Como sair do euro
Breves considerações políticas, legais e
práticas
Partilho convosco uma reflexão pessoal, integrada, tal como outras, na
análise e no debate partidários sobre o tema desta sessão.
Permitam-me começar com uma brincadeira, embora mais séria do que
possa parecer à primeira vista.
É conhecido da literatura económica o chamado
"triângulo das impossibilidades", cuja validade aqui não
se discute, sobre a impossibilidade de ter simultaneamente uma taxa de
câmbio fixa, livre circulação de capitais e uma
política monetária independente. Segundo o enunciado, quaisquer
duas destas três condições implicam que a terceira
não se possa realizar.
No nosso caso também temos um triângulo, com a
reestruturação da dívida, a saída do euro e a
nacionalização da banca, só que, por contraste, devemos
chamar-lhe o "triângulo das
inevitabilidades
". Quaisquer duas destas três condições implicam que a
terceira também se tenha que realizar.
A reestruturação (profunda) da dívida e a saída do
euro implicam a nacionalização (do essencial) da banca, para
assegurar a sua liquidez e solvência. A saída do euro e a
nacionalização da banca implicam a reestruturação
da dívida, para capacitar o Estado e o sistema bancário a cumprir
as suas funções sociais. A nacionalização da banca
e a reestruturação da dívida implicam a saída do
euro, para se poder financiar, quanto mais não seja em último
recurso, o Estado e a banca.
O PCP tem a compreensão de que estas três componentes, a
reestruturação das dívidas pública e externa, a
saída do euro e a nacionalização da banca, estão
profundamente ligadas, influenciam-se reciprocamente e reclamam uma
solução integrada, que seja pensada e preparada em conjunto. E
articulada com as outras facetas da política patriótica e de
esquerda que propomos para o país.
Sem prejuízo do entrosamento das medidas específicas das
três componentes, a reestruturação da dívida, mais
premente e consensualizada na sociedade portuguesa, deve preceder a
saída do euro. Mas a evolução dos acontecimentos e a posta
em marcha, ainda que preparatória, destes processos, pode levar à
antecipação de medidas, nomeadamente de controlo público
sobre o setor financeiro.
Nesta intervenção centramo-nos no abandono da moeda única,
não tanto na sua necessidade e justeza, mas na sua viabilidade e
concretização.
Não se nega a complexidade deste processo, mas importa não deixar
no ar a ideia de que a saída do euro implica a saída da
União Europeia. O argumento é conhecido. A saída
não está contemplada, a UEM obriga todos os países a
pertencer à zona euro, ou a ela aderir logo que reúnam os
critérios, as exceções do Reino Unido e da Dinamarca
são derrogações especiais explicitadas em tratado, obtidas
na fase de negociação, novas exceções também
teriam que ser consagradas em tratado, que necessitariam da morosa e
implausível aprovação formal dos parlamentos de todos os
28 estados-membros. Se um país quiser sair da UE pode fazê-lo,
não pode é sair da zona euro e ficar na UE, porque isso
não depende só dele e precisa do consentimento de todos os
outros, devidamente institucionalizado.
A questão é fundamentalmente política. Mas, ainda assim,
convém recordar a Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados, que configura o padrão internacional e é aceite pela
jurisprudência comunitária. Dois artigos são fundamentais,
o 61º e o 62º. De acordo com o primeiro, os estados têm o
direito de se retirar de tratados quando a sua pertença se tornou
definitivamente insustentável; de acordo com o segundo, têm o
direito de se retirar quando a mudança fundamental de
circunstâncias põe em causa a base de vinculação e
das obrigações assumidas. Um e outro podem ser invocados por
Portugal em relação à zona euro, que em vez de
estabilidade e desenvolvimento, o mergulhou numa insuportável
degradação sem termo, modificando substancialmente o
balanço de vantagens e desvantagens.
As disposições de Maastricht de progressiva
euroização da UE assentavam numa conceção
implícita de eternização da moeda única, hoje mais
que posta em causa. E os próprios dirigentes políticos
alemães e franceses, desde a crise irrompida em 2008, ameaçaram
repetidamente a Grécia de expulsão da zona euro, sem que
estivesse propriamente em causa a permanência na UE.
Note-se que as disposições dos tratados de nada valeram quando,
por exemplo, se violou generalizadamente a limitação dos
défices orçamentais ou quando se instaurou em Chipre o prolongado
controlo de capitais que ainda perdura.
A verdade é que, ainda hoje, é normal estar dentro da UE e fora
do euro, como sucede com dez países, e que a institucionalidade europeia
é uma negociação permanente, determinada fundamentalmente
pela necessidade, a relação de forças sociais e a
determinação dos estados e dos povos.
Mais complicados podem ser os aspetos económicos e práticos do
problema.
O abandono do euro é necessário, mas tem como
condições indispensáveis a preparação do
país, o respeito pela vontade popular, a condução por um
governo patriótico e de esquerda. Um governo empenhado em defender os
rendimentos, as poupanças, os níveis de vida e os direitos da
generalidade da população.
A rutura com o euro deve processar-se da forma mais suave possível, com
o propósito de preservar e melhorar a situação material do
povo, de recuperar e acelerar o crescimento económico e de abrir
potencialidades ao desenvolvimento do país. Uma saída
forçada, involuntária, impreparada, catastrófica,
precipitada pela degradação da situação nacional ou
europeia, pela mão de um governo de direita, não defende nem
interessa ao povo português.
Com o abandono do euro, esta moeda não desaparece. Conserva-se como a
segunda moeda de reserva internacional, a moeda básica do espaço
económico onde estamos integrados, dos nossos principais parceiros
comerciais, dos nossos vizinhos espanhóis. Isso levanta problemas
específicos no processo de transição, que exige respostas
adaptadas a esse período, que não têm necessariamente que
manter-se nas fases posteriores.
O período de transição dura enquanto não se
consolidar a nova moeda, estabilizarem razoavelmente a inflação e
o câmbio e subsistirem perturbações ou riscos elevados para
o funcionamento regular das instituições.
É crucial minimizar a fuga de capitais. Não temos ingenuidade
nenhuma e sabemos que pode começar bastante antes da
introdução da nova moeda, desde logo com os preparativos, com a
decisão ou até mesmo com a intenção.
Por isso se propõe a instituição excecional e
transitória, aprovada por razões de ordem pública pelos
órgãos de soberania competentes, desde o início da
preparação da saída, de um controlo de capitais em escala
móvel, caraterizado por uma aplicação expedita, pelo
governo ou em sua representação, geral ou seletiva, de um
conjunto de disposições, mais apertadas ou mais relaxadas quanto
à severidade, sobre a movimentação de fundos, divisas e
ativos financeiros, acompanhadas das sanções imediatas em caso de
incumprimento.
Neste regime, proporcionado e flexível, que reforça a sua
severidade na estrita medida em que a evolução da
situação exigir, as regras do jogo são claras,
transparentes, conhecidas e dissuasoras. Conforme a evolução da
situação e o comportamento particular dos agentes
económicos, as disposições, sob avaliação e
revisão permanentes, podem variar, num sentido ou noutro, basicamente
entre dois extremos. Desde a manutenção presente de livre
circulação até fortíssimas limitações
ao movimento de capitais.
Além do necessário acompanhamento e fiscalização,
possibilita-se assim a restrição e sujeição a
autorização prévia, pelo governo ou pelo Banco de
Portugal, da transferência de fundos e ativos financeiros em euros e
outras divisas para o estrangeiro, de levantamentos e transferências
bancárias de divisas, da negociação de títulos na
bolsa. O
off-shore
da Madeira é definitivamente encerrado.
A preocupação é de manter, a cada momento, o máximo
de normalidade e o controlo mais leve possíveis, salvaguardando contudo
a níveis seguros o estoque de capitais e de divisas do país.
No desligamento do euro, o Banco de Portugal, desprendido do BCE, reassume
plenamente as suas funções de banco central, designadamente a de
banco emissor, regulador e prestamista de último recurso.
Numa saída voluntária, a introdução formal da nova
moeda só deve fazer-se depois de produzidas as novas notas e moedas (as
notas pela Valora, as moedas pela Casa da Moeda).
Reintroduz-se o escudo, dividido em 100 centavos, com uma taxa de
conversão inicial de 1 euro por 1 escudo. Os preços ficam, por
isso, na mesma.
A partir desse momento, toda a vida económica e financeira do
país é instantaneamente traduzida para escudos. Durante um
mês, o euro ainda tem curso legal a par do escudo. Mas tudo passa a estar
avaliado, apreçado e transacionado em escudos. As caixas multibancos
só fornecem escudos.
O Banco de Portugal recolhe e adiciona à sua reserva internacional de
divisas o máximo de numerário em euros em
circulação no país, através da conversão
para escudos.
A dívida emitida segundo a lei nacional, pública ou privada, como
a dívida dos particulares aos bancos, é convertida para escudos,
à taxa inicial de 1 para 1. O mesmo para as rendas de contratos,
nomeadamente de arrendamento, e para os prémios e
indemnizações dos seguros. Recupera-se a Lisbor como taxa
interbancária de referência. A bolsa de valores passa a funcionar
oficialmente em escudos e eventualmente separa-se do grupo Euronext.
A população pode serenar quanto às suas poupanças.
Nesta proposta conservam-se os euros dos depósitos bancários,
à ordem e a prazo, e doutras contas de particulares, empresas e
instituições, sem qualquer penalização e sem
conversão para escudos, salvo por vontade do proprietário.
Esta pode ser feita a qualquer altura, à taxa de câmbio do
momento, como com qualquer outra divisa estrangeira. Por exemplo, nos
levantamentos nas caixas multibanco e nos pagamentos automáticos,
utilizam-se os euros da conta bancária, convertidos ao câmbio
oficial presente, apenas depois de esgotados os escudos disponíveis.
Os juros dos atuais depósitos a prazo e de outras
aplicações de poupança passam a ser atribuídos e
capitalizados em escudos, mas no valor equivalente, ao câmbio presente,
ao que seriam em euros e mantendo a respetiva indexação
até ao final das maturidades.
A consolidação da nova moeda exige que o câmbio oficial
seja reconhecido como válido. Doutro modo, surgiriam câmbios
paralelos muito diferenciados e a população preferiria levantar
os euros e trocá-los nos circuitos informais e clandestinos. Para evitar
o mercado negro de euros e divisas e para se evitar o gasto de preciosas
reservas internacionais do Banco de Portugal a defender câmbios que se
podem revelar forçados e artificiais, sobretudo se as tensões de
desvalorização forem, ainda que pontualmente, demasiado fortes, o
regime de câmbio, nesta fase de transição, em que o
país se pode defrontar com uma grande escassez de divisas, deve ser
flexível.
O câmbio oficial é estabelecido pela média ponderada
diária dos câmbios livremente praticados, apurada automaticamente
por consulta aos principais agentes de câmbio, especialmente os bancos
comerciais. E, reciprocamente, fornece a estes a bitola, tanto mais que
é o aplicado pelo Banco de Portugal e na rede multibanco.
Ao início, designadamente no período em que o pagamento em euros
ainda é aceite, os preços não tenderão a variar
muito por efeito do câmbio, porque a procura de escudos, ditada pelas
necessidades da vida corrente que se passou a fazer nesta moeda, contraria a
depreciação face ao euro, que poderá evidenciar-se quando
o escudo estiver generalizado na ordem interna e a influência externa,
especialmente as necessidades do comércio, começar a fazer
prevalecer a procura sobre a oferta de euros.
É necessário defender os rendimentos e o consumo popular, com a
indexação do salário mínimo geral, do
salário médio do setor público e das pensões e
prestações sociais à inflação, com o
tabelamento de preços de medicamentos, outros produtos e
serviços, e defender as micro, pequenas e médias empresas com a
imposição de preços máximos a fatores como o
crédito, seguros, energia, telecomunicações e portagens.
Instrumentos fundamentais são o controlo público,
preparatório da nacionalização definitiva e justificado
pela defesa do interesse público num período excecional, do
sistema financeiro e do essencial do setor energético, neste caso para
garantir e racionalizar o abastecimento e consumo energético.
É difícil, numa curta exposição, explicar ao
pormenor, mas espero ter fornecido uma ideia de como, apesar dos riscos, das
complicações, das eventuais perturbações, a
saída do euro, integrada coerentemente com a restruturação
das dívidas pública e externa e a nacionalização da
banca, necessária para recolocar o nosso país numa senda de
crescimento e desenvolvimento, é, ao contrário do que auguram,
não desinteressadamente, alguns profetas da desgraça,
perfeitamente exequível. O que será uma evidência, quando o
nosso povo a concretizar.
[*]
Intervenção proferida na Sessão Pública "A
Dívida, o Euro e os interesses nacionais", realizada a
287setembro/2014. Esta intervenção faz sequência à de
João Ferreira
. Esta última refere-se à
necessidade
de sair do Euro, ao passo que a de Brotas às
possibilidades
de saída.
Esta intervenção encontra-se em
http://resistir.info/
.
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