Uma louca fuga para a frente
O declínio do dólar
e dos Estados Unidos
por Jorge Beinstein
Desde princípio de 2002 o dólar iniciou uma descida que
actualmente continua e que, segundo a maior parte dos peritos,
agravar-se-á nos próximos meses. O declínio decolou pouco
tempo dos atentados (ou auto-atentados) do 11 de Setembro de 2001, ou seja, do
lançamento da ofensiva bélica global dos Estados Unidos.
Existe um encadeamento causal claro entre a decadência económica
do Império e a tentativa desesperada dos seus dirigentes de
travá-la através de uma sucessão de vitórias
militares na Ásia Central e no Médio Oriente. Se essa
estratégia tivesse tido êxito a superpotência controlaria
hoje a maior parte da faixa eurasiática que se estende desde os
Balcãs até o Paquistão, atravessando a Turquia, a bacia do
Mar Cáspio, o Iraque e o Irão, dominando assim cerca de 70% dos
recursos petrolíferos mundiais. Isso lhe teria permitido assegurar sua
hegemonia financeira internacional, simbolizada pelo reinado universal do
dólar.
Mas a aventura fracassou e hoje os norte-americano estão atolados no
Iraque e no Afeganistão, enquanto se reduz a sua influência sobre
a Eurásia.
André Gunder Frank sustentava que o poder dos Estados Unidos repousa
sobre dois pilares decisivos: o dólar e o Pentágono, o primeiro
(a hegemonia financeira) a sustentar o segundo e este último a impor os
privilégios económicos do Império. Esta dupla fortaleza
predominou desde o fim da Segunda Guerra Mundial e teve seu período de
auge entre 1945 e 1971, ano em que a Casa Branca decidiu liquidar a
conversão de dólares em ouro, ameaçada pelas reservas
dolarizadas em poder das outras potência industriais.
A partir desse momento desenvolveu-se uma etapa monetária turbulenta
onde o dólar continuou a reinar no planeta graça a um jogo
perverso em que acordaram os países ricos e que culmina agora com um
empapelamento global que pode conduzir a uma incontrolável
sucessão de crises financeiras.
O declínio do dólar
Depois de 1971 o dólar já não era a moeda de uma
superpotência económica ascendente e sim dinheiro-papel emitido
por uma economia que ia perdendo competitividade e cuja produção
petroleira havia entrado em declínio. Entretanto, o seu consumo
continuou a crescer e, em consequência, suas importações
o que a converteu no principal mercado internacional. Europeus,
japoneses, sulcoreanos e mais recentemente chineses encontram nos compradores
norte-americanos clientes cujo volume geral de procura não pode ser
substitutído.
Alguns indicadores ilustram bem a decadência da economia norte-americana.
Em primeiro lugar o défice comercial que foi crescendo: de
números relativamente modestos em meados dos anos 70 até
ultrapassar os 700 mil milhões de dólares em 2006. Neste
último ano, por cada dólar de exportação de bens
importavam-se dois.
Numa primeira aproximação ao tema poderiam ser distinguidos dois
factores. Por um lado, a espiral ascendente dos gastos públicos e
privados onde foram combinados o consumismo próprio de uma sociedade
privilegiada com a expansão do aparelho militar e outras dádivas
parasitárias. E, por outro lado, a perda de competitividade industrial,
o atraso relativo na corrida às inovações produtivas. Mas
ambos os processos fazem parte de um fenómeno mais amplo de
decadência cultural que inclui também a degradação
institucional, a crescente apatia da população perante o sistema
de representação política, a ascensão da
criminalidade, etc.
Um segundo indicador de deterioração é a
redução do saldo dos lucros de negócios de
norte-americanos no exterior contra os benefícios de estrangeiros nos
Estados Unidos. No passado o mesmo compensava em parte os défices
comerciais mas em 2006, e pela primeira em 90 anos, esse número foi
negativo.
Em terceiro lugar, e em resultado da evolução dos indicadores
anteriores, o défice de transacções correntes cresceu
vertiginosamente: 140 mil milhões de dólares em 1997, 389 mil
milhões em 2001, 834 mil milhões em 2006.
Um quarto indicador é o crescimento do défice fiscal, que passou
de 2800 milhões de dólares em 1970 a 74 mil milhões em
1980, 240 mil milhões em 2000 até atingir em 2005 os 430 mil
milhões. A decadência produtiva foi compensada por uma avalancha
de défices e dívidas que suportaram a expansão do mercado
norte-americano. O resto do mundo abriu-lhe o carretel do crédito
indefinido entregando mercadorias e serviços em troca de papéis
(dólares, títulos públicos, acções,
dívidas empresariais, etc) e no interior de sucessivas ondas de
créditos ao consumo e ao investimento alentados, sobretudo desde meados
dos anos 90, por bolhas especulativas que ampliaram o poder de compra dos
estadunidenses. Ao mesmo tempo, a poupança pessoal descia, a parte dos
rendimentos destinada à poupança, que historicamente estava entre
7% e 8%, havia descido para 4,3% em 1998, para cair a 2,4% em 2003, 2% em 2004
e a números negativos em 2005 e 2006 (respectivamente -0,4% e -1%).
Ao começar a década actual, quando foi desinflada a bolha
bursátil, era evidente que a hegemonia financeira dos Estados Unidos
havia chegado a um ponto crítico. A enorme desproporção
existente entre o seu potencial produtivo declinante e a massa de
papeis-dólar a circular pelo mundo (dólares reais e toda classe
de papéis dolarizados) começou a provocar os primeiros estalidos
da moeda norte-americana, que rapidamente converteu-se em descida
irresistível do seu valor em relação ao ouro e a outras
divisas fortes, o euro e o yen.
O governo Bush respondeu impulsionando uma nova bolha especulativa baseada nos
negócios imobiliários, a maior da história: inundou a
economia com créditos baratos e reduziu os impostos dos ricos; o consumo
e o Produto Interno Bruto cresceram a taxas elevadas. Voltava a
prosperidade
mas por quanto tempo?
Ao mesmo tempo a Casa Branca exacerbou a tendência à
militarização, os gastos militares que ascendiam desde o fim da
era Clinton tomaram um forte impulso, em consequência aumentaram o
défice fiscal e o endividamento público.
Os Estados Unidos haviam tentado deter o seu declínio por meio de uma
louca fuga para a frente, expandindo o consumismo sem retaguarda produtiva
interna e desencadeando uma desmedida agressão imperialista na
Ásia. Mas essa dupla aposta viu-se rapidamente encurralada pela sua
própria debilidade estrutural, a aventura apoiava-se numa montanha de
papel, na acumulação de dívidas de todo tipo e de reservas
em dólares de chineses, japoneses e europeus, ou seja, em
créditos concedidos ao Império pelos referidos países.
Enquanto na superfície a festa militar e consumista aturdia o planeta,
na profundidade do sistema global o reinando financeiro norte-americano
declinava.
E meados da presente década os dois pilares do Império
começaram a cambalear ao mesmo tempo: desastre no Iraque e
degradação do dólar.
Parasita ou lixeira?
O argumento habitual é que os Estados Unidos parasitam sobre a economia
mundial entregando dólares com valor futuro incerto em troca de bens e
serviços. Mas a pergunta chave é porque japoneses, europeus,
chineses, sulcoreanos e outros aceitam esse roubo?
A minha resposta é que tal "roubo" não existe e que na
realidade o gigante enfermo vem sendo engordado por esses países porque
é o seu cliente decisivo. Sem ele, sem o seu consumo, sem o seu
espaço de negócios, a crise de super-produção
crónica que o capitalismo mundial sofre há mais de três
décadas converter-se-ia numa derrocada imparável. Um
terço das exportações chinesas vão para os Estados
Unidos e outro tanto para países asiáticos cuja capacidade de
pagamento depende estreitamente das suas exportações para a
superpotência. Os outros países industriais ou emergentes da
Ásia, como por exemplo o Japão ou a Coreia do Sul, têm uma
dependência semelhante. A União Europeia, especialmente seus
países líderes, apresenta uma inter-penetração
industrial, comercial e financeira com o Império de tal magnitude que o
seu destino está absolutamente ligado ao mesmo.
Em síntese, o parasita é na realidade um enorme depósito
de lixo para bens, serviços e fundos e a decadência
norte-americana não é outra coisa senão a face
visível da decadência global do capitalismo.
O dólar, ou seja o instrumento de "pagamento" da economia
(deficitária) norte-americana, é a peça essencial de toda
a trama. Sua queda demasiado rápida provocaria uma
contracção geral das importações dos Estados Unidos
e do seu nível de rentabilidade interna (medido segundo as outras
divisas) comprimindo directamente tanto as vendas como os investimentos desses
países no Império. Mas além disso a referida derrocada
provocaria a hiper revalorização do yen e do euro, o que
reduziria de maneira significativa as exportações da União
Europeia e do Japão com fortes impactos recessivos em ambas as
potências. A China também seria negativamente afectada.
Todos estes países tentar então escorar o dólar.
Entretanto, à media que a economia estadunidense se vai enfraquecendo
(processo irresistível no médio e longo prazo) devem tomar
algumas precauções ainda que não seja muito o que possam
fazer. Os europeus tratam apenas de prolongar a agonia porque sabem que o
desenlace os golpeará duramente, algo semelhante fazem os japoneses, e
os chineses tentam timidamente diversificar (desdolarizar) suas mega-reservas
dolarizadas sabendo que se desdolarizarem demasiado rápido podem chegar
a provocar uma catástrofe financeira global que também os
atingirá. Todos chegaram à conclusão de que não
podem manter-se indefinidamente no reino do dólar mas também
sabem que não podem ir embora de um dia para o outro. Onde está
a "solução"? Em parte alguma (alguns esperam, sem o
dizer, que a passagem do tempo abra algum caminho de saída).
Por isso avaliam com extrema prudência cada movimento, intensificam as
consultas entre si, extorsionam-se mutuamente, dão-se golpes baixos,
ajudam-se
Sombras ameaçadoras
Contudo, para além dos truques das grandes potências existem
fenómenos que determinam a conjuntura e sobre os quais os estados dos
países ricos têm uma influência limitada. Trata-se
sobretudo do processo de financeirização, que foi
avançando nas última três décadas e que a qualquer
momento pode produzir efeitos catastróficos.
Pense-se por exemplo na especulação com "derivados",
complexas articulações de negócios que se expandem
vertiginosamente e que segundo o Banco da Basileia, que contabiliza o seu
volume global, estaria a aproximar-se dos 400 milhões de milhões
de dólares (o equivalente a cerca de dez vezes o Produto Bruto Mundial).
Atente-se à sobreacumulação de reservas (quase totalmente
dolarizadas) nos países periféricos que já ultrapassa os
3200 milhões de dólares, mas observemos também o tamanho
da bolha imobiliária global equivalente ao Produto Bruto dos
países ricos.
Algumas destas massas financeiras são relativamente controláveis,
como por exemplo as reservas. Mas outros são-no muito menos, como
é o caso dos negócios com "derivados" ou a
especulação imobiliária.
Decai (gradualmente por enquanto) o dólar e surgem os primeiros sinais
de desconfiança em direcção a outras moedas
"fortes" como o yen e o euro cujas economias de suporte, Japão
e União Europeia, estão estreitamente ligadas à dos
Estados Unidos. Isto incita os especuladores a diversificarem seus
negócios e a um curtoprazismo maior
O original encontra-se em
http://www.rebelion.org/docs/44886.pdf
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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