A pirâmide dos US$ 4,7 milhões de milhões:
a Segurança Social dos EUA & a Wall Street

por Michael Hudson [*]

Eles queriam alguma coisa por nada.   Eu lhes dei nada por alguma coisa.
-- J.R. "Yellow Kid" Weil

. A Segurança Social, outrora o "terceiro trilho" da política americana, foi agora pisoteada por George W. Bush de uma forma particularmente dramática. Uma vez que a manobra é tanto estúpida como desnecessária, devemos perguntar o porquê. Apesar de tudo, as alegadas deficiências do programa, se existem, não se manifestarão pelo menos até o ano 2018. Isto não é exactamente a mesma coisa como preocuparmo-nos acerca do colapso final do Sol num buraco negro, mas para a maior parte dos políticos um problema que está situado a treze anos no futuro é praticamente a mesma coisa. Evidentemente, tudo isto não é o que parece.

O próprio Bush apresenta duas razões para este atrevimento. A primeira — que a Segurança Social está "em crise" — é facilmente descartada. Os actuários do governo, secundados por economistas de todo o espectro político, insistem em que não há problema de financiamento. A Administração da Segurança Social tomará mais dinheiro do que pagará nos próximos 13 anos; ela construiu uma reserva de US$ 1,8 milhão de milhões (trillion) em títulos do Tesouro que pagam juros durante o número de anos necessário, e qualquer défice posterior pode ser coberto facilmente até mesmo por uma reversão parcial das recentes isenções fiscais para os ricos.

O segundo argumento de Bush parece mais prometedor. Se o povo americano simplesmente vier a seguir o seu plano, diz ele, ele também se tornará rico. [1] Do modo como o sistema agora funciona, o governo retira 12,4 por cento do seu cheque de pagamento, até US$ 90.000 de rendimento anual. Em retorno, ele promete proporcionar-lhe um pagamento mensal — uma pensão — desde o momento em que atingir 62 anos até o de morrer. A partir destes escritos, a alternativa da administração permanece algo nebulosa, mas o que é claro em todas as variações apresentadas até aqui é que você será capaz de por alguma parte do seu cheque de pagamento no mercado de acções. Bush chama a estas compras de acções "contas de poupança pessoal".

O ÚNICO MEIO DE O MERCADO DE ACÇÕES PODER CRESCER É SE NÓS O POVO PUSERMOS UM BOCADO MAIS DO NOSSO DINHEIRO DENTRO DELE

O vice-presidente Dick Cheney descreveu os benefícios destas contas de poupança pessoal em Janeiro de 2005. O seu exemplo era o de uma mulher jovem que depositava US$ 1000 todos os anos durante 40 anos. A Administração da Segurança Social actualmente aplica o seu dinheiro em Títulos do Tesouro, os quais apresentam um retorno em torno dos 2 por cento, de modo que em 40 anos aquele investimento teria retornado cerca de US$ 61.000. Não é tão mau. "Mas se ela investiu o dinheiro no mercado de acções", disse Cheney, "ganhando mesmo a sua mais baixa taxa de retorno histórica, ela ganharia mais do que o dobro daquela quantia — US$ 160.000. Se o ganho individual rondasse a média histórica da taxa de retorno do mercado de acções, ela teria mais de US$ 225.000 — ou aproximadamente quatro vezes a quantia que seria esperada da Segurança Social". [2]

Há aqui um bocado de matemática. O ponto principal de Cheney é que uma avaliação optimista do mercado de acções — cerca de 7,5 por cento ao ano durante 40 anos, pelo seu cálculo — excederia facilmente os 2 por cento oferecidos pelos Títulos do Tesouro.

Não se pode discutir que US$ 225.000 é mais do que US$ 61.000. Por outro lado, não é como se você obtivesse uma soma total (lump sum) da Administração da Segurança Social quando se aposentasse. A mulher mencionada por Cheney podia acabar por tomar muito mais do que os US$ 61.000 se vivesse bastante tempo. (O pagamento anual médio para aposentados está hoje em torno dos US$ 11.000). Ou ela poderia morrer no seu sexagésimo segundo aniversário. Como qualquer outro investimento — ou qualquer outra forma de seguros, pois nisto a Segurança Social tem algo de jogo. Mas, por outro lado, assim é o mercado de acções. Entretanto, segundo a estimativa de Cheney, o mercado de acções de hoje é uma aposta muito melhor. "Ao longo do tempo", concluiu ele, "os mercados de valores (securities markets) são o melhor e mais seguro meio de acumular poupanças pessoais consideráveis".

Este é o argumento, seja como for. O mercado de acções é a principal oportunidade da América, e Bush quer levar todos nós à acção. A única marca segura de uma objecção, no entanto, é a promessa de dinheiro gratuito. De facto, o único modo de o mercado de acções poder crescer é se nós o povo colocarmos mais do nosso dinheiro dentro dele. O que Bush procura fabricar é um boom — ou, mais precisamente, uma bolha — financiada pela última acumulação (pile) segura de dinheiro na América de hoje. O seu plano é um esquema Ponzi [NT1] , e neste esquema é a Segurança Social que está a ser jogada como último recurso.

As poupanças de reformas são de longe a mais importante fonte de dinheiro na Wall Street. O Federal Reserve Board relata que as contas privadas e públicas de reformas, não incluindo a Segurança Social, tinham activos de US$ 10 milhões de milhões no fim de 2003. Aproximadamente a metade disto, US$ 4,7 milhões de milhões, era mantido em acções. Para fins de comparação, o valor total de todas as acções internas listadas no NASDAQ, no American Stock Exchange, e no New York Stock Exchange no fim de 2003 montavam a cerca de US$ 14,2 milhões de milhões.

No passado, pouco dólares de reformas dirigiram-se para Wall Street. O IRAs e o 401(k) ainda não haviam sido inventados, e poucas companhias ofereciam planos de pensão privada de qualquer espécie. Em 1950, a General Motors — então, como agora, dos maiores empregadores da terra — começou a mudar isto com uma nova forma de compensação. A companhia retiraria dinheiro dos cheques de pagamento, tal como a Administração da Segurança Social estava a fazer, e acrescentaria dinheiro do seu próprio para construir uma reserva destinada a pagar aposentados durante muitas décadas no futuro. Chamado geralmente como um plano de "benefício definido", o esquema garantia aos aposentados um (definido) pagamento mensal específico até que morressem.

Outros gigantes da indústria americana logo a seguiram, e os fundos cresceram rapidamente. Na maior parte deles, pelo menos metade do dinheiro era colocado no mercado de acções. Os trabalhadores então ganhariam, pelo menos em teoria, um interesse na prosperidade da sua companhia, promovendo lealdade à administração e ao mesmo tempo proporcionando às companhias uma fonte cativa de crédito — a sua própria força de trabalho.

AS COMPANHIAS SIMPLESMENTE NÃO TÊM ESTADO A POR DE LADO DINHEIRO SUFICIENTE PARA PAGAR AOS APOSENTADOS O QUE ELES DEVEM RECEBER

Peter Drucker, o filósofo da administração, chamou a este processo "socialismo fundo de pensão" e louvou-o como o mais positivo desenvolvimento social do século XX, porque pelo menos fundiria os interesses do trabalho e do capital. Louis O. Kelso e Mortimer J. Adler escreveram mesmo um livro chamado The Capitalist Manifesto a anunciar que uma nova época de harmonia entre trabalhadores e proprietários estava próxima, porque dentro em breve todos os trabalhadores seriam proprietários.

Isto não resultou assim. Muitas companhias utilizaram reservas de aposentadorias para comprar suas próprias acções, elevando o seu preço e permitindo-lhes capturar (take over) outros firmas em termos favoráveis, especialmente quando as fusões e aquisições ganharam momento na década de 1960. O problema era que quando companhias iam à bancarrota — especialmente pequenas firmas — o colapso também destruía os fundos de pensão investidos naquelas companhias. Os empregados de tais companhias achavam-se não só sem trabalho como despojados do dinheiro que pensavam estar a ser poupado para a sua aposentadoria.

O Congresso mexeu-se a fim de limitar tal comportamento, obrigando os fundos de pensão corporativos a serem dirigidos por um braço externo fiduciário (arm's-length trustees), embora ainda fosse permitido (e muitas vezes encorajado) aos trabalhadores manterem as suas pensões nas acções dos seus empregadores. Para protecção adicional aos trabalhadores, em 1974 o Congresso criou a Pension Benefit Guarantee Corporation (PBGC). A todos os planos de pensão corporativos foi exigido que comprassem seguro federal, através do PBGC, para proteger os trabalhadores no caso de um esquema de investimento fracassado ou de uma bancarrota corporativa. Os próprios planos ainda eram orientados para o risco, mas pelo menos as pensões seriam respaldadas pelo governo e os trabalhadores poderiam sentir-se seguros acerca da sua reforma. [3]

A maior parte das companhias agora oferecem aos seus empregados um vasto conjunto de fundos mútuos ao invés de apenas as suas próprias acções. Isto é em si próprio uma prática de investimento boa e com bom senso, e também protege os administradores de fundos de acusações de tramóias. O outro resultado desta prática é que as fortunas dos trabalhadores agora estão ligadas não apenas à sua própria companhia mas ao mercado como um todo.

E aqui chegamos tanto ao problema como à fraude. Enquanto os receios respeitantes à solvência da Segurança Social são injustificáveis, muitos planos de pensão corporativos — os únicos que têm sido importantes no financiamento da ascensão do mercados de acções nas últimas poucas décadas — estão eles próprios a ameaçar ir para a quebra (bust), arrastando consigo as suas companhias-mãe. O apodrecimento financeiro já começou a penetrar nas companhias de aviação e nas indústrias do aço, e o sector automóvel pode ser o seguinte. (a General Motors relata que as suas obrigações actuais de pensões acrescentam US$ 675 ao custo de cada veículo que produz).

As deficiências não são apenas uma questão de azar. Durante um bom número de anos, as companhias simplesmente não puseram de lado dinheiro suficiente para pagar aos aposentados aquilo que lhes devem. O PBGC estima que o sub-financiamento dos planos de benefícios definidos, por exemplo, aprofundaram-se em US$ 100 mil milhões no ano passado, para chegar a um total de US$ 450 mil milhões. O problema foi criado pelos administradores de fundos e directores financeiros que acreditaram — ou pelo menos pretenderam acreditar — que as reservas de pensões podiam crescer para sempre a fantásticas taxas de retorno. Milliman USA, uma firma de consultoria de benefícios, relata as taxas de retorno assumidas em pensões de investimentos das cem maiores firmas dos EUA. Quão alto apostaram estas companhias? Em 2000 e 2001, a mediana da taxa de retorno projectada foi 9,5 por cento. Em 2002 foi 9,25 por cento. E em 2003 foi de 8,55 por cento.

ERA FÁCIL A ESCOLHA ENTRE CUMPRIR AS SUAS PROMESSAS DE PENSÃO OU RELATAR RENDIMENTOS LÍQUIDOS MAIS ELEVADOS

Trata-se de projecções loucamente optimistas, mesmo pelos padrões de Dick Cheney. No último verão o Financial Times observou que elas conflitam não só com a realidade actual mas também com advertências de peritos importantes como Peter Bernstein, Jeremy Siegel e Jeremy Grantham de que "entrámos num ambiente de baixo retorno" e que consequentemente muitos investidores estão à espera de retornos a longo prazo mais próximos dos 7 por cento ou 5 por cento. Mesmo estas taxas parecem claramente exuberantes, uma vez que os 100 maiores fundos de pensão corporativos ganharam um retorno médio anual de apenas 1,3 por cento entre o fim de 1999 e o fim de 2003. [4]

No princípio de 2001, por exemplo, a IBM sugeriu que ganharia US$ 6,3 mil milhões com activos de fundos de pensão de US$ 61 mil milhões — cerca de 10 por cento. Isto foi uma espantosa demonstração de confiança uma vez que a IBM havia ganho apenas US$ 1,2 mil milhões sobre aqueles activos no ano anterior. Ao que se revelou, a IBM realmente veio a perder US$ 4 mil milhões em 2001. Muito pouco amedrontados, os administradores da companhia previram um retorno de 9,5 por cento em 2002. Eles perderam outros US$ 7 mil milhões. Em 2003 previram um retorno de US$ 6 mil milhões, e — como o mercado começou a recuperar-se — eles finalmente superaram a sua previsão, em US$ 4,4 mil milhões. O resultado desta "recuperação" é que, desde que George W. Bush tomou posse, os activos do fundo de pensões da IBM caíram a pique em mais de US$ 1 mil milhões. No entanto, os administradores de fundos corporativos por toda a América permanecem optimistas.

Tais erros de julgamento raramente são acidentais. Ao pretender que os seus fundos poderiam gerar altos retornos, os administradores buscam uma vantagem real — embora de curto prazo. Quanto mais rapidamente as companhias projectarem os crescimento dos seus fundos, menos terão elas de por de lado para pagar os seus aposentados. Quanto menos puserem nas reservas permitirá por sua vez relatar rendimentos mais elevados, dessa forma conduzindo para cima o preço das próprias acções da companhia para "criar valor para o accionista". Confrontado com uma escolha entre cumprir as suas promessas de pensão ou relatar rendimentos líquidos mais elevados, as companhias simplesmente decidem não cumprir os acordos com os seus empregados. [5]

Esta prática não pode ser sustentada ao longo de 40 anos. É uma espécie de esquema de Ponzi, no qual os lucros presentes são pagos através da promessa de ganhos futuros no mercado de acções. Em algum ponto os aposentados vão querer o dinheiro que possuem. Nos últimos poucos anos tem-se assistido os resultados dessas promessas quebradas na forma de processos judiciais, bancarrotas e, finalmente, aposentados a serem forçados a viver com muito menos do que lhes havia sido prometido. No final das contas, é o PBGC que paga quando os planos vão à falência. Aqui, entretanto, o problema aprofunda-se consideravelmente, porque levantar a conta total relativa ao sub-financiamento do sector corporativo levaria à bancarrota o próprio PBGC.

Em Novembro de 2004 o PBGC relatou que embora tivesse "operado durante vários anos virtualmente sem reclamações", o fim do boom do mercado de acções dera lugar a "um período de reclamações que quebra todos os récordes". Ainda em 2001 o PBGC tinha um excedente de US$ 8 mil milhões, mas uma série de casos de bancarrota empurrou-o para um défice de US$ 23 mil milhões em 2004, um ano em que tomou apenas US$ 1,5 mil milhões em prémios. O PBGC precisaria de mais de 15 anos só para compor o seu défice actual, sem quaisquer novas reclamações a chegarem nesse ínterim. O PBGC propôs que as companhias seguissem regras contabilísticas mais realistas e pagassem prémios que reflectissem os verdadeiros riscos do seu sub-financiamento. Também está a pedir limites mais estritos na capacidade das companhias para fugirem às dívidas das suas pensões através da declaração de bancarrota. [6]

ALGO TEM DE CEDER — OU AS EXPECTATIVAS DOS APOSENTADOS OU AS DO MERCADO DE ACÇÕES

Sem tais mudanças o PBGC será forçado à bancarrota e governo terá de suportar a solução deste impasse. Isto poderia custar tanto quanto US$ 95 mil milhões, de acordo com o Congressional Research Service. Quando chegar a este ponto apenas os lucros de hoje permanecerão privados. As perdas terão sido plenamente socializadas. [7]

Excepto algum súbito influxo de capital, alguma coisa tem de ceder: ou as expectativas dos aposentados ou as do mercado de acções. Infelizmente, isto é um jogo de soma zero no qual muitos americanos estão em ambos os lados ao mesmo tempo. Pensões mais elevadas postas de lado diminuirão rendimentos corporativos. Rendimentos mais baixos por sua vez levarão a cortes nos dividendos e perdas de empregos. Dividendos baixos e desemprego elevado diminuirão a procura por acções — conduzindo a novos declínios na capacidade dos fundos de pensão para pagar aposentados, com mais incumprimentos por toda a parte. Trabalhadores, aposentados, investidores e contribuintes achar-se-ão eles próprios sob o jugo das fortunas dos administradores financeiros que criaram esta situação.

Isto dificilmente é a espécie do feliz socialismo de fundos de pensões que Peter Drucker tinha em mente, no qual trabalhadores-proprietários partilham riscos e prémios da mesma forma como criam os bens e serviços exigidos por um mercado próspero. De facto, o que tem acontecido é que as companhias têm feito um grande esforço não meramente para partilhar o risco mas sim para descarregá-lo inteiramente sobre as costas dos seus empregados, do governo e dos contribuintes em geral.

Este fenómeno da rolagem do risco para baixo pode ser visto mais claramente no movimento por muitas companhias dos programas de benefícios definidos — nos quais aos empregados é garantida um pagamento específico de aposentadoria, baseado no seu histórico salarial — para "planos de contribuição definida", nos quais os trabalhadores nada mais sabem senão quanto está a ser deduzido dos seus cheques de pagamento. A taxa de desembolso é decidida em função de quão bem os mercado de acções comportar-se, o que transfere o risco para os empregados enquanto liberta mais rendimento para os seus empregadores e gera ricas comissões para os administradores do dinheiro. Os fluxos de risco descem a escada económica ao mesmo que os fluxos de caixa sobem.

Dados os problemas generalizados que confrontam as pensões fora do âmbito do governo federal, aparentemente este seria um momento estranho para fazer campanha pela privatização da Segurança Social. Por que haveria alguém de querer envolver a última linha de defesa das pensões americanas num mercado tão perigoso? Estarão Bush e os seus conselheiros inconscientes das probabilidades?

Provavelmente não. Portanto, eles devem ter uma ideia particular em mente. Acreditam, presumivelmente, que alguma espécie de recuperação de mercado é necessária não só para resgatar o PBGC como para resgatar os fundos de pensão, resgatar o mercado de acções e, aliás, resgatar as fortunas políticas do partido dirigente — que é de facto necessário é um boom de Bush. Afinal de contas, um tal boom nos permitiria "conseguir sair do apuro", tal como fizemos tantas vezes antes.

Mas de onde virão os fundos para aumentar os preços das acções? A taxa de poupança nacional é aproximadamente zero, porque a maior parte do rendimento pessoal para gastar livremente — como aquele da maior parte das companhias — é absorvido no reembolso de dívidas. Anteriormente, o Fed podia ter inundado os mercados de capitais com crédito a taxas de juro mais baixas e por esse meio incitado um salto e a bolha no mercado de acções. Mas as taxas de juro estão no seu mais baixo nível desde a década de 1950. Elas não podem ir mais para baixo. [8]

Existe apenas um outro lugar para onde olhar. O novo fluxo de fundos para dentro do mercado de acções terá de vir do próprio trabalho, assim como o fez na década de 1950. A Segurança Social é a maior ameixa de todas, tão grande que virtualmente garante um boom.

MUITAS DAS MAIS FAMOSAS BOLHAS DA HISTÓRIA FORAM PATROCINADAS POR GOVERNOS A FIM DE ESCAPAREM À DÍVIDA

Conversas acerca de bolhas tornaram-se populares nos últimos anos, mas a maior parte das discussões não atinge o ponto chave. Embora o optimismo seja inerente ao espírito humano, ele raramente floresce dentro da espécie de furor necessário para encher uma bolha sem a ajuda do governo. De facto, muitas das mais famosas bolhas da história foram patrocinadas por governos a fim de escaparem à dívida. A Grã-Bretanha, em 1711, persuadiu os possuidores de títulos a trocarem os seus títulos por acções na South Sea Company, a qual se esperava que ficasse rica para além do crescimento da indústria do seu tempo, com o comércio de escravos africanos. No momento em que a bolha da South Sea entrou em colapso, o governo na verdade havia saldado a sua dívida de guerra — e os especuladores foram abandonados na posse de acções sem valor do "sector em crescimento". Em 1716, John Law organizou para a França a bolha do Mississipi de acordo com as mesmas linhas, retirando dívida pública da França através da venda de acções a fim de criar plantações guarnecidas de escravos nos territórios da Louisiana. Isto funcionou durante algum tempo.

O governo americano está agora a tentar executar a mesma espécie de fraude. Bush gostaria de persuadir os titulares de direitos sobre a Segurança Social a trocarem a segurança dos títulos do Tesouro dos EUA por uma oportunidade de comprarem acções sobre as quais se espera um retorno muito mais elevado. Nenhum empresa de risco comparável às companhias South Sea ou Mississipi é necessária. O próprio mercado de acções tornou-se uma bolha, sustentada à tona sem o fardo de gerar bens e serviços reais por um fluxo constante dos novos dólares das aposentadorias.

Não se pode negar que canalizar triliões de dólares da Segurança Social para dentro do mercado de acções produziria ganhos a curto prazo. Mas uma vez gasto este dinheiro, os mercados provavelmente recuariam. É o que acontece após uma bolha financeira. Assim, estaríamos de volta ao ponto onde estamos hoje, só que muito mais pobres e sem nenhum sistema de pensões garantidas para os americanos idosos — que, naturalmente, precisariam de pensões garantidas mais do que nunca à medida que os seus haveres em acções continuassem a perder valor. Na verdade, muitos outros países estão agora exactamente a recuperar-se das suas próprias experiências funestas que Augusto Pinochet e Margaret Thatcher chamaram de "capitalismo do trabalho" e Bush chama, sem qualquer ironia aparente, uma "sociedade de accionistas" ("ownership society") [9]

Na década de 1930, John Maynard Keynes encorajou governos a incidirem em défices orçamentais a fim de aumentar o poder de compra de bens e serviços da economia. O seu ponto de referência era a "economia real" — a economia da produção e do consumo, do investimento em capital e em trabalho para operar aquele capital. Enquanto Keynes dizia aos governos para premirem a bomba com programas de gastos públicos para por em andamento o investimento e o emprego internos, Bush agora procura premir a bomba do mercado de acções com contribuições da Segurança Social. [10] Este é o próximo passo natural da nossa economia real para a economia dos sonhos.

Notas
[1] Opositores de Bush notam uma possível terceira razão, que é ele estar à espera de reduzir o New Deal em favor de um governo mais reduzido. Pode ser verdade que Bush não gosta do New Deal, mas é difícil encarar a sua proposta de substituição como uma alternativa de governo pequeno. Uma transferência de fundos por obrigação federal — quer seja dos bolsos dos contribuintes para Títulos do Tesouro, assim como da Segurança Social, quer dos bolsos dos contribuintes para o mercado de acções, como proposto por Bush — é ainda uma transferência de fundos por obrigação federal.
[2] Qualquer relacionamento entre a solvência da Segurança Social e a perspectiva destas contas pessoais é puramente retórica. Logo após um discurso de Bush sobre o Estado da União um repórter perguntou a um "senior administration official" se era exacto afirmar que as próprias contas de poupança pessoal "não teriam qualquer efeito sobre a questão da solvência". A resposta, surpreendentemente franca, foi: sim — "há uma clara interferência".
[3] Apesar de, como aprenderam recentemente antigos empregados da Enron e da WorldCom, o preço de demonstrar lealdade ainda possa ser bastante excessivo.
[4] Um Título do Tesouro a três anos comprado no fim de 1999 teria retornado 0 por cento.
[5] Planos com taxas projectadas mais realistas foram considerados "super-financiados" e esvaziados.
[6] Razoáveis como parecem ser estes pedidos, eles estão a ser contrariados pelos mesmos administradores corporativos que começaram por criar a confusão. No ano passado o American Benefits Council, a organização de lobby dos administradores de fundos de pensão, convenceu mesmo os reguladores a abandonarem exigências de que as companhias estimassem taxas de retorno realistas.
[7] Esta estimativa provavelmente é baixa. O precedente é a salvação de emergência (bailout) do Federal Savings and Loand Insurance Corporation, a qual acabou por custar US$ 200 mil milhões aos contribuintes.
[8] Após a II Guerra Mundial as taxas de juro ascenderam para um pico, em 1980, de mais de 21 por cento. O resultado foram cerca de quatro décadas de perdas de capital nos títulos cujas taxas de juro são fixadas no momento da compra — e um firme ascenso nas acções. Desde 1980, entretanto, as taxas de juro têm caído, criando o maior boom do mercado de títulos da história.
[9] No Chile, conglomerados investiram a retenção dos cheques de pagamento dos seus empregados nas suas próprias acções ou em empréstimos a filiais cujo valor era então destruído em bancarrotas financeiras fabricadas. O problema tornou-se tão mau por volta de 1980 que o governo entregou a administração à American e outras firmas internacionais. A maior parte das discussões da "estória de êxito" do Chile prefere começar logo após estas bancarrotas fraudulentas, as quais naturalmente dão uma aguda inclinação base para o pico à taxa de retorno que se afirma ser normal. O equivalente para os EUA seria começar numa nova tendência logo após um crash tipo 1929 no mercado de acções. Quando alguém começa a partir de um pico, tal como hoje, é muito mais difícil dar a impressão estatística de que uma decolagem fantástica está pronta a acontecer.
[10] O génio das últimas administrações, Democrata e Republicana, tem sido transferir inflação para o mercado de acções — isto é para os preços das acções e dos títulos ao invés de transferi-los para os preços do trabalho e da produção. Os salários reais hoje são mais baixos do que eram em 1964.

[NT1] Ponzi foi um vigarista que na década de 1930 aplicou nos EUA o golpe da "pirâmide financeira", prometendo duplicar em 90 dias o dinheiro que tomava emprestado. Um esquema semelhante ao da D. Branca verificado em Portugal na década de 1970.


[*] Professor de C. Económicas na Universidade do Missouri, Kansas City, membro do Institute for the Study of Long Term Economic Trends (ISLET) e autor de numerosos livros sobre finanças internacionais e internas, incluindo Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance . Contacto: mh@michael-hudson.com

Do mesmo autor ver também:
  • Irá a Europa sofrer da síndroma suíça?
  • Um grande especialista revela segredos dos centros bancários offshore

    O original encontra-se em http://www.michael-hudson.com/ .   Tradução de JF.

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 15/Nov/05