Morreu o inimigo de nove décimos da humanidade

por Stephen Gowans [*]

Milton Friedman — que foi instrumental para proporcionar a justificação intelectual que as classes capitalistas precisavam para reverter as reformas que haviam concedido ao trabalho após a Segunda Guerra Mundial — morreu.

O neoliberalismo de Friedman — a ideia de que as empresas e os mercados devem ser livres e de que, se não forem, os governos devem intervir para assim torná-los — tem dois ensaios.

O primeiro é o Chile, a seguir ao outro 11 de Setembro, o de 1973. Foi nessa data que Augusto Pinochet, apoiado por companhias americanas, a CIA e Henry Kissinger, derrubou o governo de Salvador Allende.

Os janízaros intelectuais de Friedman, os Chicago Boys, um grupo de economistas guerreiros de classe da Universidade de Chicago, onde ensinava Friedman, correu ao Chile para aconselhar o novo governo militar sobre as ideias económicas duras-para-os-pobres-generosas-para-os-ricos de Friedman e dos cúmplices intelectuais Ludwig von Mises e Friedrish Hayek.

As nacionalizações foram revertidas, os activos públicos vendidos, os recursos naturais abertos à exploração desenfreada, e a segurança social foi privatizada. As firmas estrangeiras foram cortejadas, gratificadas e garantidas quanto ao direito de repatriarem lucros.

Trinta anos depois o neoliberalismo foi levado ao Iraque, também pelas armas. Em 19 de Setembro de 2003 Paul Bremer, o proconsul americano no Iraque, impôs as ideias de Friedman sobre uma país que fora trazido à força à suserania americana.

Bremer definiu uma carta de direitos ao capital estrangeiro, incluindo o direito de comprar empresas públicas do Iraque; possuir negócios iraquianos; repatriar lucros; possuir bancos iraquianos; estar livre de barreiras ao comércio e ao investimento e pagar pouco imposto. Para assegurar o capital estrangeiro de que também teria o direito ao trabalho barato, Bremer baniu greves em sectores chave e restringiu severamente a sindicalização.

O neoliberalismo prometia estimular o crescimento económico, mas fracassou miseravelmente. Desde que as ideias neoliberais se tornaram ideologicamente hegemónicas nos fins da década de 70, o crescimento económico reduziu-se globalmente, não aumentou.

Mas no que o neoliberalismo teve um êxito espectacular foi na redução da inflação (pelo aumento do desemprego) e na distribuição da riqueza para cima. Por outras palavras, o neoliberalismo não tornou o mundo mais rico, mas fez isto para aqueles que estavam no topo da riqueza.

Será que Friedman foi um inimigo de nove décimos da humanidade? De certa forma. Mas não foi como se as suas ideias tivessem mudado o mundo.

Ao contrário, as ideias neoliberais de Friedman foram retiradas da obscuridade (elas foram desenvolvidas nos anos 30 e permaneceram à margem durante décadas) porque tornaram-se compatíveis num determinando momento do tempo com os interesses de famílias capitalistas hereditárias, de directores de corporações e banqueiros cujos interesses políticos e económicos estavam a ser erodidos pelo crescente bem estar social keynesiano dos anos 70.

A inflação incontrolada estava a reduzir o valor dos seus activos, sindicatos fortes e programas progressistas de bem estar social suportados por importados estavam a cortar os seus resultados finais, e a libertação colonial estava a minar os lucros do além mar.

Nos gabinetes de directores e clubes privados estava claro que alguma coisa tinha de ser feita.

O bem estar social do keynesianismo, que fora tornado possível pela altas taxas de crescimento do pós-guerra (o crescimento foram estimulado pela procura reprimida dos anos da guerra, o desenvolvimento da indústria automóvel e o seu efeito multiplicador no estímulo a indústrias a jusante, e os pesados gastos militares da guerra fria e do programa espacial) haviam feito o seu percurso.

O neoliberalismo oferecia uma cobertura atraente para políticas que governo dominado pela classe capitalista prosseguiriam de qualquer forma. Se Friedman não existisse ele teria de ser inventado, o que equivale a dizer que alguém com ideias semelhantes teria sido extraído da obscuridade e empurrado para debaixo dos holofotes como um gigante intelectual, tal como ele foi.

Para dar respeitabilidade aos seus pontos de vista, Friedman, e Hayek também, ganharam o Prémio Nobel de Economia. O prémio não fazia parte dos outros (os reais) Prémios Nobel, mas era manipulado pela elite dos banqueiros suecos, um grupo que, por razões óbvias, sorri carinhosamente para qualquer um que diga que eles, e aqueles que partilham os mesmos interesses de classe, deveriam ser beneficiados.

Que o neoliberalismo era apenas uma fachada, uma camuflagem por trás da qual políticas de pilhagem e saque eram prosseguidas, está claro no abandono da política neoliberal sempre que entrava em conflito com interesses da classe capitalista.

Ronald Reagan, que se apresentava como campeão do neoliberalismo, não seguia os dogmas neoliberais de reduzir o sector público ou reduzir impostos.

(Nem tão pouco George Bush, que trauteia acerca do livre comércio enquanto mantem um programa de subsídios e barreiras tarifárias para proteger a indústria siderúrgica americana, bem como os sectores agrícolas, aeroespacial, biomédicos e militares).

Reagan certamente apoiou as políticas neoliberais de Paul Volcker no Fed, esmagou sindicatos e adoptou uma atitude de devastação quanto à política de relações trabalhistas.

Mas enquanto ele esmagava impostos para os 20 por cento do topo na pirâmide dos rendimentos, aumentava impostos para os restantes 80 por cento — o maior aumento de impostos para o número de pessoas em tempo de paz desde sempre.

Ele fez isto para financiar um aumento maciço no sector público através de uma escalada militar — também financiada pela dívida, alimentando um colossal crescimento na dívida do sector público.

Banqueiros de investimento que mantêm títulos governamentais e empreiteiros militares como a Boeing, Lockheed-Martin e General Electric colheram a bonança do crescimento das encomendas do governo por bombardeiros, mísseis de cruzeiro e outros dispendiosos apetrechos de guerra. Todos os outros pagaram a conta.

Ao invés de serem neoliberais, as políticas de Reagan foram pragmaticamente pro-capitalistas — uma mistura de keynesianismo militar e de militarismo postos juntos para cumprir os desafios que a classe capitalista enfrentava naquele tempo. O neoliberalismo, na sua forma pura, era para ser uma doutrina aplicada na prática apenas ao Terceiro Mundo, onde a sua ênfase nos mercados livres, no livre comércio e na livre empresa beneficiaria investidores e corporações transnacionais do Ocidente.

John Williamson, um dos filhos intelectuais de Friedman, reconheceu que o neoliberalismo "o governo americano promove-o no exterior, mas não o pratica internamente".

No dia seguinte à sua morte, o meu jornal matutino estampava uma fotografia de Friedman na primeira página, sob a manchete "Um firme campeão da liberdade".

Se bem que ele possa ter sido um firme campeão de liberdades que só alcançam a livre empresa e os livres mercados, as ideias de Friedman tornaram-se uma justificação cómoda para a busca, pelas famílias ricas, corporações e bancos de investimento, da liberdade capitalista de saquear e explorar.

Para mais leituras acerca do neoliberalismo recomendo "A luta de classes à escala mundial" , de Vicente Navarro, e "A Brief History of Neoliberalism", de David Harvey, Oxford University Press, 2005.

O original encontra-se em
http://gowans.blogspot.com/2006/11/enemy-to-910ths-of-humanity-dies.html


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
20/Nov/06