A "reforma" da Administração Pública

  • Exemplo de um comportamento do governo que não é o de uma pessoa de bem
  • por Eugénio Rosa [*]

    RESUMO DESTE ESTUDO

    Uma das características que rege o comportamento de "uma pessoa de bem" é respeitar os compromissos e os contratos acordados não procurando alterá-los unilateralmente. Esse não tem sido o comportamento do actual governo, o que tem elevado a uma insegurança geral nos trabalhadores da Administração Pública e tratamento desiguais entre funcionários públicos e trabalhadores do sector privado.

    Pouco dias tinham passado um ano após a publicação da Lei 60/2005 que alterou o Estatuto da Aposentação, e o governo apresentou uma nova proposta de lei que visa alterar o que consta daquela lei, nem respeitando o chamado período de transição que devia vigorar até, pelo menos, 2015. E essas alterações são a aplicação, já a partir do inicio do próximo ano, do chamado "factor de sustentabilidade" que determinará, segundo os dado do governo, uma redução de 5% na pensão em cada período de 10 anos a contar do inicio de 2008, e actualizações das pensões de aposentação inferiores à taxa de inflação, com excepção das pensões inferiores a 1,5 IAS. Para além disso, trata de uma forma desigual os trabalhadores da Administração Pública em relação aos do sector privado. De acordo com o Decreto-Lei que o governo acabou de aprovar, no sector privado, por cada 3 de serviço para além dos 30 anos de serviço o trabalhador desconta na idade legal de reforma um ano, enquanto na Administração Pública é só a partir da carreira contributiva exigida (36,5 anos em 2007; 37 anos em 2008; e assim sucessivamente até atingir a carreira de 40 anos de serviço exigidos). Por ex., em 2015, um trabalhador do sector privado com 40 anos de serviço poderá reformar-se com 62 anos com pensão completa, enquanto um trabalhador da Administração Pública, nas mesmas condições, sofrerá uma redução de 18% na sua pensão.

    O governo, através da CGA, também não está a cumprir o Estatuto de Aposentação em vigor. De acordo com o nº3 do artº 37-A " a taxa global de redução da pensão é o produto da taxa anual de 4,5% pelo número de anos de antecipação em relação à idade legalmente exigida para aposentação". No entanto, se por culpa dos serviços ou da CGA, um trabalhador que meteu os papeis para aposentação num ano, e o processo transitar para o ano seguinte, a CGA aplica uma penalização na pensão, reduzindo-a, em 4,5%.

    O governo pretende introduzir na Administração Pública um novo processo para despedir trabalhadores mesmo com vinculo público. Assim, de acordo com a proposta do governo, se um trabalhador em dois anos consecutivos tiver avaliações negativas, esse facto determinará a instauração de um processo disciplinar que poderá levar ao despedimento do trabalhador. Sabendo que a avaliação tem muito de subjectivo, nomeadamente do chefe, o que o governo pretende é introduzir um instrumento de terror e de chantagem, que levará a uma maior fragilização daquela, e à sua fácil submissão a interesses partidários e outros. É evidente que, a concretizar-se, constituirá um precedente grave que os patrões privados também vão exigir para poder despedir mais facilmente, uma coisa que tem sempre reivindicado.

    O governo pretende alterar o vinculo publico mesmo dos trabalhadores que já estão na Administração e que têm aquele vinculo. Apenas manterão o vinculo público os trabalhadores que estejam em funções relacionadas com o exercício de poderes soberanos ou de autoridade, que apenas são os "de administração directa da justiça, de defesa externa, de representação externa, de segurança pública, de informações de segurança, de investigação criminal e de inspecção. Todos os restantes, que são a esmagadora maioria, passarão a ser abrangidos pelo regime de Contrato de Trabalho da Administração Pública (CTAP). Portanto, é clara violação do contrato que o Estado tinha com esses trabalhadores acordado na data de entrada., sendo apenas salvaguardada "o actual regime em matéria de cessação de vinculação, de mobilidade especial e de protecção social". Tudo o resto, como seja horário de trabalho, regime de férias e feriados, doença, etc., "pode ir à vida".

    Para além disso, o governo pretende reduzir o número de carreiras e aplicar um critério de atribuição da nova carreira e da nova categoria que poderá levar ao congelamento dos vencimento por vários anos. E esse critério é o seguinte: "será "efectuada na posição e nível remuneratórios cujo montante seja o imediatamente inferior, na carreira ou categoria em causa, àquele que é o auferido pelo trabalhador, sendo certo que, até igualar ou superar não vê a sua remuneração diminuída". Mas poderá também não ver aumentada. Recorde-se o que sucedeu com as pensões de aposentação".

    Um característica fundamental que define o comportamento de uma "pessoa de bem" é o respeito pelos compromissos assumidos e contratos assinados. E esta característica tem ainda um peso maior relativamente a um governo, pois as suas decisões podem ou mesmo afectam a vida de centenas quando não mesmo de milhões de pessoas. E o comportamento deste governo de Sócrates em relação aos trabalhadores da Administração Pública, e não só, é o contrário daquilo que deve caracterizar o comportamento de uma pessoa de bem como vamos mostrar.

    NOVA ALTERAÇÃO EM 2007 PARA PIOR NO ESTATUTO DE APOSENTAÇÃO

    Em 2005, com base num simulacro de negociações com os sindicatos, o governo impôs alterações importantes no Estatuto da Aposentação dos trabalhadores que já estavam na Administração Pública (cerca de 450.000), portanto alterando unilateralmente as condições em que tinham sido contratados, o que vai determinar, por um lado, carreiras muito mais longas e, por outro lado, valores de pensões mais baixos. De acordo com estudos que elaboramos, pois o governo não entregou qualquer estudo aos sindicatos para fundamentar a sua proposta (o que mostra também a forma como este governo considera e trata as pessoas), 57,5%, ou seja, 258.750 trabalhadores para terem a pensão completa terão de ter mais de 40 anos de serviço; 27,6% , ou seja, 124.200, terão de trabalhar para além dos 65 anos e, os restantes, terão de se aposentar com uma pensão incompleta porque para obterem a completa teriam de trabalhar para além dos 70 anos de idade, o que é proibido por lei.

    Poucos dias depois ter passado um ano após a publicação da Lei 60/2005, que introduziu aquelas alterações no Estatuto de Aposentação, o governo apresentou em Fevereiro de 2007 aos sindicatos um outro projecto de lei que visa introduzir novas alterações no Estatuto da Aposentação, criando de novo a insegurança generalizada. Esse projecto tem como objectivo introduzir o chamado "factor de sustentabilidade do governo" também na Administração Pública já do inicio do próximo ano, o que determinará uma redução média na pensão dos futuros aposentados que estimamos em 5% por cada período de 10 anos a contar do inicio de 2008, de acordo com os próprios dados do governo.

    O GOVERNO TEM TRATAMENTOS DESIGUAIS, TORNANDO A PENALIZAÇÃO NAS REFORMAS ANTECIPADAS MAIS GRAVOSA PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

    Para além da introdução do factor de sustentabilidade, o governo pretende aumentar a penalização por aposentação antecipada. E de acordo com o texto da 1ª proposta era já a partir de 2008. Depois da pressão dos sindicatos o governo recuou, fixando o inicio em 2015. No entanto, pretende aplicar um tratamento desigual em relação aos trabalhadores do sector privado, tornando a antecipação da aposentação muito mais gravosa para os trabalhadores da Administração Pública.

    O governo fala muito em convergência entre os trabalhadores da Administração Pública e os do sector privado, mas a convergência serve apenas para retirar ou reduzir direitos dos funcionários públicos, recusando-se a conceder aquilo que é mais favorável que tem o sector privado.

    No projecto de Lei que o governo apresentou aos sindicatos o governo tenciona, a partir de 2015, que é o fim do chamado período transitório para grande numero de trabalhadores da Administração Pública, mas não para todos (o período transitório constante da Lei 60/2005, para os chamados corpos especiais, prolonga-se para além de 2015); repetindo, de acordo com a proposta de lei, o governo pretende aumentar a penalização nas aposentações antecipadas dos actuais 4,5% por cada ano de idade a menos para 6%. Mas contrariamente ao que aprovou para o sector privado, a redução num ano na idade de reforma por cada 3 anos de serviço conta-se a partir dos 40 anos de serviço, e não a partir dos 30 anos de serviço como é no sector privado.

    Um exemplo imaginado, que poderá ser real, tornará claro as consequências deste tratamento desigual. Suponha-se um trabalhador do sector privado e um da Administração Pública, que se reformam em 2015, ambos com 40 anos de serviço. O trabalhador do sector privado poderá reformar-se com 62 anos de idade com a pensão completa, enquanto o da Administração Pública sofrerá uma redução (penalização) de 18% na sua pensão. E a razão é que o trabalhador do sector privado desconta por cada 3 anos de serviço que tenha a mais de 30 anos de serviço um ano na idade legal de reforma. Como tem mais 10 para além dos 30 anos de serviço (40-30=10), logo tem 3 grupos de 3 anos completo, portanto tem o direito a descontar 3 anos na idade de reforma, o que dá precisamente 62 anos. O trabalhador da Administração Pública, como só contam os anos de serviço a mais para além dos 40 anos, e como não tem nenhum, não tem o direito de descontar seja o que for, logo terá um redução na sua pensão correspondente a diferença em relação aos 65 anos, ou seja, de 18% (65-62= 3 ; 3 x 6% =18%) Tudo isto consta do nº5 do artº 36 do Decreto Lei que o governo acabou de aprovar para o sector privado, e do nº 3 do artº 3 da Proposta de Lei que visa alterar mais uma vez o Estatuto de Aposentação que o governo apresentou aos sindicatos da Função Pública.

    Durante uma reunião com o governo perguntamos directamente ao Secretário de Estado do Orçamento qual era a razão deste tratamento desigual. Primeiro teve um reacção de atrapalhação como desconhecesse a diferença, e depois veio com a insólita resposta de que o governo não podia alterar novamente a Lei 60/2005, quando a proposta que tinha apresentado aos sindicatos visava precisamente altera essa lei.

    Para além do que foi já analisado, a proposta de lei do governo contém outra norma que cria também desigualdades entre os trabalhadores da Administração Pública e os do sector privado. E esse tratamento desigual é relativo à actualização das pensões, que nem garante a manutenção do poder de compra das pensões. Como consta do artº 5º da proposta de lei do governo, mesmo as normas de actualização que se aplicam aos trabalhadores do sector privado só se aplicarão a Administração Pública se existir disponibilidades orçamentais, com excepção apenas das pensões inferiores a 1,5 IAS, que corresponde, em 2007, às pensões inferiores a 596,8 euros. E isso permitirá ao governo continuar aumentar as pensões da esmagadora maioria dos aposentados num percentagem inferior à taxa de inflação.

    O NÃO CUMPRIMENTO DA LEI DA APOSENTAÇÃO EM VIGOR PENALIZANDO AINDA MAIS OS TRABALHADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

    De acordo com o nº3 do artº 37-A do Estatuto da Aposentação que está em vigor, " a taxa global de redução da pensão é o produto da taxa anual de 4,5% pelo número de anos de antecipação em relação à idade legalmente exigida para aposentação". Portanto, a lei é clara: a redução na pensão é de 4,5% por cada ano completo a menos da idade legal. O que está a fazer a CGA? O contrário. Por ex., um trabalhador que, em 2007, por ter a idade e o tempo de serviço para não ser penalizado, mete nos serviços antes do fim de 2007 os papeis para se aposentar. Se por culpa dos serviços ou da CGA os papeis só entrarem em 2008, a partir de 1 de Janeiro de 2008 a idade de aposentação aumenta meio ano, e então a CGA desconta na pensão do trabalhador o correspondente à penalização por um ano completo (4,5%). E isto apesar do trabalhador ter apenas poucos dias a menos, e mesmo esses dias a menos, em muitas situações, não são da sua responsabilidade. E tudo isto apesar da lei estabelecer que a redução de 4,5% na pensão é por cada ano completo a menos na idade. Com este governo, tudo é aproveitado também para penalizar ainda mais os trabalhadores com a justificação do défice.

    O DESPEDIMENTO COM BASE EM DUAS AVALIAÇÕES NEGATIVAS:
    uma ajuda dada pelo governo ao patronato privado que em breve poderá exigir o mesmo


    No ponto 18 do documento entregue pelo governo aos sindicatos consta expressamente o seguinte: " No regime de nomeação introduzir-se-ão alterações em matéria de cessação da vinculação ….. a cessação por insuficiência de desempenho, revelada na atribuição de avaliações negativas em dois anos consecutivos que, mediante verificação em processo disciplinar, consubstanciem violação grave e reiterada de deveres".

    Se aquele principio for introduzido na lei – a cessação do contrato de trabalho mesmo com vinculo público devido a duas avaliações negativas – ele passará a constituir motivo para instauração de um processo disciplinar que poderá levar ao despedimento do trabalhador sem direito a qualquer indemnização. Como as avaliações tem sempre muito de subjectivismo, nomeadamente do chefe, introduz-se assim na Administração Pública um instrumento de terror e de chantagem, que abre a porta ainda a maiores influencias do cartão do partido no poder e a outras pressões, fragilizando ainda mais a Administração Pública e pondo-a ao serviço de interesses que não são públicos.

    Para além disso, esta novo processo para despedir, a ser introduzido na lei, acabará também por ser reivindicado pelo patronato privado, pois uma das coisas que tem mais se queixado é precisamente o não poderem despedir livremente( a rigidez das leis do trabalho que tanto falam).

    AS ALTERAÇÕES QUE O GOVERNO PRETENDE IMPOR UNILATERALMENTE AOS TRABALHADORES QUE JÁ ESTÃO NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

    De acordo com o ponto 52 do documento do governo, apenas manterão o vinculo públicos os trabalhadores que estão na Administração Pública que estejam em funções relacionadas com o exercício de poderes soberanos ou de autoridade, que são apenas os "de administração directa da justiça, de defesa externa, de representação externa, de segurança pública, de informações de segurança, de investigação criminal e de inspecção". Todos os restantes que estão na Administração Pública, mesmo com vinculo público, passarão a ser abrangidos pelo regime de Contrato de Trabalho da Administração Pública (CTAP) . A estes últimos com vinculo público, o governo apenas garante "salvaguardar o actual regime em matéria de cessação de vinculação, de mobilidade especial e de protecção social". Tudo o resto, como seja horário de trabalho, regime de férias e feriados, doença, etc., "poderá ir à vida".

    Por outro lado, o governo pretende reduzir o número de carreiras. E depois integrar os trabalhadores em carreiras profissionais "de conteúdos profissionais mais abrangentes e de idêntico nível habilitacional" . Portanto, um caminho para uma maior polivalência cuja dimensão só se poderá avaliar quando o governo apresentar as propostas concretas. Para além disso, a colocação dos trabalhadores nas novas carreiras ou categorias será "efectuada na posição e nível remuneratórios cujo montante seja o imediatamente inferior, na carreira ou categoria em causa, àquele que é o auferido pelo trabalhador" (ponto 54 do documento do governo), portanto diferentemente (para pior) do que vigora actualmente. E embora acrescente que "até o igualar ou superar , o trabalhador não vê a sua remuneração diminuída", no entanto não esclarece se até ao "igualar" a sua remuneração será actualizada, parecendo dizer o contrário. Pode-se estar aqui perante a mesma situação que sofreram os aposentados da Administração Pública durante os muitos anos que tiveram de esperar que o valor das pensões dos trabalhadores com idêntica categoria que se aposentaram depois deles igualizassem os valores das suas pensões, portanto um congelamento efectivo dos vencimentos.

    O VÍNCULO PÚBLICO COMO CONDIÇÃO DE GARANTIA DE INDEPENDENCIA PARA A PRESTAÇÃO DE UM SERVIÇO PÚBLICO

    Neste momento verifica-se um ataque violento ao vinculo público, como ele fosse a causa das ineficiências verificadas na Administração Pública Portuguesa, apresentando-se o contrato individual de trabalho como a "solução moderna e necessária". Esta campanha faz lembrar a campanha contra a gestão pública, que seria, por definição, má, enquanto a gestão privada seria sempre boa. A mentira desta campanha está na gestão da maioria das empresas portuguesas, que se reconhece constituir uma das principais causas que explicam a falta de competitividade da economia portuguesa e mesmo a grave crise que enfrenta o País.

    Mas sobre a importância do vinculo público na prestação do serviço, interesse conhecer algumas conclusões do " Relatório Vínculos, carreiras e remunerações na Administração Publica" mandado fazer pelo próprio governo, que a seguir se transcrevem.

    Assim, na pág. 6 do relatório pode-se ler o seguinte: "O vinculo público assente no "modelo de carreira" visa a constituição de "um corpo estável, tecnicamente competente e politicamente neutro, que pudesse assegurar de forma eficaz e permanente e imparcial o interesse público … especialmente garantido contra a contaminação por quaisquer outros interesses, designadamente de natureza económica ou politico-partidária". E a "natureza vitalícia da relação de emprego na Administração Pública, destina-se a proteger os funcionários de comportamentos e pressões de natureza arbitrária e a garantir a sua subordinação exclusiva ao interesse público e a continuidade organizacional..". Finalmente na pág. 58 do Relatório também se pode ler o seguinte: De acordo com um inquérito realizado em 2005, pelo "Instituto de Administração Pública (EIPA), a maioria dos Estados pronunciou-se no sentido do carácter vitalício dos vínculos ser importante para garantir a protecção face a pressões no casos dos trabalhadores com funções de regulação e imposição" . E conclui: "grande parte dos Estados membros formalmente consideraram ainda que as vantagens da segurança no emprego superam as respectivas desvantagens". Os comentários parecem ser desnecessários

    É evidente que a politica que este governo está a seguir em relação à Administração é contrária a tudo isto , estando a provocar a insegurança e a desmotivação, e mesmo a saída de muitos dos melhores quadros da Administração Pública, ou por aposentação ou por outras razões, contribuindo assim para a sua fragilização e degradação.

    10/Março/2007

    [*] Economista, edr@mail.telepac.pt

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
    11/Mar/07