O significado da grande metáfora para a guerra ao terrorismo: a América define os seus alvos

por M. Shahid Alam [*]

Terrorismo em 1773. Em 11 de Setembro de 2001 os Estados Unidos declararam uma guerra global contra o terrorismo. Desde então tem-nos sido dito ad nauseam que o terrorismo é o grande flagelo do nosso tempo, e que os terroristas são o mal encarnado. No século XXI os Estados Unidos travarão guerra contra um novo "totalitarismo" dos islâmicos, uma repetição da guerra travada anteriormente contra outras encarnações do mal, os credos comunista e fascista. O mundo civilizado, conduzido pelos EUA, vencerá esta guerra, tal como venceu as duas anteriores, mas será uma guerra longa, talvez mesmo uma guerra custosa.

Uma vez que o terrorismo é agora a grande metáfora para estruturar conflitos globais, regionais e subnacionais, convém que tentemos entender a natureza desta guerra contra o 'terrorismo' examinando como os Estados Unidos definem esta besta. Deixe-nos ordenhar as definições oficiais americanas para verificar quais as percepções que eles nos apresentam. É muito possível que possamos aprender umas poucas coisas que nunca aprenderíamos a partir de comunicados oficiais americanos acerca desta guerra: porque os EUA travam esta guerra e quem são os inimigos.

Considerem-se as definições oficiais de terrorismo avançadas pelas três agências americanas que têm a responsabilidade de combatê-lo: [1]

FBI. "A utilização ilegal de força ou violência contra pessoas ou propriedades para intimidar ou coagir um governo, a população civil, ou qualquer segmento da mesma, para promover objectivos políticos ou sociais".

Department of Defense (DoD). "A utilização calculada de violência ou a ameaça de violência para inculcar medo, destinada a coagir ou intimidar governos ou sociedades a fim de perseguir objectivos que geralmente são políticos, religiosos ou ideológicos".

Department of State (DoS). "Violência premeditada, politicamente motivada, perpetrada contra alvos não combatentes por agentes subnacionais ou clandestinos, habitualmente destinada a influenciar uma audiência".

Significativamente, as duas primeiras definições não identificam os agentes que se envolvem no terror. Ao invés disso, elas apenas descrevem o que estes agentes fazem: eles "intimidam ou coagem um governo, a população civil, ou qualquer segmento da mesma", ou "coagem ou intimidam governos ou sociedades". A referência a "agentes subnacionais ou clandestinos" na terceira definição aponta para actores não estatais, embora isto não seja claro. Em princípio, isto deixa os Estados Unidos livres para por no mesmo nível o ónus do terrorismo contra o Estado e agentes não estatais.

As definições oficiais são unanimes em identificar "violência" e "força" como os marcadores do terrorismo; a segunda definição também inclui a "ameaça de violência". Por outras palavras, o terrorismo é igualado ao uso de meios violentos. Isto tem a vantagem de excluir acções que são visivelmente não violentas mas que mutilam ou matam pessoas. Estas concentração sobre os meios violentos é politicamente útil: ela faz vista grossa aos horrores endémicos produzidos deliberadamente ou conscientemente por estruturas de poder desigual.

Estas definições também são vagas acerca dos alvos mais próximos do terrorismo.

O DoD não identifica um alvo, ao passo que o FBI não especifica se as "pessoas ou propriedades" alvejadas pertencem ao domínio privado, oficial ou militar. Apenas o Dos restringe os alvos a "não combatentes". [2] Contudo, isto é uma categoria muito vasta. Ela exclui apenas aqueles segmentos dos militares que estão empenhados activamente em hostilidades militares. Parece que aos inimigos da América são oferecidos poucos alvos legítimos.

Finalmente, as agências americanas definem os objectivos do terrorismo com um pincel grosso. Nos seus objectivos, o terrorista não é diferente de outros actores políticos; seus objectivos são "políticos, religiosos ou ideológicos". O terrorista procura influenciar uma audiência quer seja o governo, a sociedade ou algum segmento de sociedade. A mensagem é clara: nenhuns objectivos "políticos, religiosos ou ideológicos" podem ser apoiados pela violência.

Na definição oficial americana, portanto, terroristas são actores estatais ou não estatais que se empenham, ou ameaçam, em acções violentas, que produzem dano a propriedades ou pessoas 'não combatentes", numa formulação para finalidades políticas, religiosas ou ideológicas. Alternativamente, o terrorismo é definido em termos de quatro ingredientes. Os agentes do terror podem ser actores estatais ou não estatais. Os terroristas empregam meios violentos, reais ou ameaçados. Os instrumentos empregados pelos terroristas são violentos se eles resultarem em danos a pessoas ou propriedades. Finalmente, há poucos restrições quanto aos objectivos dos terroristas.

Considere-se uma estranha implicação das definições oficiais americanas de terrorismo. Elas implicam que o Boston Tea Party [NT] foi um acto de 'terrorismo'. A 'Festa' violou a lei britânica; destruiu propriedade, e sua intenção era "intimidar ou coagir" o governo britânico. A fortiori , de acordo com as definições oficiais americanas, os pais fundadores, que conduziram uma insurreição armada contra a autoridade legal dos britânicos na América, também parecem ser 'terroristas'. Trata-se de uma anomalia pouco notada.

Deveria ser claro que as definições oficiais americanas de terrorismo procuram deslegitimizar todas as formas de violência ao serviço de quaisquer objectivos políticos. Uma vez que é muito mais difícil criminalizar objectivos políticos legítimos que são hostis aos seus interesses, os Estados Unidos procuram restringir os instrumentos 'legítimos' disponíveis para alcançar aqueles objectivos. A violência não é um instrumento legítimo de resistência quaisquer que sejam as condições a que ela se opõe. Se esta abordagem também inclui os pais fundados da América como 'terroristas', isto pouco dano podia fazer à lógica da América para travar guerras sem fim. Poucos americanos ficam perturbados por esta inconsistência.

As definições oficiais americanas de terrorismo também sofrem de um problema oposto: elas ficam aquém das expectativas na sua cobertura do terrorismo. Isto é porque o terrorismo só pode ocorrer através do uso de meios violentos que são violentos per se. Se actores não estatais infectados com SIDA pretendessem entrar num país, e empenhar-se em actos sexuais aleatórios, acabando por produzir uma epidemia de SIDA, eles não poderiam ser descritos como terroristas sob as definições americanas. Em geral, a difusão de produtos patogénicos, seja através da água, da comida, do ar, de seringas, cobertores ou actos sexuais, não pode ser acusada de terrorismo. Nenhum acto intrinsecamente violenta é exigido para difundir produtos patogénicos.

As definições americanas de terrorismo tornam-se mais problemáticas quando as utilizamos para julgar a conduta de sucessivos governos dos EUA. Os Estados Unidos empregaram frequentemente acções violentas contra civis internamente e no exterior as quais, sob as suas próprias definições, teriam de ser descritas como terrorismo. [3] Na verdade, numa avaliação objectiva do terrorismo global ao longo dos últimos dois séculos, um conjunto dos principais especialistas em ética do mundo poderia muito bem concluir que os Estados Unidos cabem facilmente na categoria dos piores criminosos. Naturalmente, a Alemanha, Grã-Bretanha, França, Espanha, Bélgica, Itália, União Soviética e Japão também teriam de juntar-se às posições cimeiras nesta lista. Se o Iraque sob Saddam aparecer nesta lista, ele pode ganhar um lugar muito próximo do fim.

Haverá quaisquer lições escondidas nisto tudo? Duas vêm facilmente à mente. Primeiro, nenhum país que vive numa casa de vidro deveria atirar pedras aos outros. Segundo, se alguns sujeitos coléricos lançam umas poucas pedras sobre você, estilhaçando umas tantas vidraças, então, antes de ficar demasiado nervoso, comece por fazer um inventário dos danos que você tem cometido ao longo dos anos em todas as casas da sua vizinhança. Isto seria uma resposta apropriada, ao invés de pregar a virtude e começar a atirar pedras em todas as casas que você cobiça pela sua localização ou pelos seus tesouros.

Mas quando as lições custam barato ninguém aprende nada. Os poderosos nunca aprenderam uma lição enquanto puderam ensinar uma ou duas lições aos outros. Assim, parece que as pedras serão atiradas de volta, em ambas as direcções, até que um lado ou o outro, ou ambos, tenham aprendido uma ou duas lições. Até então, o restante de nós têm de tentar esconder-se e proteger as cabeças de danos irreparáveis. E enquanto mantivermos as nossas cabeças tentar por algum senso dentro das cabeças daqueles que estão ocupados a lançar pedras em torno de nós.

25/Jul/2005

[*] Professor de Ciências Económicas na Northeastern University. Alguns dos seus ensaios publicados em CounterPunch estão disponíveis no livro Is There An Islamic Problem (Kuala Lumpur: The Other Press, 2004). O seu email é alqalam02760@yahoo.com .

Notas
[1] David J. Whittaker, ed., The terrorism reader (London and New York: Routledge, 2001): 3.
[2] US Department of State, Patterns of global terrorism, 1993. www.fas.org/irp/ threat/terror_93/intro.html
[3] Churchill Ward, A little matter of genocide (San Francisco: City Light Books, 1998); and Fredereck H. Gareau, State terrorism and the United States (London: Zed Books, 2004).
[NT] Em 16 de Dezembro de 1773, patriotas americanos vestidos como índios Mohawk abordaram três navios da East Indian Company atracados no porto de Boston e lançaram ao mar todo o chá ali contido. Este acontecimento ficou conhecido como o "Boston Tea Party". Foi uma reacção ao Tea Act de 1773, aprovado pelo Parlamento a fim de salvar a British East India Company da bancarrota. Este diploma eliminava quase todos os impostos sobre o chá, permitindo que chegasse a um baixo preço aos consumidores americanos e assim afastando do negócio os contrabandistas da colónia.


O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/shahid07252005.html .
Tradução de JF.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
29/Jul/05