"A crise do imperialismo é a oportunidade da América
Latina"
entrevista de Ricardo Alarcón
[*]
BF - Como avalia o processo da revolução bolivariana?
Diferentemente do que aconteceu em Cuba, não foram feitas
mudanças na estrutura da propriedade privada na Venezuela. No entanto,
houve mudanças sociais significativas. Podemos dizer que o país
está vivendo um processo revolucionário?
Alarcón -
Sim, penso que sim. Uma revolução autêntica não
pode ser idêntica às outras que já foram feitas. Acredito
que esse é um dos ensinamentos mais importantes que o movimento
revolucionário deve tirar das experiências do século XX. A
tentativa de copiar um modelo não dá certo. Por exemplo, a Europa
Oriental seguiu mais ou menos o padrão da União Soviética,
e vimos como isso acabou sendo um castigo para eles. Sem dúvida, a
revolução cubana só não desapareceu porque ela foi
autêntica, não foi importada da União Soviética.
Cada processo tem que se explicar segundo as suas condições, suas
especificidades. No caso cubano, por exemplo, o que se pode chamar de burguesia
era um setor muito pequeno, débil economicamente, muito atado ao capital
estadunidense. Os Estados Unidos intervieram quatro vezes em Cuba, chegaram a
ocupá-la com forças militares e tudo. Com a
revolução, esta burguesia saiu do país atemorizada, pois
tinha certeza de que as tropas estadunidenses iam intervir mais uma vez. Mas
isso foi há 47 anos.
BF - E na Venezuela, como isso aconteceu?
Alarcón -
Na Venezuela, há uma burguesia muito mais forte em
comparação com a que havia em Cuba. E continua aqui. Eles
têm seus partidos, meios de comunicação e tratam de se opor
à revolução internamente. Esse é um dado que tem de
se levar em conta. No nosso caso, por exemplo, houve muitas
nacionalizações. O Estado tomou posse de algumas empresas, que
foram abandonadas por seus donos, que deixaram o país por acreditarem
que aquele governo duraria muito pouco. Ou seja, não dissemos
"vamos nacionalizar tudo". Há uma grande parte das terras da
reforma agrária em Cuba que eram áreas abandonadas por seus
donos. Creio que aqui há uma revolução em curso que segue
por um caminho diferente do nosso. E não tem por que ser igual. Deve ser
diferente. Deve ser próprio e venezuelano.
BF - Mas quais são os pontos caracterizam esse processo como
revolucionário?
Alarcón -
Houve mudanças importantes, como a alfabetização, o
desenvolvimento dos programas sociais. Colocou-se fim a uma casta
política que foi tirada do jogo na prática. Foram criadas
condições e dados passos para que o povo possa exercer seus
direitos democráticos de uma maneira que nunca pôde, por meio dos
programas de educação, de saúde. Essas coisas não
mudam a estrutura básica da sociedade, mas criam condições
para que isso possa acontecer e para que o povo possa exercer a democracia, a
autoridade, e ser capaz de governar a si mesmo. Creio que isso é um
feito revolucionário. Os momentos, os ritmos que se dão os
processos revolucionários não têm que ser iguais. Por
exemplo, se tivéssemos tido a oportunidade de fazer a reforma
agrária cubana de um outro jeito, teríamos feito.
BF - Mesmo que o modelo cubano não possa ser copiado na Venezuela, pois
são tempos históricos diferentes, alguns críticos dizem
que o que está acontecendo aqui não é uma
revolução, e sim uma reforma, visto que, como o senhor disse, a
burguesia saiu de Cuba, mas continua na Venezuela.
Alarcón -
Isso é um ponto importante. Não acredito que para um processo
histórico ganhar o título de ser revolucionário tenha que
corresponder a alguns manuais. Em uma primeira instância, uma
revolução significa a emancipação das pessoas, das
massas para que se coloque fim à exploração. Por onde isso
começa, como se faz e com que ritmo, varia. Por exemplo, um
revolucionário pode tomar o poder em um dado momento e não fazer
a revolução. O Partido Comunista cubano, por exemplo, não
se propunha o socialismo. Não o via como uma tarefa imediata, havia uma
aspiração a longo prazo. E isso não era apenas uma
característica do partido cubano, isso se passava em vários
países, pois se acreditava que não havia as
condições para se chegar naquele sistema. Não se pode
dizer arbitrariamente, "vou proclamar o socialismo, vou fazer o que me der
vontade". Isso tem que ser feito em sintonia com as pessoas, as massas.
Agora, no caso da Venezuela, se não há uma
revolução, se não se mudou nada, por que a burguesia e o
imperialismo estão contra? Porque não são bobos, sabem que
por aí vem algo que mudará definitivamente a sociedade
venezuelana, pois é uma revolução.
BF - Após a queda da União Soviética e do fortalecimento
do bloqueio dos Estados Unidos, a economia cubana entrou em crise. Hoje, o
país está vivendo um novo período na economia, com um
crescimento de cerca de 11% no ano passado. Essa é uma nova etapa da
revolução?
Alarcón -
Sim, mas seria um erro superestimá-la. Cuba conseguiu sair da crise
econômica em que caímos quando desapareceu a União
Soviética, mas não podemos dizer que a superou completamente. Mas
o que explica isso? Uma série de fatores e muitos são
inteiramente cubanos, como o setor turístico que cresceu cerca de 13%,
por exemplo. O mais importante é que Cuba conseguiu aumentar sua
produção petroleira- algo muito signifi cativo. Passamos muitos
anos buscando isso e hoje temos associação com algumas empresas
estrangeiras, do Canadá e da Europa. Fomos encontrando cada vez mais
petróleo, e a produção foi crescendo substancialmente.
Outra é a produção de níquel, que atingiu recordes
nos últimos anos. Esse é um dado cubano, não tem nada a
ver com os vínculos externos. Externamente, temos que falar da
vinculação econômica com a República Popular
Chinesa, com quem firmamos créditos a longo prazo, sem juros, o que
ajudou a oxigenar a economia cubana. Com a Venezuela há acordos que
envolvem petróleo.
BF - E quais foram as conseqüências do bloqueio econômico dos
Estados Unidos?
Alarcón -
O desaparecimento da URSS e o recrudescimento do bloqueio dos EUA nos ajudaram
a acumular uma experiência que nenhum outro povo tem. Nenhum outro povo
viveu meio século sob bloqueio dos EUA. Nós sabemos como resistir
e como se pode buscar vias para enfrentá-lo. Uma delas é
economizar. Os cubanos têm uma capacidade de economizar que outros povos
não têm. Nós nos acostumamos há muito tempo a
reparar, a cuidar, a preparar. Outro ponto importante é o
desenvolvimento da indústria biotecnologica e farmacêutica. Pouco
a pouco, esse setor foi crescendo e agora Cuba exporta medicamentos, produtos
tecnológicos, instrumentos médicos. Exportamos vacinas que
não há em nenhum lugar do mundo. A economia cubana foi se
transformando de um país agroexportador, que vendia
açúcar, tabaco, rum e pesca. Continuamos produzindo e vendendo
esses produtos mas passamos a ser uma economia de bens de
serviço.
Temos dezenas de milhares de cientistas, pesquisadores. Alcançamos um
grau de desenvolvimento que não é o mesmo o que tínhamos
quando começamos a revolução. Isso também unindo a
outros esforços em matéria de organização, de uso
mais racional dos recursos. E isso explica como a economia cubana se recuperou.
Quando caiu a URSS, as conseqüências para nós foram
terríveis. Tudo foi cortado em cerca de 35%, da noite para a
manhã. Nesse momento recrudesceu o bloqueio e ironicamente podemos
dizer que um dia vamos agradecer isso que se passou com os cubanos. Imagine se
dependêssemos a vida toda da exportação de petróleo
da URSS a baixos preços em troca da nossa produção de
açúcar. Esse não é o caminho para o desenvolvimento
de Cuba. O caminho certo é o que estamos seguindo agora. Mas é um
caminho difícil, especialmente se não tivéssemos sofrido
esse golpe.
BF - Nas palestras que fez durante o Fórum Social Mundial o senhor falou
na crise do imperialismo. Que crise é essa?
Alarcón -
O imperialismo está enfraquecendo, principalmente
devido à falta de apoio da população estadunidense ao
governo Bush e às suas políticas antiterroristas. Onde
estão os estadunidenses que engrossam as filas daqueles que querem ir
para a Guerra do Iraque, combater o terrorismo, o eixo do mal? O governo dos
EUA está pagando soldados para ir para o Oriente Médio. Isso
lembra o Império Romano, em sua etapa final, quando teve início
sua decadência. Nesse momento, os Estados Unidos são a
única potência nuclear do mundo e podem atacar a qualquer
país, como fizeram com o Iraque. Mas a tragédia para os EUA
é que podem vencer militarmente, mas não podem governar o mundo.
O ponto de partida dos neoconservadores que hoje governam os EUA é
precisamente esse: querem reverter a tendência, o curso da
História, de cima para baixo. Eu não digo que possam vir a ser um
país miserável, porque militarmente continuam sendo muito
poderosos.
Mas o grande problema é: de onde vão tirar os soldados? O
império está enfraquecendo, mas ainda assim os povos da
América Latina têm que lutar.
BF - Hoje vemos um crescimento de governos progressistas na América
Latina. Como as organizações populares e novos governos podem se
unir para enfrentar o imperialismo que vive esse momento de crise?
Alarcón -
Há dois processos de transcendência histórica nesse
momento, na Venezuela e na Bolívia. Uma estratégia importante
seria apoiar esses novos processos que surgem na América Latina e que
enfrentam abertamente o governo dos EUA, para que se possa reunir forças
na luta contra o imperialismo. Por outro lado, os movimentos sociais precisam
ser sensíveis aos sentimentos do povo, da sociedade e à
necessidade de resistir à hegemonia estadunidense no campo
internacional. Pelo menos nisso estamos avançando. Claro que com as
diferenças. Nós falamos de governos populares, progressistas, de
esquerda, mas somos diferentes. E acho que assim que deve ser. Esperar que
todos pensem da mesma maneira seria dogmatismo. O ideal é que seja o
oposto; deve ser somar, incorporar. O que tem que existir, o mínimo em
cada uma das muitas forças sociais nos muitos governos, é a
defesa da independência, da soberania, da integração
latinoamericana. Para mim, o símbolo está em Mar del Plata,
quando houve grandes manifestações nas ruas, grandes
conferências dos povos contra a Área de Livre Comércio das
Américas (Alca).
BF - Outro tema bastante discutido durante o Fórum Social Mundial foi a
integração da América Latina. Como isso pode ser feito, na
prática?
Alarcón -
Há acordos muito importantes, como o firmado entre os governos do
Brasil, Venezuela e Argentina, sobre o gás. Esse é um exemplo.
Outro é a comunicação territorial com o Peru. Será
a primeira vez que vocês vão chegar ao Pacífico pela terra,
via Peru. Se não há integração física
é muito difícil. Fala-se muito na integração da
América Latina, mas a pergunta é: como se integrar se não
há comunicação física? Houve avanços nisso.
Veja as iniciativas de Chávez: Petrocaribe, Petrosul (iniciativas para
integrar as estatais petrolíferas da região). São coisas
que estiveram avançando pouco a pouco, mas que têm a ver
também com as mudanças políticas. Não havia como
conceber isso anteriormente com a Bolívia, por exemplo, que tem um papel
importante, com a crise que passava. A Telesul (rede de televisão
lançada por Venezuela, Cuba, Argentina e Uruguai) é um exemplo
concreto da necessidade de integração. É um projeto de
vários países latino-americanos para construir uma alternativa
que rompa o monopólio. O grande problema do mundo de hoje é a
informação, de acordo com Noam Chomsky. O lingüista disse
que é necessário atravessar as nuvens da distorção
e do engano para poder apreciar a verdade do mundo, da realidade objetiva, para
a partir daí poder organizar-se para mudar. Os movimentos sociais
têm um papel fundamental em tudo isso, na educação das
pessoas. De mobilização para criar consciência para
combater o dano que faz o controle midiático cuja hegemonia segue sendo,
repito, o controle estadunidense. Isso lhe permite a distorção e
o engano com o objetivo de neutralizar e ganhar. Mas com a luta dos movimentos
sociais é possível se chegar a mudar governos, e aí
está a vitória de Evo Morales como prova.
BF - Há um crescimento de bases militares na América Latina. Como
o senhor vê isso e de que maneira os governos da América Latina
deveriam se posicionar quanto à questão?
Alarcón -
Este é um dos temas que mais foi discutido durante o Fórum, as
bases militares e a militarização na América Latina. Os
EUA são o único país que tem bases militares neste
continente. É a única potência nuclear também, a
única nação que tem tropas suas em outros países.
Claro, há a exceção lamentável das tropas
latino-americanas que estão no Haiti, mas na verdade esses militares
estão fazendo o trabalho dos EUA, encobertos pela Nações
Unidas. Os EUA são a única potência que tem navios
militares e aviões que se movem por essa área. É o
único país que está realizando constantemente
exercícios e ensaios militares em várias áreas. A
sociedade civil precisa se mobilizar para exigir dos governos de suas
regiões uma postura mais rígida no trato com a questão da
militarização. É uma questão de soberania.
Já os movimentos sociais devem educar a população com o
objetivo de eliminar todas as bases militares dos Estados Unidos na
América Latina. A começar por uma luta conjunta pela
independência de Porto Rico. De todas as nações
latino-americanas, são os únicos que ainda são
colônias deles. Lá há um movimento de massas
amplíssimo em Porto Rico contra as bases militares estadunidenses. Como
no restante da América Latina não podem haver movimentos ao menos
parecidos com o de Porto Rico, com relação às bases que
têm aqui e ali em seu território? Elas são muito perigosas,
porque ninguém estabelece uma base por nada. A pergunta final desse tema
é por que os Estados Unidos utilizam essas estratégias? Para
eles, a corrida armamentista ainda não terminou. A única
diferença é que agora correm sozinhos.
BF - Com qual objetivo?
Alarcón -
Não é uma coincidência que os Estados Unidos tenham bases
militares no continente onde há dois aqüíferos
importantíssimos. Há um relatório da CIA de 2000, que pode
ser
encontrado na página da agência na Internet, intitulado
"Tendências Globais para o ano 2020". Neste relatório, a
CIA diz
que para o ano de 2020 o problema mais importante do mundo será a
água, e não os conflitos étnicos e militares. Os problemas
entre palestinos e Israel não serão nada comparados a esse
problema. Haverá uma zona que vai do norte da África até o
centro da Ásia onde vão viver milhares de milhões de
pessoas sem
água. Neste relatório, a CIA também explica que há
empresas
privadas que estão se dedicando a adquirir terras, onde não
há minerais, onde não se pode cultivar nada, mas que sabem que
há água embaixo. Este é um dos temas mais importantes -
segundo eles e que está ligado aos recursos naturais, que
são
nossos. Esse é outro tema que se tem de se continuar explorando e
denunciando.
BF - E como está o caso de Luis Posada Carriles?
Alarcón -
A Venezuela o reclama há mais de 20 anos. Sem extraditá-lo, os
EUA desrespeitam a soberania da Venezuela. Haveria duas opções
para que os EUA lidassem dignamente com a questão. Sua
extradição é uma delas; outra seria julgá-lo no
próprio EUA. Mas não é isso que eles querem fazer. A
idéia é enviá-lo para outro país, com a
intenção de escondê-lo. Isso é uma
infração grave contra o povo venezuelano.
[*]
Presidente da Assembléia Nacional do Poder Popular do parlamento cubano
desde 1993, especialista em problemas norte-americanos. Ricardo Alarcón
de Quesada foi chefe da missão cubana na ONU e viveu 14 anos em Nova
York.
O original encontra-se no semanário
Brasil de Fato
, nº 153, 02/Fevereiro/2006. A entrevista foi feita em Caracas,
durante o Fórum Social Mundial, por Tatiana Merlino e Mariana Tamari.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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