O imperativo de um rendimento garantido internacional
por Stephen J. Fortunato Jr.
[*]
O capitalismo do século XXI não é uma versão
melhorada e inócua das suas manifestações no século
XIX ou XX, nem nunca o será, apesar da fanfarronice diária dos
praticantes e defensores do sistema de que a maré da prosperidade em
breve elevaria todos os barcos. Os princípios animadores do
capitalismo que regem a caça ao lucro continuam tão vácuos
e iníquos como eram em 1848, especialmente no que se refere à
exploração humana e à distribuição da
riqueza. Tal como o super-capitalista Warren Buffett observou há pouco
numa declaração demolidora: "O sistema de mercado não
tem funcionado bem para as pessoas pobres" (
The New York Times,
27 de Junho de 2006).
Apesar dos avanços tecnológicos e dos novos acordos comerciais, o
capitalismo, com a sua etiqueta higiénica da globalização,
não está a dirigir-se para um glorioso futuro novo, está
pelo contrário a regressar rapidamente ao passado. No seio do
capitalismo quer seja rotulado de globalismo, de imperialismo ou de
livre iniciativa não há nada de novo à face da
terra.
Desde os seus primeiros dias, o capitalismo foi sempre global para que
é que serviam os navios velozes? E o capitalismo foi sempre
olimpicamente indiferente ao sofrimento humano o que é que
significava (e significa) o tráfico de escravos, de ópio e de
armas? Na segunda metade do século XIX e nos primeiros anos do
século XX, os capitalistas aventuraram-se, a partir das suas principais
bases industriais nos Estados Unidos, Europa e Japão, até
à América Latina, à África, à China e a
outras regiões da Ásia, dividindo territórios e
brutalizando as populações indígenas com o apoio
mortífero dos seus exércitos nacionais imperialistas. A luta dos
estados capitalistas entre si não impediu que o sistema acabasse por
subjugar e explorar as populações locais.
Os factos e dados compilados e reunidos num aglomerado de
publicações de agências das
Nações Unidas, de governos, de organizações
não governamentais, de jornais da esquerda, e de órgãos
financeiros capitalistas documentam todos eles a mesma realidade fundamental:
uma pequena minoria da população mundial desfruta de um
nível de vida confortável e detém um quinhão
desproporcionado de dinheiro e de bens enquanto que a maioria da humanidade
vive na miséria, frequentemente assediada pela instabilidade
política e pela violência. Uma simples observação
das consequências económicas e culturais da produção
e da distribuição capitalista revela que o sistema não
dispõe de princípios ou mecanismos internos que detenham
ou pelo menos reduzam o fluxo imparável da riqueza para as
mãos de meia dúzia, enquanto deixa a maioria num tapete rolante
sem-fim na tentativa de fugir aos empregos perigosos, às escolas
degradadas e aos sistemas de saúde de terceira classe.
Os pobres e os que se esforçam por ajudá-los
conhecem bem as condições sórdidas e inseguras em que
vivem; e percebem que o que os separa de uma vida saudável e plena para
além do limiar da pobreza é a penúria daquilo que a classe
capitalista tem em abundância o dinheiro. É da
responsabilidade dos socialistas e dos progressistas exigir mecanismos
políticos e económicos que transfiram dinheiro daqueles que o
têm num excedente obsceno para aqueles que mal se conseguem alimentar a
si próprios e aos seus filhos. O veículo para isso é o
rendimento garantido anual, uma ideia que surgiu nos debates e no activismo
político há quase cem anos, e que tem que ser ressuscitado
actualmente, mas desta vez a nível internacional.
Pensadores e agitadores socialistas, desde Marx e Engels a Rosa Luxemburgo,
até à era actual e às observações dos mais
recentes Ernest Mandel e Daniel Singer, todos eles relataram o imparável
pendor do capitalismo para se alargar para além das fronteiras nacionais
ou regionais à procura de mão-de-obra barata, mercados, e
matérias-primas; e por isso, todos esses pensadores insistiram em que a
luta contra a predação capitalista tem necessariamente que ser
uma luta internacional. Perceberam claramente que o capitalismo é uma
doença internacional que exige uma cura internacional.
É urgente a necessidade de um rendimento garantido internacional. Sempre
que é implementado um tipo qualquer dos modelos predominantes com
o objectivo de desenvolver as infra-estruturas nos países do terceiro
mundo tal como a construção de estradas, portos, linhas de
transporte, etc., para que os capitalistas possam construir as suas
fábricas e instalarem os seus negócios agrícolas
já morreram milhões de fome e de doenças; e mesmo depois
de estarem a funcionar os negócios, as minas e as quintas, haverá
milhões que ficarão sem emprego e os que trabalham serão
pagos miseravelmente.
Há dois fenómenos no capitalismo actual que criam barreiras
intransponíveis para uma vida melhor àqueles que nada têm e
acelera o fosso da riqueza entre os ricos e os pobres assim como a classe
média. O primeiro é que a globalização voltou a ser
a situação que Marx identificou como
"acumulação primitiva", e que David Harvey chamou de
"acumulação por expropriação". O segundo
factor é que a rapina da oligarquia capitalista não é
refreada por quaisquer forças políticas ou "de mercado"
capazes de retardar a subida do fluxo de dinheiro dos campos ou das lojas para
as algibeiras dos administradores, dos seus gestores e empregados
privilegiados, e dos accionistas. Nenhuma força de mercado impõe
que um administrador tenha que ganhar um salário de 12 milhões de
dólares por ano nem sequer de 2 milhões; mas os conselhos
de directores e as comissões de compensação corporativas
formadas por amigalhaços podem assumir esta generosidade à custa
dos trabalhadores. E é este mesmo grupo de fabricantes de
decisões, em conjunto com os funcionários políticos que
eles apoiam e subsidiam, que afirmarão enganadoramente, por exemplo, que
são as forças do mercado, a pressão inflacionária,
e a potencial perda de postos de trabalho que os obrigam a bloquear as
tentativas para aumentar o ridículo salário mínimo nos
Estados Unidos de 5,15 dólares por hora, e que se mantém
há uma década.
Ao explicar as fases primitivas da acumulação capitalista, Marx
descreveu um ambiente dos séculos XVII e XVIII que infelizmente se
está a repetir hoje em dia sem qualquer contrapeso potente que iniba a
crueldade do capitalismo enquanto ele percorre o globo à procura de
mão-de-obra e de matérias-primas baratas:
A acumulação do capital pressupõe excedentes; os
excedentes pressupõem produção capitalista; a
produção capitalista pressupõe a
pré-existência de grandes massas de capital e de força de
trabalho nas mãos dos produtores de bens. Todo o movimento, portanto,
parece girar em torno de um círculo infinito, de que apenas podemos sair
assumindo uma acumulação primitiva.
[1]
Marx continua, com uma raiva sarcástica:
A descoberta de ouro e prata na América, a usurpação, a
escravatura e o encerramento nas minas da população
aborígene desse continente, o início da conquista e pilhagem da
Índia, a conversão da África numa reserva para a
caça comercial de peles negras, tudo isso são coisas que
caracterizam a era da produção capitalista. Estes comportamentos
idílicos são os marcos temporais principais da
acumulação primitiva.
[2]
A escravatura foi um "marco da acumulação primitiva", e
o mesmo acontece com as oficinas no México (as horríveis
maquiladoras
), na China, na Indonésia, na Jordânia, e por todo o lado. O que
é o salário mínimo federal de 5,15 dólares nos
Estados Unidos senão uma versão moderna do chicote empunhado para
arrancar mais lucros através da super exploração dos
trabalhadores rurais, guardas, e outros que tais, nas fileiras dos
marginalizados?
Calcula-se que, em todo o mundo, "haja 1,2 mil milhões de pessoas
[que vivem] abaixo do limiar internacional de pobreza, ganhando menos de 1
dólar por dia".
[3]
Os números das Nações Unidas mostram que em 2000, viviam
abaixo do limiar de pobreza do país 56 por cento dos guatemaltecos, e
é fácil localizar números semelhantes em
Moçambique, no Ruanda, no Bangladesh, e noutras regiões do
terceiro mundo, enquanto que em países mais desenvolvidos, como a
Polónia, o Chile e a Tailândia, a percentagem da
população que vive abaixo dos níveis estabelecidos para a
pobreza ronda os 15 por cento.
Isto não significa que as pessoas que mal escapam à rubrica da
pobreza, gozem de rendimentos e de serviços sociais que lhes garantam
uma vida economicamente segura e saudável. O factor central a ter em
atenção é que os milhões de pessoas em todo o mundo
que vivem na pobreza ou perto dela são uma presa para a
exploração porque são impotentes para resistir à
sedução dos empregos mal pagos e quase sempre perigosos
oferecidos pelos capitalistas, que implantam as suas fábricas, as
empresas agrícolas de grande escala e outros negócios no meio dos
empobrecidos.
Assim, a actual situação capitalista não é um
estádio iluminado de um sistema que acredita que a sua
sobrevivência depende de uma distribuição equitativa da
riqueza com trabalhadores e com os que não podem trabalhar devido
à sua idade ou à sua incapacidade. Não, o capitalismo no
século XXI está a recriar, através das
corporações multinacionais e dos seus aliados políticos,
novas "situações de acumulação primitiva".
O universo capitalista assegura que a riqueza acumulada brutal e
primitivamente se orienta para as suites executivas e não para os
cheques de pagamento aos trabalhadores ou para os programas financiados pelos
impostos destinados ao bem comum. No actual reinado do capitalismo, é um
crime uma pessoa pobre roubar uma fatia de pão, ou uma lata de comida
para bebé, mas já não é um crime uma empresa pagar
salários que perpetuem a pobreza enquanto os executivos recebem
salários e benefícios na ordem dos milhões. Com as suas
compensações, o beneficiário leva uma vida de
opulência que faria corar os Médicis. Segundo o Boston Consulting
Group, uma firma de consultoria para o sector do capitalismo actualmente
conhecido por Novo Luxo (companhias como a Cartier, a Louis Vuitton, a Gucci,
etc.), as vendas neste grupo aumentaram de 450 milhões de dólares
em 2003 para 525 milhões em 2004, esperando-se 1 milhão de
milhões para 2010.
Os salários dos capitalistas característicos actuais os
administradores, os assaltantes corporativos, os banqueiros de investimentos,
os gestores de futuros assentam numa contradição cultural
entre o trabalho que executam e as receitas que auferem. Só uma
auto-justificação egocentrista pode afirmar que a sua
compensação é uma medida justa em relação
à sua contribuição para o bem público. Não
há nenhum mercado que imponha que um administrador ganhe 12
milhões de dólares por ano nem mesmo 2 milhões
enquanto que os seus trabalhadores ganham 1/300 disso ou ainda menos.
Não foi nenhuma força natural que impôs a Richard Grasso o
direito a 190 milhões de dólares de indemnização
quando ele se demitiu de presidente do New York Stock Exchange, ou uma
gratificação justa de 400 milhões de dólares a Lee
Raymond quando este se reformou de presidente da Exxon. Os salários,
bónus, pacotes opcionais, e pára-quedas dourados, aprovados por
lei, dos oligarcas corporativos não são impostos pelo mercado,
nem sequer por filósofos moralistas, mas sim pelos seus colegas de
classe igualmente ladrões.
O mesmo se pode dizer do pagamento anual embolsado pelos atletas profissionais,
estrelas de cinema e outras celebridades. O valor social do seu produto
é quase sempre duvidoso, mas quaisquer que sejam os seus méritos,
não são as forças do mercado que estabelecem a
estratosfera em que se estabelece a sua compensação. A sociedade
consegue sobreviver sem Paris Hilton ou sem Tom Cruise, mas a segurança
e a saúde públicas ficam em perigo ao fim de uma semana sem os
homens do lixo ou sem enfermeiras.
A redistribuição da riqueza e a implementação de um
rendimento garantido anual internacional, para que a maioria da humanidade se
possa sustentar a si própria, ou até mesmo prosperar, tem que
começar pelo reconhecimento do que é óbvio: se o pagamento
aos executivos e às celebridades não está ligado por
princípios identificáveis e racionais ao trabalho executado, mas
é antes o resultado de concepções arbitrárias e
frívolas de direitos, então não pode haver
justificação para recusar uma compensação anual
justa a quem quer que seja, com base no argumento espúrio de que ele ou
ela não produz nada de valor no seu trabalho. Isto torna-se ainda mais
verdadeiro quando o capitalismo suprime salários propositadamente e
perpetua o desemprego utilizando tecnologia que elimina mão-de-obra,
estabelece perversamente níveis de salários mínimos e
níveis de pobreza muito baixos, e cria redes de segurança social
mesquinhas.
A premissa de um rendimento garantido anual parte do princípio que os
indivíduos devem receber pagamentos suficientes para se sustentarem a si
próprios a partir do produto da sociedade, e não porque tenham
uma contribuição directa para a produtividade, mas única e
exclusivamente porque existem e têm necessidades que precisam de ser
satisfeitas. A origem enquanto objectivo político actual remonta a
Bertrand Russell. Na polémica de 1918,
Pathways to Freedom: Socialism, Anarchism and Syndicalism,
o filósofo inglês escreveu: "todas as pessoas deviam ter
direito a um determinado rendimento mínimo, suficiente para as suas
necessidades, quer trabalhem ou não. Àqueles que se disponham a
realizar qualquer trabalho que a comunidade reconheça como útil
devia ser atribuído
um rendimento maior
"
[4]
As boas intenções de Russell não ganharam vapor e a
Segunda Guerra Mundial fê-las descarrilar totalmente. Mas quando o
capitalismo à moda ocidental se recompôs, e as
inovações tecnológicas nos anos 50 e 60 revelaram a
capacidade crescente dos capitalistas para substituir o trabalho humano por
máquinas, pensadores como Robert Theobold e W.H. Ferry ressuscitaram a
ideia de atribuir rendimentos às pessoas, independentemente de elas
terem trabalho ou não.
Economista, Theobold apresentou uma crítica lógica e
pragmática da economia industrial capitalista: (1) o capitalismo tem que
aumentar permanentemente a produção, e para isso exige a
participação de todos ou quase todos os
indivíduos fisicamente aptos na força mundial; (2) em
contrapartida pela sua participação, esses indivíduos
recebem salários, com os quais podem comprar e consumir os bens e
serviços produzidos pelo sistema; (3) embora o capitalismo nunca tenha
posto toda a gente a trabalhar, e na verdade até encoraja a
existência de uma bolsa de mão-de-obra excedentária para
manter a pressão sobre os salários baixos, o desenvolvimento dos
computadores, da automação e da cibernética irá
eliminar para sempre a possibilidade do pleno emprego; (4) em
consequência disso, enormes quantidades de pessoas ficarão
impossibilitadas de arranjar trabalho apesar da sua vontade de trabalhar; (5)
por conseguinte, um rendimento garantido anual é uma necessidade
política e prática.
Theobold não se limitou a discutir as suas ideias no meio
académico. A 22 de Março de 1964, Theobold e uma série de
colegas, incluindo Norman Thomas, Michael Harrington, Bayard Rustin e Linus
Pauling, enviaram um relatório intitulado
The Triple Revolution
ao presidente Lyndon Johnson.
[5]
A administração Johnson reconheceu a pertinência das
observações e das soluções propostas no
relatório, mas continuou com a sua abordagem da Grande Sociedade em
direcção à pobreza. Durante a década de 60, a ideia
de um rendimento garantido anual manteve-se um tópico respeitável
para o discurso político; e em 1971, a ideia ganhou apoio do
então presidente de toda a gente Richard M. Nixon.
No 91º Congresso, Nixon propôs um Plano de Assistência
à Família, que no essencial era uma proposta de rendimento
garantido, segundo o professor (posteriormente senador americano) Daniel
Patrick Moynihan. No seu livro
The Politics of a Guaranteed Annual Income: The Nixon Administration and the
Family Assistance Plan
que descrevia em pormenor a luta política que rodeou a tentativa
infrutífera de Nixon para conseguir aprovar a legislação,
Moynihan recomendava que a proposta política de Nixon rejeitasse o
rótulo de "rendimento garantido": "Isso vai provocar a
confusão nalguns leitores e perturbar outros, tanto mais que o
era
mesmo, um facto que o presidente sabia muito bem
Não havia
qualquer
exigência de trabalho
per se
na legislação, embora a atribuição central do
suplemento de rendimento estivesse rodeada de estruturas incentivas destinadas
a aumentar a exequibilidade e a necessidade do trabalho".
[6]
(ênfase no original). O Plano de Assistência à
Família foi aprovado na Câmara dos Representantes, mas foi
derrotado no Senado; apesar disso, a ideia de um rendimento garantido anual,
qualquer que fosse o nome por que fosse chamado, manteve-se uma questão
politica predominante.
Actualmente a noção de um rendimento garantido anual, tal como
todas as propostas progressistas de redistribuição, aparece
marginalmente no debate político. Apesar disso, grupos activistas desde
a Europa aos Estados Unidos, passando pela Namíbia, desenvolvem
campanhas a favor de salários vitais e provocam agitação
à volta do que por vezes é rotulado como um "rendimento
garantido básico".
[7]
Há mesmo conservadores que são atraídos por estas ideias,
pois vêem nelas a possibilidade de eliminar muitas das burocracias
governamentais que actualmente são exigidas para os benefícios da
segurança social.
A exigência política para um rendimento garantido internacional
vai enfrentar uma oposição feroz da classe capitalista e dos seus
aliados. Irão argumentar que será impossível calcular os
pagamentos a fazer às pessoas que vivem em países e
regiões com salários, preços e infra-estruturas
díspares; mas é um facto bem evidente que há muitas leis
de salários mínimos e níveis de pobreza muito diferentes
instituídos em todo o globo. Os economistas, apoiados por especialistas
nas áreas de habitação, transportes e cuidados
médicos, podem facilmente calcular o rendimento necessário para
as pessoas viverem acima do nível de pobreza local.
O financiamento de tais pagamentos apresenta problemas políticos, mas
tal como Theobold e outros demonstraram e como Richard M. Nixon
considerava possível uma economia vital de abundância pode
sustentar esses pagamentos, tal como podia ser feito pela redução
da concentração capitalista que é reforçada pelas
eternas isenções de impostos às corporações
e à plutocracia corporativa. O objectivo político, evidentemente,
é transferir fundos dos governos dos países desenvolvidos, para
não falar das corporações multinacionais e dos seus donos
e operadores, para as algibeiras dos pobres.
Obviamente a oligarquia global irá unir as mãos contra um
pagamento garantido anual que sufocará a iniciativa e patrocinará
a indolência no seio da classe trabalhadora. Este argumento foi sempre
utilizado pelos reaccionários para subverter os movimentos
políticos que procuram obter qualquer tipo de pagamento ou vantagem
social para gente pobre. O raciocínio capitalista é que, se os
pagamentos por filhos dependentes, ou por desemprego, ou para a
alimentação do agregado se aproximarem do que uma pessoa pode
ganhar num trabalho de salário baixo, deixa de haver incentivo para que
essa pessoa procure emprego.
Dois académicos europeus ofereceram mais uma acha para esta fogueira
neoliberal. Num ensaio conjunto, Robert J. van der Veen e Philippe van Parijs
propuseram a concessão universal de um rendimento garantido anual a
todos os cidadãos, independentemente dos seus rendimentos ou riqueza.
Reconhecendo que não era praticável neste momento
histórico a apropriação colectiva dos meios de
produção pelos trabalhadores, os autores defendem que é
uma meta realista rearranjar a distribuição do produto social da
sociedade de forma equitativa. Os autores propõem que todos os
indivíduos recebam pagamentos que não tenham qualquer
relação com qualquer trabalho realmente executado; e insistem
ainda que o pagamento não seja estruturado sob a forma de um suplemento
de rendimento, possivelmente humilhante e portanto desmoralizador, ou de um
subsídio destinado a aumentar o rendimento individual até a um
nível mínimo previamente estabelecido. "Se, pelo
contrário, o rendimento garantido assumir a forma de uma
concessão universal,
incondicionalmente atribuído a todo o cidadão
se os
cidadãos tiverem um direito absoluto a esta concessão, qualquer
que seja o seu rendimento de outras fontes, começarão a ganhar
uma receita adicional logo que comecem a trabalhar, mesmo que seja pouco ou mal
pago
" (ênfase no original).
[8]
Uma das metas do socialismo é fazer sair as pessoas da miséria,
portanto todo o pagamento tem que estar decentemente acima do limiar da pobreza
numa determinada região; os activistas e os políticos podem
discutir se deve ser de 150 por cento ou qualquer outro número acima
desse nível. Mas a concessão universal que van der Veen e van
Parijs propõem suscita a crítica de que as pessoas ao
nível de rendimentos altos, que ganham dinheiro muito acima das
necessidades razoáveis de qualquer um, não precisam de pagamentos
que, na verdade, seriam inesperados. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma
pessoa que ganhe 15 000 dólares por ano para se sustentar a si e a
três filhos precisaria certamente de utilizar uma concessão anual
de 38 000 dólares (o dobro do actual limiar de pobreza para uma
família de quatro pessoas); mas qualquer pagamento a uma pessoa que nos
últimos dois ou três anos tenha um rendimento médio de 300
000 dólares parece desnecessário e perdulário.
Qualquer alegação feita pela oligarquia capitalista e pelos seus
propagandistas (os William Clintons e os Thomas Friedmans) de que uma proposta
para um rendimento garantido anual internacional é utópico, pode
ser contestada fazendo-lhes notar a realidade actual. O facto histórico
é que os capitalistas dominaram a maior parte da América Latina,
da Africa e da Ásia durante dois séculos, mas a maior parte dos
latino-americanos, africanos e asiáticos nada têm para mostrar a
não ser o seu analfabetismo, a SIDA, a miséria e a fome. Pelo
contrário, o que é utopia é acreditar que a classe que
durante duzentos anos oprimiu os trabalhadores, resistiu ferozmente a
alterações tão suaves como a abolição do
trabalho infantil e a implementação do dia de oito horas de
trabalho, e degradou o ambiente, vai abandonar a ganância a favor da
justiça agora que pode discutir as suas preocupações na
Organização Mundial do Comércio. Como Immanuel Wallerstein
fez notar numa obra inspirada chamada
Utopistics,
é preciso fazer uma distinção importante entre
visões do futuro que são impraticáveis e
irrealizáveis, por muito paradisíacas que pareçam, e as
que estão ao nosso alcance se se puser em cima da mesa uma
inteligência criativa e vontade política. Wallerstein rotulou
estes objectivos com a palavra-chave
utopistics:
"Uma avaliação séria de alternativas
históricas, o exercício do nosso julgamento quanto à
racionalidade substantiva dos possíveis sistemas históricos
alternativos".
[9]
Evidentemente, os pormenores podem ser discutidos nas legislaturas e nas ruas,
mas o princípio que os socialistas devem defender é claro: a
estagnação perpétua dos salários dos trabalhadores,
em conjunto com o desemprego e o sub emprego crónicos, exige que todas
as pessoas recebam um quinhão anual do produto social independentemente
de terem contribuído ou não com trabalho para os que possuem a
maquinaria de produção global.
Temos que repetir alto e bom som que, tal como não há nenhuma
relação razoável entre um serviço executado e o
pagamento anual de 12 milhões de dólares a um executivo ou
gestor, também não é preciso haver qualquer
correlação directa entre um serviço prestado e o pagamento
garantido a um trabalhador (ou possível trabalhador) de uma quantia
calculada para satisfazer as necessidades de vida e um mínimo de
dignidade.
Como reforço da exigência de um rendimento garantido anual
internacional, os seus defensores podem apontar para princípios legais
obrigatórios consagrados em tratados internacionais que reconhecem,
todos eles, os salários justos e as condições de vida
decente como um direito inerente e inalienável do indivíduo. O
Artigo 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
estabelece, entre outras coisas, que "todos têm direito ao trabalho,
à livre escolha de emprego, a condições de trabalho justas
e favoráveis, e à protecção contra o
desemprego" e que "todo aquele que trabalha tem direito a uma
remuneração justa e favorável que lhe proporcione a si
mesmo e à sua família uma existência compatível com
a dignidade humana e complementada, se necessário, por outros meios de
protecção social
"
Vinte e um anos depois, o Artigo 16 da Declaração das
Nações Unidas sobre Progresso Social e Desenvolvimento, proclamou
que um dos "meios e métodos" para atingir o progresso social
era uma "distribuição equitativa do rendimento nacional,
utilizando,
inter alia,
o sistema fiscal e a despesa governamental como um instrumento para a
distribuição e redistribuição equitativas de modo a
promover o progresso social
" Estas declarações
grandiosas ainda estão por realizar sob o regime do capitalismo global,
já que as pessoas que têm as mãos na garganta da economia
mais poderosa do mundo nada fizeram de razoavelmente organizado para atingir a
justiça económica defendida por Franklin D. Roosevelt, que, no
seu famoso discurso Segunda Carta de Direitos, exigiu para todos "o
direito a um trabalho útil e remunerador nas indústrias ou lojas
ou quintas ou minas da Nação"; "o direito de ganhar o
suficiente para pagar a alimentação e o vestuário e
recreação adequada; etc."
[10]
A nível internacional, é lamentável que as
Nações Unidas a mesma instituição que
projectou os tratados reconhecendo a todas as pessoas os direitos
inalienáveis de sustento e dignidade tenham sabotado a
possibilidade de impedir o cruel domínio da globalização
através do que chamaram sentenciosamente os seus Objectivos de
Desenvolvimento do Milénio. Este projecto é considerado por
profissionais de apoio e burocratas internacionais como um plano eficaz para as
nações desenvolvidas estimularem as subdesenvolvidas; mas numa
perspectiva socialista, é uma imposição fraudulenta dos
ricos e dos beneficiados sobre os empobrecidos e os endividados. Os objectivos
das Nações Unidas, principalmente os que pretendem eliminar a
pobreza extrema "a pobreza que mata" são
louváveis: purificação das fontes de água,
programas de vacinação, campanhas de alfabetização,
etc. Mas o obstáculo, como sempre, está na política e nas
letras pequeninas, onde podemos encontrar as marcas indeléveis da
pirataria global internacional actual: "Numa economia orientada para o
mercado, quando os indivíduos e os negócios detêm as
ferramentas proporcionadas pela infra-estrutura e pelo capital humano, o sector
privado pode desenvolver-se rapidamente. O crescimento na agricultura, na
indústria e nos serviços, liderado pelo sector privado,
irão então gerar empregos e receitas que reduzem a pobreza e a
dependência futura da ajuda estrangeira"
[11]
. O "então" referido nesta declaração de
fé capitalista é a altura da criação de uma
infra-estrutura num determinado país. Mas nesse delicioso momento os
pobres já estarão maduros para serem roubados e espoliados pelas
multinacionais imperialistas e pelas elites locais.
Para poderem confrontar-se eficazmente com o capitalismo global, os socialistas
também têm que ultrapassar a antipatia da classe média que,
por necessidade, trabalha ao serviço da globalização com
uma compensação mais adequada do que os trabalhadores de primeira
linha, mas que têm uma consciência reaccionária provocada
pelos media dominados pelas corporações, por um sistema eleitoral
manipulado e, nos Estados Unidos, por uma tímida oposição
política. O que Engels disse sobre as atitudes da classe média no
seu manifesto de 1845,
The Conditions of the Working Class in England,
mantém-se uma verdade actual: "Eles acham mesmo que todos os
seres humanos (excluindo-se a si mesmos) e, claro, todas as coisas vivas e
todos os objectos inanimados só têm uma existência real se
ganharem dinheiro ou se os ajudarem a ganhá-lo".
[12]
Um enorme número de funcionários eleitos e o eleitorado que neles
vota, exibe uma hostilidade permanente contra os pobres na sua generalidade, e
em particular contra os imigrantes, as minorias, os ex-prisioneiros, etc.
Há actualmente, tal como Engels assinalou na sua época,
"honrosas excepções" à regra geral; e embora a
classe média não acorde de manhã a planear pisar os
pescoços dos pobres, a sua apatia e indiferença tem o mesmo
efeito prático.
O capitalismo nunca deu abrigo a quaisquer princípios internos que por
si mesmos exijam o pagamento de salários justos ou a
eliminação das condições sociais degradantes em que
vive a maior parte dos pobres. Quaisquer benefícios de que gozam os
marginalizados, para não falar da classe média, são
resultado de forças externas como as revoluções, a
ameaça de uma revolução, as greves, as exigências
dos movimentos de massas, e por aí fora. Embora existam diversos tipos
de redes de segurança social espalhadas pelos países de todo o
mundo, a incansável pressão do capitalismo para maiores lucros,
através da expansão, obriga inevitavelmente o sistema a agir
retrogradamente em relação à melhoria da sorte da maioria.
Isto verifica-se nas economias capitalistas de longa duração, e
verifica-se nos novos centros de poder globais da China e da Índia, onde
as disparidades salariais entre capitalistas e trabalhadores estão a
aumentar, os sindicatos na maior parte das vezes são impotentes, as
condições de trabalho não são seguras, e florescem
classes de novos milionários, com alguns multimilionários pelo
meio a servir de exemplo. Dois críticos socialistas descreveram
há pouco tempo a situação na China com palavras que se
aplicam a todos os locais em que domina o capital internacional:
com a estagnação do poder de compra da maioria da
população rural, com a exploração e a
repressão intensificadas dos trabalhadores industriais, e com a pilhagem
dos bens estatais pela nova classe capitalista e pelos seus aliados do Partido
Comunista Chinês, a desigualdade do rendimento nacional do país
ultrapassa hoje o da Índia e da Indonésia e compara-se à
do Brasil e da África do Sul.
[13]
Onde quer que chegue e é quase em todo a parte o
capitalismo estende os seus tentáculos em todas as dimensões da
vida económica, política, comunitária e privada,
oferecendo aos socialistas, e a quem estiver empenhado na resistência,
múltiplas áreas de luta: sustentabilidade ambiental; paz;
segurança ocupacional; cuidados de saúdes acessíveis e
adequados para toda a gente; etc. Mas no meio destas
confrontações necessárias, os socialistas têm que
pressionar permanentemente pela exigência sem compromissos de um
rendimento garantido anual, porque a alternativa capitalista representa a morte
e a miséria para a massa da humanidade.
Notas
[1] Karl Marx,
Capital,
vol. I (London: Penguin Classics, 1990), 873.
[2] Marx,
Capital,
915.
[3]
http://www.pulsemed.org
.
[4] Bertrand Russell,
Pathways to Freedom
(New York: Blue Ribbon Books, 1918), 110.
[5]
The Triple Revolution
encontra-se disponível em
http:/www.pa.msu.edu
. Para discussão
do rendimento garantido anual de Robert Theobold, ver o seu
An Alternative Future for America
(Chicago: The Swallow Press, 1968) e Free Men and Free Markets (New York:
Clarkson & Potter, 1963).
[6] Daniel P. Moynihan,
The Politics of a Guaranteed Annual Income
(New York Random Hosuse, 1973), II.
[7] Uma fonte abrangente relativa à educação e a
acções relativas ao rendimento garantido básico é
http://www.usbig.net
[8] RobertJ. Van der Veen e Philippe van Parijs, "A Capitalist Road to
Communism",
Theory and Society
15 (Setembro, 1986), 643.
[9] Immanuel Walerstein,
Utopistics
(New York: The New Press, 1998), 1.
[10] Cass R. Sunstein,
The Second Bill of Rights
(New York: Basic Books, 2004), 243. Este livro inclui também excertos
de tratados e de constituições nacionais que se referem aos
direitos à justiça económica.
[11]
http://www.unmilleniumprohect.org
[12] Friederich Engels,
The Condition of the Working Class in England
(California: Stanford University Press, 1958)
[13] Martin Hart-Landsberg e Paul Bukett,
China and Socialism: Marker Reforms and Class Struggle
(New York: Monthly Review Press, 2005), III
[*]
Membro do Supremo Tribunal de
Justiça de Rhode Island. Os seus ensaios e análises têm
sido publicados no
Georgetown Journal of Legal Ethics,
no
Howard Law Journal,
no
In These Times
e noutras publicações.
O original encontra-se em
Monthly Review
, vol. 58, nº 11, Abril/2007.
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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