Ele foi muito
corajoso, pois criticaram-no bastante por ter vindo a Cuba. Ele veio e
nós conversámos. Descobrimos que ele é culto, inteligente,
muito progressista, um verdadeiro bolivariano. Depois, ele ganhou as
eleições. Por diversas vezes. Modificou a
Constituição. Com um apoio formidável do povo. Os seus
adversários tentaram liquidá-lo através do uso da
força ou sabotagens económicas. Ele soube combater todos os
assaltos da oligarquia e do imperialismo contra a revolução
bolivariana.
Segundo os cálculos que efectuámos com a ajuda dos quadros mais
experientes do sistema bancário, cerca de 300 mil milhões de
dólares saíram da Venezuela durante os famosos 40 anos da
democracia anterior a Chávez. Actualmente, a Venezuela poderia ser mais
industrializada do que a Suécia, e o seu povo ter a
educação que existe nesse país, caso tivesse existido de
verdade uma democracia distributiva, se esses mecanismos tivessem funcionado,
se tivesse havido um pouquinho que seja de verdadeiro e de credível em
toda essa demagogia e na sua publicidade colossal.
Calculámos também que mais 30 mil milhões de
dólares desapareceram da Venezuela entre a chegada de Chávez ao
poder e o momento em que ele instaurou o controlo sobre o sistema de
câmbios em Janeiro de 2003. Já o disse: todos estes
fenómenos tornam a ordem existente no nosso continente
insuportável.
O golpe de estado contra Chávez, em Caracas, ocorreu em 11 de Abril de
2002. Acompanhou estes acontecimentos?
No dia 11 de Abril, por volta do meio-dia, quando eu vi que a
manifestação convocada pela oposição tinha sido
desviada pelos golpistas e se aproximava de Miraflores, compreendi de imediato
que acontecimentos graves estavam prestes a rebentar. Na verdade,
estávamos a assistir a essa marcha no canal Venezolana de
Televisión, que ainda transmitia. As provocações, os
tiros, as vítimas, tudo aconteceu muito rápido. Alguns minutos
depois, as transmissões do Venezolana de Televisión foram
interrompidas. As notícias começaram a chegar fragmentadas e por
diversas vias. Soubemos que oficiais superiores do Exército se tinham
pronunciado publicamente contra o presidente. Afirmava-se que o grupo
presidencial se tinha retirado e que o Exército ia atacar o
palácio de Miraflores. Personalidades venezuelanas telefonavam aos seus
amigos de Cuba para se despedirem, pois estavam prontos para resistir e para
morrer; falavam concretamente de imolação.
Durante essa tarde, estive reunido numa sala do palácio dos Congressos
com o Comité executivo do Conselho de Ministros. Depois do meio-dia,
tinha comigo uma delegação oficial do País Basco conduzida
pelo
Lehendakari,
que nós tínhamos convidado para almoçar, quando
ninguém imaginava o que se iria passar durante esse dia trágico.
Essa delegação foi testemunha dos acontecimentos entre as 13 e as
17 horas do dia 11 de Abril.
Desde muito cedo, durante a tarde, tentava falar com o presidente venezuelano
pelo telefone. Impossível! Finalmente, é o próprio
Chávez que liga, à meia-noite e trinta e oito minutos, já
na noite de 12 de Abril, portanto.
Pergunto-lhe o que se passa. Ele responde: "Nós
refugiámo-nos no palácio. Perdemos as forças militares com
poder de decisão. Os sinais de televisão foram retirados.
Não disponho de forças para utilizar e estou a analisar a
situação" Pergunto rapidamente:
"Que forças estão contigo?"
"Duzentos ou trezentos homens muito cansados."
"Tens tanques de guerra?"
"Não, eles levaram-nos para as suas casernas."
Eu pergunto: "De que outras forças podes dispor?"
Ele responde: "Existem outras, mas estão afastadas e não
tenho comunicação com elas".
Ele quer falar com general Baduel e os seus paraquedistas, a divisão
blindada e outras forças, mas infelizmente perdeu toda a
comunicação com essas unidades bolivarianas leais.
Eu digo-lhe com afabilidade: "Permites que eu te dê a minha
opinião?" "Sim", responde-me ele.
Então, eu continuo, no meu tom mais persuasivo: "Apresenta as
condições de um acordo honroso e digno, e preserva a vida dos
homens que tens contigo, que são os teus homens mais leais. Não
os sacrifiques, nem te sacrifiques a ti".
Ele responde, comovido: "Eles estão prontos para morrer aqui".
Sem perder um segundo, eu acrescento: "Eu sei, mas creio poder pensar com
mais serenidade do que tu neste momento. Não te demitas, exige
condições honrosas e garantias de que não serás
vítima de uma perfídia, penso que te deves preservar. E depois,
tens um dever para com os teus companheiros. Não te imoles!"
Eu estava consciente da profunda diferença que existia entre a
situação de Allende, em 11 de Setembro de 1973, e a de
Chávez, nesse dia 12 de Abril de 2002. Allende não tinha um
único soldado. Chávez podia contar com uma grande parte dos
soldados e dos oficiais da armada, principalmente os mais jovens.
"Não demissiones! Não te demitas!", reiterei.
Falámos de outras questões: o modo como eu achava que ele devia
abandonar provisoriamente o país, entrando em contacto com um militar
que tivesse realmente autoridade dentro das fileiras dos golpistas,
informá-lo da sua disposição em abandonar o país,
mas não se demitir nunca. De Cuba, nós trataríamos
mobilizar o corpo diplomático aqui e na Venezuela,
disponibilizaríamos dois aviões levando o nosso ministro das
Relações Exteriores e um grupo de diplomatas que o resgatariam.
Ele reflectiu alguns segundos e finalmente aceitou a minha proposta. Tudo
dependia agora do chefe militar inimigo.
José Vicente Rangel, na altura ministro da Defesa e actualmente
vice-presidente, afirma textualmente numa entrevista do livro
Chávez nuestro:
"O telefonema de Fidel foi decisivo para evitar a
imolação. Foi, de facto, determinante. O seu conselho
permitiu-nos ver melhor na obscuridade. Ele ajudou-nos muito".
Encorajou-o a resistir de armas na mão?
Não, pelo contrário. Foi o que fez Allende de forma correcta, na
minha opinião, em tais circunstâncias, tendo pago heroicamente com
a sua vida, como ele havia prometido.
Chávez tinha três soluções: refugiar-se dentro do
Miraflores e resistir até à morte; sair do palácio e
tentar reunir-se com o povo para desencadear uma resistência nacional,
com possibilidades de sucesso ínfimas naquelas circunstâncias; ou
abandonar o país sem renunciar nem se demitir com o intuito de retomar a
luta com perspectivas de sucesso reais e rápidas. Nós
sugerimos-lhe a terceira.
As minhas últimas palavras desta conversa telefónica, para o
convencer, foram essencialmente estas: "Salva esses homens corajosos que
estão contigo nessa batalha inútil, neste momento". A minha
ideia era que um dirigente tão popular e carismático como
Chávez, deposto por traição nestas circunstâncias,
se não fosse morto, seria reclamado pelo povo, estava convencido disso
nesse caso, com o apoio considerável das forças armadas
e o seu retorno seria inevitável. Eis a razão pela qual eu
tomei a responsabilidade de lhe propor o que propus.
Nesse momento preciso, uma vez que existia uma alternativa real: um regresso
vitorioso e rápido, as palavras de ordem "morrer combatendo",
como muito bem fez Salvador Allende, estavam fora de questão. E esse
regresso vitorioso foi exactamente o que aconteceu, todavia muito antes do que
eu podia imaginar.
Vocês, aqui, tentaram ajudar Chávez?
Bom, nesse momento, nós aqui só podíamos recorrer à
diplomacia. De madrugada, convocámos todos os embaixadores acreditados
de Havana e propusemos-lhes que acompanhassem Felipe [Pérez Roque], o
nosso ministro das Relações Exteriores, a Caracas para resgatar,
de modo pacífico, e são e salvo, Chávez o
presidente legítimo da Venezuela.
Eu não tinha a mínima dúvida de que Chávez estaria
rapidamente de volta aos ombros do povo e das tropas. Mas para isso
tínhamos de o proteger da morte.
Tínhamos proposto expedir dois aviões para o trazer para aqui,
caso os golpistas aceitassem a sua partida. Mas o chefe militar golpista
recusou essa solução, e informou-o que ele teria de passar por
conselho de guerra. Chávez vestiu o seu uniforme de paraquedista e,
acompanhado apenas pelo seu fiel adjunto, Jesus Suárez Chourio,
dirigiu-se para o forte Tiuna, que era o posto de comando do golpe de estado
militar.
Quando tornei a ligar-lhe duas horas mais tarde, como havíamos
combinado, Chávez já fora feito prisioneiro pelos militares
golpistas. Eu perdera toda a comunicação com ele. A
televisão não cessava de difundir a notícia de sua
"demissão" para desmobilizar os seus partidários e todo
o povo.
Algumas horas mais tarde, já no dia 12, em pleno dia, Chávez
consegue fazer um telefonema à sua filha María Gabriela. Ele
diz-lhe que não se demitiu e que é um "presidente
prisioneiro". Pede-lhe também para ela me contar o sucedido, para
que eu pudesse informar o mundo.
A filha dele telefona-me imediatamente, no dia 12, pelas 10 horas e 2 minutos,
e transmite-me o que lhe havia dito o pai. Eu pergunto-lhe de seguida:
"Estarias pronta para informar o mundo através das tuas
próprias palavras?" "O que é que eu não faria
pelo meu pai!" responde ela de modo preciso, admirável e decidido.
Sem perder um segundo, eu telefono a Randy Alonso, um jornalista que dirige a
"Mesa Redonda", um programa com muita audiência. De imediato,
de telefone e gravador na mão, Randy liga para o número de
telemóvel que María Gabriela me tinha dado. São quase
onze horas da manhã. Ele grava as palavras claras, comovidas e
convincentes que, depois de transcritas, foram enviadas para as agências
de imprensa acreditadas de Cuba, para serem transmitidas no jornal televisivo,
ao meio-dia e quarenta minutos, no dia 12 de Abril de 2002. Tínhamos
enviado também cópias da gravação para os canais de
notícias estrangeiras acreditados aqui; assim, enquanto a CNN, a partir
da Venezuela, transmitia, com deleite, as notícias de fontes golpistas,
a sua correspondente em Havana difundia, em contrapartida, ao meio-dia, a
mensagem esclarecedora de María Gabriela.
E quais foram as consequências?
Pois bem, a mensagem foi escutada por milhares de venezuelanos, que estavam
contra o golpe na sua grande maioria, e por militares fiéis a
Chávez que os golpistas tentavam enganar e paralisar mentindo-lhe sem
escrúpulos acerca da sua pretensa demissão.
À noite, pelas 23 horas e 15 minutos, María Gabriela telefona de
novo. A sua voz tem um tom trágico. Eu não a deixo terminar as
suas primeiras palavras e pergunto: "O que se passa?" Ela responde:
"O meu pai foi transferido durante a noite, por um helicóptero,
para um destino desconhecido". Eu digo: "Depressa, depressa, tens de
denunciar essa situação imediatamente!"
Randy estava a dar-me apoio, numa reunião sobre os programas da Batalha
de Ideias com os dirigentes das juventudes comunistas e de outras
organizações. Como ele tinha um gravador, a história do
meio-dia repetiu-se. E foi assim que nós informámos, de novo, a
opinião venezuelana e mundial da estranha transferência nocturna
de Chávez para um destino desconhecido. Isto passa-se na noite de 12
para 13 de Abril.
No sábado, dia 13, foi convocada uma Tribuna livre, logo cedo, em
Güira de Melena um município da grande periferia havanesa.
De volta ao meu escritório, antes das dez horas da manhã,
María Gabriela telefona de novo. Ela diz que "os pais de
Chávez estão inquietos", que eles querem falar comigo a
partir de Barinas, e fazer uma declaração.
Eu informo María Gabriela que segundo um despacho de uma agência
de imprensa internacional, Chávez foi transferido para Turiamo, um posto
naval em Aragua, na costa norte da Venezuela. Digo-lhe que, tendo em conta o
tipo de informação e o detalhe, a notícia devia ser
verdadeira. Peço-lhe que ela tente saber o mais possível sobre
isso. Ela acrescenta que o general Lucas Rincón, inspector-geral das
forças armadas, quer falar comigo e fazer, também ele, uma
declaração.
A mãe e o pai de Chávez telefonam-me: tudo decorre dentro da
normalidade no Estado de Barinas. A mãe de Chávez informa que o
chefe da guarnição militar acaba de falar com o seu marido, Hugo
de los Reyes Chávez, que por sua vez, é o governador de Barinas.
Esforço-me por os tranquilizar da melhor maneira possível.
O presidente da câmara de Sabaneta, local de nascimento de Chávez,
em Barinas, telefona-me também. Quer fazer uma
declaração. Diz-me que todas as guarnições
militares são leais. Deixava transparecer grande optimismo.
Falo com Lucas Rincón. Ele afirma que a brigada de paraquedistas, a
divisão blindada e a base de caças-bombardeiros F-16 estão
contra o golpe e prontos para entrar em acção. Eu arrisco
sugerir-lhe que faça todo o possível para encontrar uma
solução sem combates entre militares. Evidentemente, o golpe
tinha abortado. O inspector-geral já não tem tempo de fazer a sua
declaração, a comunicação interrompe-se e é
impossível restabelecê-la.
María Gabriela liga alguns minutos depois: diz-me que o general Baduel,
chefe da brigada dos paraquedistas, precisa de falar comigo e que as
forças leais de Maracay querem fazer uma declaração ao
povo venezuelano e à opinião internacional.
Uma vontade de saber insaciável leva-me a interrogar Baduel sobre
três ou quatro detalhes antes de continuar o diálogo. Ele
satisfaz a minha curiosidade correctamente: ele respira combatividade a cada
frase. Digo-lhe, então: "Está tudo pronto para a sua
declaração". Ele diz: "Espere um minuto, vou
passar-lhe o general de divisão Julio García Montoya,
secretário permanente do Conselho Nacional de Segurança e Defesa.
Ele veio apoiar a nossa posição". Este oficial, mais velho
que os jovens chefes militares de Maracay, no momento, não comandava
tropas.
Baduel, cuja brigada de pára-quedistas constituía um dos eixos
essenciais da poderosa força de tanques de guerra, de infantaria
blindada e de caças-bombardeiros estacionada em Maracay, no Estado de
Aragua, respeitador da hierarquia militar, passa-me, então, o general
Montoya. O que me diz este oficial superior é deveras inteligente,
convincente e adaptado à situação. No fundo, ele diz que
as forças armadas venezuelanas são fiéis à
Constituição. Estava tudo dito.
Tinha-me tornado uma espécie de repórter de imprensa que recebia
e transmitia notícias e mensagens públicas, utilizando apenas um
telemóvel, e um gravador nas mãos de Randy. Eu era testemunha do
formidável contra-ataque do povo e das forças amadas bolivarianas
da Venezuela.
A situação no momento era excelente. O golpe de estado de 11 de
Abril não tinha a menor possibilidade de sucesso. Mas um risco
terrível pesava ainda sobre esse país irmão. A vida de
Chávez corria sérios perigos. Capturado pelos golpistas,
Chávez era tudo o que restava à oligarquia e ao imperialismo da
aventura fascista. O que fariam eles? Iriam assassiná-lo? Iriam eles
satisfazer o seu ódio e sede de vingança nesse militante
bolivariano rebelde e audacioso, amigo dos pobres, defensor incansável
da dignidade e da soberania da Venezuela? O que iria acontecer se, como se
passou em Bogotá na sequência do assassínio de
Gaitán, o povo soubesse do assassinato de Chávez? Eu estava
obcecado pela ideia de uma tragédia semelhante e pelas suas
consequências sangrentas e destruidoras.
Depois dos telefonemas de que falei, à medida que a tarde
avançava, as notícias de indignação e de
rebelião populares chegavam-nos de todo o lado. Em Caracas, centro dos
acontecimentos, uma multidão de gente avançava pelas ruas e pelas
avenidas em direcção ao palácio de Miraflores e às
instalações centrais dos golpistas. Atormentado pelo desespero,
enquanto amigo e irmão do prisioneiro, senti-me invadido por uma vaga de
ideias. Que poderia eu fazer com o meu simples telemóvel? Estive
prestes a telefonar, por minha iniciativa, ao general Vázquez Velasco em
pessoa. Eu nunca tinha falado com ele e não sabia como ele era.
Ignorava se ele responderia sim ou não, e de que modo o faria. E nem
sequer podia contar com os preciosos serviços de María Gabriela
para esta missão singular. Reflecti melhor. Pelas 16 horas e 15
minutos, telefonei para o nosso embaixador na Venezuela, Germán
Sánchez. Perguntei-lhe se ele achava que Vázquez Velasco
responderia. Ele disse-me que talvez sim.
"Liga-lhe" pedi eu, cita o meu nome, diz-lhe da minha parte,
que um rio de sangue está prestes a correr na Venezuela, por causa do
que se está a passar. Que apenas um homem pode evitar esse risco: Hugo
Chávez. "Exorta-o a pô-lo em liberdade para que se possa
evitar o curso provável dos acontecimentos".
O general Vázquez Velasco atendeu a chamada. Afirmou que tinha
Chávez nas suas mãos e que garantia a sua vida, no entanto,
não podia ceder ao que lhe pediam. O nosso embaixador insistiu,
argumentou, tentou persuadi-lo. O general, furioso, acabou por desligar.
Telefono de imediato para María Gabriela e conto-lhe o que me disse
Vázquez Velasco, em particular o seu comprometimento em garantir a vida
de Chávez. Peço-lhe que ela me ponha em contacto com Baduel: o
que aconteceu às 16 horas e 49 minutos. Conto-lhe em detalhe a conversa
entre Germán e Vázquez Velasco. Digo-lhe o quanto foi importante
que Velasco tenha reconhecido ter Chávez nas suas mãos. Eram
circunstâncias propícias para exercer o máximo de
pressão sobre ele.
Nesse momento, não se sabia com certeza, em Cuba, se Chávez tinha
sido transferido ou não e para que lugar. Segundo rumores de muitas
horas atrás, o prisioneiro teria sido enviado para a ilha de Orchila.
Quando falo com Baduel, quase às cinco horas da tarde, o chefe da
brigada escolhia os seus homens e preparava os helicópteros encarregados
de salvar o presidente Chávez. Eu imagino até que ponto
não seria difícil para ele e para os seus paraquedistas obterem
informação precisa e exacta para uma missão tão
delicada.
Durante o resto do dia 13 de Abril, até à meia-noite, passei o
meu tempo a falar com quantas pessoas pude a propósito da vida de
Chávez. E consegui falar com tanta gente, porque, durante essa tarde, o
povo, com o apoio dos chefes e dos soldados da armada, esforçavam-se por
controlar tudo. Ainda hoje não sei a que horas nem de que maneira
Carmona
o Breve
abandonou o palácio de Miraflores. Sei que a escolta, sob a
direcção de Chourio, e de membros da guarda presidencial,
controlavam os pontos estratégicos do edifício, e que Rangel,
tendo permanecido firme durante todo o tempo, tinha voltado a ser ministro da
Defesa.
Cheguei mesmo a telefonar para Diosdado Cabello após a sua tomada de
posse da presidência. Como a comunicação foi interrompida
por razões técnicas, transmiti-lhe uma mensagem através de
Héctor Navarro, ministro do Ensino Superior, sugerindo-lhe que, na sua
condição de presidente constitucional, ordenasse a Vázquez
Velasco a libertação de Chávez, advertindo-o para a grave
responsabilidade em que ele incorria, caso não obedecesse.
Falei com praticamente toda a gente. Sentia-me participante desse drama no qual
o telefonema de María Gabriela me tinha envolvido na manhã de 12
de Abril. Não foi senão depois de ter conhecido todos os
detalhes do calvário de Hugo Chávez, desde que ele fora
transferido para destino desconhecido na noite de 11 de Abril, que pude
constatar quantos perigos inacreditáveis ele correu, e teve de combater
com toda a sua acuidade mental, a sua serenidade, o seu sangue-frio e o seu
instinto revolucionário. O mais inacreditável é que os
golpistas o tenham mantido desinformado, até ao último momento,
sobre o que se passava no país e que tenham insistido até ao fim
para que ele assinasse uma demissão que ele nunca assinou.
Um avião privado, dizem que pertencente a um oligarca conhecido, mas do
qual eu não digo o nome, porque não tenho a certeza, esperava
para o transportar não sei para onde e para as mãos não
sei de quem.
Contei-lhe tudo o que sei. Outras mãos escreverão, um dia, todos
os detalhes que ainda faltam a esta história.
Chávez é um representante dos militares progressistas. Mas na
Europa e também na América Latina, numerosos progressistas
criticam-no justamente por ele ser um soldado. O que é que pensa sobre
esta aparente contradição entre o progressista e o militar?
Omar Torrijos, do Panamá, foi um exemplo de militar com uma profunda
consciência da justiça social e da pátria. Juan Velasco
Alvarado, no Peru, realizou igualmente importantes acções de
progresso. Devo lembrar ainda, entre os brasileiros, Luís Carlos
Prestes, um oficial revolucionário que realizou uma marcha
heróica entre 1924 e 1926, quase semelhante à de Mao Tse-toung em
1943-1935. Jorge Amado, entre as suas magníficas obras
literárias, escreveu uma sobre essa marcha de Prestes, uma bela
história,
O Cavaleiro da Esperança.
Esta empresa militar foi verdadeiramente impressionante: durou mais de dois
anos e meio através da imensidão do seu país, sem conhecer
a mínima derrota.
Os militares deste último século, o XX, realizaram importantes
feitos revolucionários.
Pode-se citar também outros militares ilustres, como Lázaro
Cárdenas, um general da revolução mexicana que
nacionalizou o petróleo, fez reformas agrárias e conquistou o
apoio do seu povo.
Entre os primeiros a sublevarem-se, durante o século XX, na
América Central, está aquele grupo de militares guatemaltecos dos
anos 50 que, reunido em torno de Jacob Arbenz, um oficial superior da
Exército, participou em actividades revolucionárias
históricas. Um exemplo disso é a nobre e corajosa reforma
agrária que provocou a invasão mercenária, lançada
pelo imperialismo contra este governo, à semelhança da que
ocorreu em Playa Girón e pelas mesmas razões. Este é um
exemplo de governo que merece ser qualificado de progressista com toda a
legitimidade.
Existe um bom número de militares progressistas. Juan Domingo
Perón, na Argentina, também era de origem militar. Note-se o
momento em que ele aparece: em 1943, é nomeado ministro do Trabalho e
promulga leis tão favoráveis aos trabalhadores que, em sinal de
reconhecimento, quando ele é preso, estes libertam-no.
No entanto, Perón comete erros: ao ofender a oligarquia, humilhando-a,
nacionalizando o seu teatro e outros símbolos da classe rica, deixa
intacto o seu poder político e económico, e num momento
propício, esta derruba-o com a cumplicidade dos Estados Unidos. A
grandeza de Perón está no facto de ele ter feito um apelo
às reservas e aos recursos de que dispunha este país rico e de
ter feito os possíveis para melhorar as condições de vida
dos trabalhadores. Esta classe social, sempre grata e fiel, converteu
Péron até ao final da sua vida num ídolo do povo.
O general Líber Seregni, que até há poucos anos era
presidente da Frente Ampla no Uruguai, é um dos dirigentes mais
progressistas e mais respeitados que a América Latina já
conheceu. A sua integridade, a sua decência, a sua firmeza e a sua
tenacidade contribuíram para a vitória deste povo nobre e
solidário que elegeu Tabaré Vázquez, seu sucessor, para a
presidência do país e que conduziu a esquerda ao governo, quando o
país estava à beira do abismo. Cuba agradece a Líber
Seregni ter sabido forjar, com o apoio de numerosos uruguaios eminentes, bases
sólidas para as relações fraternais e solidárias
que existem actualmente entre o Uruguai e Cuba.
Não temos o direito de esquecer Francisco Caamaño, esse jovem
militar dominicano que combateu heroicamente, durante meses, contra os 40 mil
soldados que o presidente Jonhson ordenou que desembarcassem na
República Dominicana em 1965, para impedirem o regresso do presidente
constitucional, Juan Bosch. A sua resistência tenaz aos invasores,
à cabeça de um grupo de militares e de civis, que durou meses,
constitui um dos episódios revolucionários mais gloriosos
inscritos neste continente. Caamaño, depois de ter arrancado uma
trégua ao Império, regressou à sua pátria e deu a
sua vida lutando pela libertação do seu povo.
Sem alguém como Hugo Chávez, nascido num berço modesto e
formado pela disciplina das escolas militares do seu país, a Venezuela,
onde Bolívar semeou tantas ideias de liberdade, de unidade e de
integração latino-americana, um fenómeno de uma
importância histórica e internacional tão capital como a
Revolução neste país irmão não se teria dado
neste momento decisivo da nossa América.
Não, não vejo a menor contradição.
Declarações recolhidas por Ignacio Ramonet.
O original encontra-se em
http://www.legrandsoir.info/article.php3?id_article=4104
Tradução de Rita Maia.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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