Guerra contra o terrorismo ou guerra contra as liberdades?
Para medir a amplitude dos ataques que têm sido levados a cabo contra as
liberdades em nome da luta antiterrorista, o exemplo da Grã-Bretanha
revela-se particularmente interessante. Ela é o país europeu onde
o desmantelamento do Estado de direito se encontra no ponto mais
avançado, ultrapassando, em muitos casos, as medidas tomadas nos Estados
Unidos. Observar o que se passa em Inglaterra permite-nos perceber
imediatamente que tipo de reforma é que os governos europeus nos
irão propor no futuro próximo.
O governo britânico dispõe de uma capacidade de
antecipação relativamente ao que se passa no continente. Essa
antecipação é com efeito dupla. Ela existe em
relação às medidas tomadas nos outros países
europeus, mas também em relação aos atentados em si. O
desmantelamento das liberdades públicas e privadas é geralmente
justificado como uma resposta aos actos de terrorismo. A Grã-Bretanha
apresenta a particularidade de a legislação antiterrorista
preceder os atentados aos quais ela é susceptível de responder,
produzindo assim uma nova luz sobre a dialéctica que se quis estabelecer
entre os atentados e o abandono das nossas liberdades.
Os delitos políticos
A Grã-Bretanha foi o primeiro país a adoptar uma lei
antiterrorista da nova geração:
the Terrorism Act 2000.
Relativamente à antiga legislação, destinada a lutar
contra o IRA, a nova lei não tem como objectivo punir determinados
grupos ou fracções particulares da população (a
base por detrás da organização a combater), mas antes,
permite o accionamento de medidas que limitam as liberdades do conjunto dos
cidadãos.
The Terrorism Act 2000
apresenta um carácter claramente político e cria um delito de
intenção. O que define um acto terrorista é que ele
é praticado com a intenção de fazer pressão sobre o
governo ou sobre determinado corpo administrativo. Nesse sentido, essa lei
permite a criminalização de qualquer movimento social. Essa lei
serviu de modelo para a decisão-quadro da União Europeia
relativamente ao terrorismo. Essa decisão-quadro foi integrada nos
códigos penais dos Estados membros.
Em Fevereiro de 2001, sete meses antes dos atentados nos Estados Unidos, o
governo de Blair adoptou o
the Terrorism Act 2001.
Essa lei permite, à semelhança do
Patriot Act
americano, adoptado imediatamente depois dos acontecimentos de 11 de Setembro,
o encarceramento indefinido, sem julgamento nem inculpação, de
estrangeiros simplesmente suspeitos de terrorismo. A ausência de provas
contra os indivíduos encarcerados, bem como a impossibilidade de os
apresentar perante um tribunal, justifica o carácter administrativo da
sua detenção. Em Dezembro de 2004, o Tribunal de Apelo da
Câmara dos Lordes, a mais alta instância judiciária
britânica, emitiu um parecer condenando essa detenção
administrativa ilimitada, considerando-a como contrária à
Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O parecer considerava
ainda discriminatória a diferença de tratamento entre nacionais e
estrangeiros.
O fim do
habeas corpus
O governo considerou que uma boa forma de ter em conta o parecer, era partir
para a legitimação da generalização das
disposições de excepção ao conjunto da
população.
The Prevention Terrorism Act,
votado em Março de 2005, permite ao ministro do Interior tomar medidas
de controlo, conducentes à prisão domiciliária de uma
pessoa, sempre que ele suspeite que um indivíduo está
"implicado numa acção ligada ao terrorismo". Ele pode
também proibir esse indivíduo de utilizar telemóvel,
limitar-lhe o acesso à Internet, impedi-lo de contactar com certas
pessoas, obrigá-lo a estar em casa a determinadas horas, autorizar a
polícia e os serviços secretos a aceder a tudo dentro do seu
domicílio. Essas disposições poderão ser tomadas,
com base num simples aviso dado pelos serviços secretos, uma vez que
não existem provas que permitam levar o assunto para tribunal. O que
justifica as medidas tomadas não são elementos objectivos, mas
antes, a suspeita de que a pessoa é objecto ou a intenção
que lhe é atribuída. O campo de aplicação da lei
é bastante alargado, quase ilimitado e totalmente incontrolado.
The Prevention of Terrorism Act
apresenta-se como não discriminatório, na medida em que diz
respeito tanto aos cidadãos britânicos como aos estrangeiros. Essa
lei põe fim a um sistema duplo de organização
jurídica: Estado de direito para os nacionais e violência pura
para os estrangeiros. A supressão do
habeas corpus
foi generalizada ao conjunto da população. Entra-se assim num
estado de excepção generalizada. Essa lei dá ao ministro
do Interior prerrogativas de magistrado. Uma pessoa é considerada como
terrorista, não através de um julgamento, mas por via de um
certificado estabelecido por um representante do poder executivo. Este
último não deve, em momento algum, justificar uma decisão
que se aplique a simples suspeitos. Em comparação com as outras
leis antiterroristas,
The Prevention Terrorism Bill
confirma a capacidade de antecipação das autoridades
britânicas. Essa lei inova ao permitir que se ponha em causa o
habeas corpus,
não só dos estrangeiros, mas também dos nacionais. Como
os presumidos autores dos atentados de Londres, em Julho de 2006, têm
nacionalidade britânica, essa nova legislação encontra a
sua justificação nas medidas relativas aos atentados que tiveram
lugar quatro meses depois da votação da lei.
Um delito de negligência
Em Março de 2006, a Câmara dos Lordes votou uma nova lei
antiterrorista, the
Terrorism Act 2006,
que deu origem às novas infracções de
incitação indirecta e de glorificação do
terrorismo. A incriminação da incitação indirecta
não requer a existência da intenção de levar outras
pessoas a cometer actos criminosos. Uma pessoa pode cometer esses delitos sem
se dar conta. O delito de incitação indirecta existe se uma
pessoa que publica uma declaração tiver sido simplesmente
"negligente" quanto à possibilidade de o seu discurso poder
ser entendido como encorajador do terrorismo. A pessoa que fala é assim
responsável pelo modo como as suas declarações possam ser
recebidas, seja qual for o seu objectivo. Também deixou de ser
necessária a existência de uma ligação material
entre o conteúdo do discurso pronunciado, por exemplo, palavras de apoio
à resistência palestiniana, e os actos que essas
"incitaram", ou, por exemplo, o alojamento de bombas no metro de
Londres. Para se ser perseguido, basta que um tribunal considere que essas
palavras criaram um "clima" favorável ao terrorismo. Segundo o
governo, a incriminação da "glorificação"
visa punir aqueles que "louvam ou celebram" os actos de terrorismo. O
poder pretende dar a ideia de que quer, antes de tudo o mais, sancionar os
imans radicais, apresentados como "pregadores do ódio". O
termo glorificação não está definido.
O fim do político
Essa lei representa um novo passo antecipado na capacidade oferecida ao governo
britânico de criminalizar não só toda a acção
política, mas também toda a expressão de
oposição radical ou de apoio a acções
políticas. Ela instaura igualmente uma solidariedade entre poderes
constituídos relativamente à sua oposição
política, criminalizando todo o acto de resistência armada ou toda
a acção de solidariedade material e de apoio verbal ou escrito,
relativamente a pessoas que defendem ou defenderam tais actos no passado.
Posicionar-se de maneira diferente do governo britânico no que diz
respeito a um conflito violento pode tornar-se um delito, em todas as partes do
mundo. Quem comete um desses delitos fora do Reino Unido pode ser perseguido
por um tribunal britânico. Essa disposição não se
refere apenas aos nacionais, mas a toda a pessoa implicada, seja qual for a sua
nacionalidade. Assim,
the Terrorism Bill 2006
tem um carácter marcadamente imperial. O seu poder de
acção é imediatamente global. Ela dá ao poder
executivo e aos tribunais britânicos o poder não só de
criminalizar qualquer forma de apoio a um movimento social, a uma
acção destinada a fazer pressão sobre o governo
inglês, mas também o poder de determinar o que é bom e o
que é mau em todas as partes do mundo. Essa lei nega a própria
essência do político. Já não há conflitos de
interesse, mas antes, uma luta mundial do bem contra o mal.
11/Outubro/2006
[*]
Sociólogo, autor de "Vers un etat policier en Belgique?", 2000, 160 p., ISBN
9782872621804.
Ver também:
"O mandato de prisão europeu dá força de lei ao que há de pior na Europa"
, de Jean Claude Paye
A liberdade morre em silêncio
, de John Pilger
A morte da liberdade
, de John Pilger
O original encontra-se em
http://multitudes.samizdat.net/Guerre-contre-le-terrorisme-ou.html
.
Tradução de Rita Maia.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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