Flexibilidade e desvalorização interna: Ideias perigosas na moda

por Jacques Sapir [*]

I.  O impacto das políticas de redução do custo do trabalho
II.  Desvalorização interna e desvalorização externa
III.  E agora, para onde ir e o que fazer?


Este artigo de Jacques Sapir relativo à comparação entre desvalorização cambial e "desvalorização interna" é, para nós portugueses, duma atualidade pungente. Não me alongarei sobre a carreira e os méritos de Sapir. Pretendo aqui apenas sublinhar duas ou três coisas relativas a este pequeno escrito.

Antes de mais, deve notar-se a adoção, pelo autor, de um quadro teórico assumidamente de raiz keynesiana ou demand side, onde nem sequer faltam as referências explícitas à "procura efetiva", ou solvável, e à "ilusão monetária", bem como a ideia central de que o tratamento "macro" não se deve reduzir à mera agregação do "micro" (ou de que o todo é mais do que a soma das partes, como se percebe bem, e sem precisar de ser em "economistês"). É sempre saudável uma leitura destas, pelo menos para variar, num ambiente tão sobrecarregado de abordagem de raiz "neoclássica" e supply side.

Em segundo lugar, sublinhe-se que a escolha das hipóteses simplificadoras tem aqui o seu quê de arbitrário e de estrita convenção – aqui, como aliás em qualquer outro exercício intelectual – mas em termos gerais o raciocínio de Sapir está também, sem dúvida, dotado duma grande robustez e duma grande sensatez… o que não será exatamente o caso com as abordagens opostas, as tais que assumem as vantagens da "desvalorização interna", raciocinando pelo lado da redução estrita (redução nominal ou "à bruta") dos salários e pensões, à qual se seguiria o tal efeito de "mancha de azeite", supostamente puxando para baixo o conjunto dos preços na economia, mas alegadamente não à própria economia...

A moeda, portanto, não importa? Vivemos numa realidade económica não apenas monetarizada, mas ainda por cima largamente "financeirizada", e todavia insistimos em operar com base no "é-só-um-supônhamos" de que a moeda não importa? Parece irrealista, esta outra assunção? Parece, de facto, completamente alucinada? Pois parece. Parece e é.

E todavia, registemo-lo, é isto hoje em dia o mainstream no "pensamento" económico oficial. É com base neste outro tipo de assunções que a hodierna "engenharia das almas" formata a mente de tantos e tantos pobres estudantes de "económicas" nas nossas universidades. E é, mais importante ainda, com base neste tal tipo de assunções que opera o "consenso de Maastricht", ao qual estamos amarrados já desde princípios da década de 90, e que produziu nos princípios deste século a aberração chamada "Euro". É no interior desse quadro institucional geral que quer panegiristas explícitos e enfáticos deste programa de festas (PSD e PP), quer panegiristas (ocasionalmente) "vaselinizados" e "dialogantes" (o PS), quer ainda a ala dos "críticos de esquerda" (o BE oficial), muito apostados no "aprofundamento e na democratização da construção europeia", nas transferências orçamentais em grande escala ou na "federalização" da dívida (o que daria no mesmo), nos tentam vender a sua ladainha, aliás até agora, ai de nós, com evidente sucesso…

Mas deixemos essas tristezas e voltemos ao artigo do Sapir. Sublinhemos também que isto tudo se refere à França, para a qual seria vantajosa a saída da Eurolândia, mas França que tem problemas com o crescimento económico e com as contas externas, e portanto com a dívida externa (e acesso ao mercado internacional de capitais) incomparavelmente menores do que os que afligem Portugal. Se Sapir, da França, diz que está a ser vítima duma sobrevalorização cambial e que devia sair e desvalorizar 25 por cento, imagine-se o que ele não diria face a um panorama como o das contas externas e do de/crescimento da economia portuguesa desde que estamos no Euro! Ah, mas vá-se lá dizer isso, por exemplo, aos economistas supply side (mas sempre, sempre muito "críticos", é claro) do Bloco de Esquerda!

Depois, o estudo de Sapir refere-se explicitamente a efeitos de medidas de política económica sobre a produção, não a efeitos sobre a repartição do rendimento. Resulta claro que também esses outros seriam positivos para os assalariados, mas sobretudo pelo lado da redenominação dos encargos financeiros na nova moeda, a qual seria desvalorizada. Isso corresponde ao que por vezes é designado por "default implícito" (ver a nota 5), mas pode e deve ser complementado por medidas de default explícito, forçando uma renegociação da dívida (sobretudo externa) ainda mais favorável aos devedores.

Sem pretender ser mais papista do que o Papa, ou mais institucionalista do que o "institucionalismo económico", devo aqui em todo o caso sublinhar que os efeitos sobre a repartição são muito mais intrinsecamente "incertos" e "complexos" (sendo por isso a formalização matemática nesse caso pouco mais do que mero exercício "académico", ou simples "jogo" intelectual), entre outras coisas porque dependentes da estrita evolução ocorrida na esfera política e na das mentalidades. Ter um governo "keynesiano de esquerda", por exemplo, ou aquilo que na gíria portuguesa se chamaria um governo "gonçalvista", ajudaria decerto, e muito, à salvaguarda e ao crescimento da parte do trabalho no bolo global. Mas é melhor irmos pensando no que é mais provável que ocorra havendo um governo de mero "keynesianismo oportunista", ou de "keynesianismo de centro", se se quiser…

E bom, chega de discurso meu. Tudo isto está, repete-se, em aberto; mas são debates para ir tendo nos tempos mais próximos. A palavra, agora, a Jacques Sapir.
João Carlos Graça

Fala-se muito do "custo do trabalho", e é evidente que a competitividade da França, tanto no interior como no exterior da zona euro, se degradou. Isso lançou um debate sobre o custo do trabalho e acabou nas discussões sobre o acordo assinado entre o MEDEF e a CFDT, quinta-feira, 11 de Janeiro ( Acordo de segurança do emprego ). O problema aqui é que aquilo que aparece como boa política à escala da empresa (escala microeconómica) pode revelar-se perfeitamente desastroso à escala da economia no seu todo (escala macroeconómica). Isso leva a considerar comparativamente os efeitos da desvalorização interna (redução dos salários), que não toca no nível nominal, mas espera provocar, por efeito de arrastamento, uma baixa real dos preços, e da desvalorização externa , que modifica brutalmente a totalidade dos preços nominais sem todavia mexer, pelo menos aparentemente, no salário real.

I. O Impacto das políticas de redução do custo do trabalho

A César o que é de César e a Deus o que é de Deus.

Seja uma empresa cuja função de produção depende do trabalho e do capital:

Y = aK v L u

O postulado é que v+u < 0, mas esta hipótese, necessária para um cálculo de maximização do lucro, é frequentemente desmentida no mundo industrial. Mantemo-la no entanto por simplificação. É preciso entretanto acrescentar que, se nos encontrarmos na presença de rendimentos crescentes (u+v > 1), todos os resultados a que chegamos abaixo ainda são mais evidentes.

Os custos totais C dependem do consumo de matérias-primas, de capital e dos salários e portanto:

C = paA + pkI + Lw   em que:

A representa a soma dos consumos intermédios (e não o seu preço)
I o capital a substituir
pk o preço do capital
w o montante do salário horário

A é função de Y, A = bY (com b<0)

I é uma função de K, portanto I = dK (d<0)

C = pabY + pkdK + Lw

O lucro R = pyY-C = py aK v L u – pab aK v L u – pkdK – Lw, donde se deduz que

R = aK v L u (py-pab) – pkdK – Lw

Supõe-se que o lucro no país (x) é mais fraco que no resto do mundo o que provoca deslocalizações e/ou uma redução dos investimentos. Portanto, para aumentar o lucro, é necessário, mantendo-se todas as outras coisas iguais, fazer baixar w, o que aparece como uma coisa "evidente". É isso mesmo que ressalta das discussões em curso desde o fim do Verão e referindo-se ao "nível dos salários". Uma outra maneira de ver as coisas é considerar que, se Y baixar, então é preciso fazer diminuir a quantidade de trabalho, ou L . E é aí que reside o sentido do "acordo" efectuado entre a CFDT e o MEDEF na passada quinta-feira [1] . No entanto, essas "evidências" microeconómicas vão esbarrar num paradoxo a nível macroeconómico. Com efeito, a nível macroeconómico, a soma dos salários ∑Lw determina a despesa interna resolúvel D int . Ora, em matéria de produção, temos o facto de que esta última serve a procura interna e a procura externa, portanto: D int + D ext = ∑Y ou seja, o PIB do país considerado. Se D ext for constante de um período a outro, qualquer redução dos salários (ou do nível de emprego) arrasta uma redução do D int e portanto da produção global.

Temos sequencialmente:

T
R(x) < R (resto do mundo) portanto redução de w.
T+1
Redução de w mas, mantendo-se L constante, temos uma baixa de Lw e: Dint T+1 < Dint T
T+2
∑Y (T+2) < ∑Y (T)

Constata-se que uma política "evidente" ao nível microeconómico não o é ao nível macroeconómico. Na verdade, uma redução do salário real, ou uma redução do emprego, só tem efeitos positivos se melhorar a competitividade tanto interna como externa e não apenas os lucros das empresas.

II. Desvalorização interna e desvalorização externa

Suponhamos agora que o mercado interno é invadido por produtos importados (o que é o caso). Então, a igualdade oferta=procura no mercado interno escreve-se assim:

Dint = gpx∑Y(x) + hpx∑Y(rm) em que g+h=1

Mas, na realidade, a produção do resto do mundo (m) vendida no país (x) passa por uma taxa de câmbio. Será pois necessário que, mantendo-se todas as outras coisas iguais, a redução do salário real no país (x) seja igual à duma hipotética redução da taxa de câmbio, e que essa redução do salário real faça "mancha de azeite", isto é; alastre ao conjunto da economia, empurrando assim os preços para baixo. [2] É o princípio da desvalorização interna , em que se procura fazer baixar a taxa de câmbio real entre duas economias sem tocar na taxa de câmbio nominal. Neste caso, mantém-se a taxa de câmbio nominal constante, mas reduzem-se os salários reais esperando que o efeito dessa redução seja equivalente a uma desvalorização externa . Na realidade isso revela-se muito difícil. [3] Com efeito, constata-se a permanência da ilusão nominal, dado que os agentes reagem muito mais ao valor em dinheiro das suas receitas do que a esse mesmo valor expresso noutros bens (valor real). [4]

No entanto, na realidade, a massa salarial interna não financia a procura apenas interna, ela serve para financiar também os encargos financeiros familiares:

∑Lw = Encargos financeiros + D int

Portanto, se os encargos financeiros (empréstimos para habitação, alugueres, quotizações para reformas e seguros) forem fixos, a redução da massa salarial gerada pela redução do salário horário arrasta uma redução mais importante da procura interna. Se estimarmos que 70% do rendimento salarial é consumido (e portanto 30% servem para cobrir encargos financeiros), uma redução dos salários em 20%, depois de cobertos os encargos financeiros, transforma o consumo dos 70% (nível inicial) em 50% (100 reduzido de 20% = 80, e 80-30=50), o que na realidade representa uma redução de 28,6% e não de 20% para o consumo ou procura interna efectiva. Admitamos que a média da procura interna seja satisfeita por importações, ou seja no nosso exemplo g=h=0,5 (o que é aproximadamente o caso francês). Para que a desvalorização interna não tenha consequências nefastas na produção será necessário que a parte das importações passe de 35% da massa salarial à partida (70% = 35% + 35%) para 15%, depois de feita a desvalorização interna. Isso implica uma baixa de 57,1%. (Com efeito, se a procura interna calculada aos preços iniciais passa de 70 para 50, e se se quiser manter a parte da produção nacional, que era de 35, é preciso que a parte das importações passe a 50-35=15). Estando a redução dos salários fixada em 20% no nosso exemplo, e supondo que ela repercuta totalmente nos preços dos produtos, isso equivale a postular uma elasticidade-preço das produções importadas de 57,1/20 = 2,85 !

Ora, uma desvalorização da taxa de câmbio ( desvalorização externa ), ao contrário duma redução de salários, afecta o nível de TODOS os preços, inclusive os dos encargos financeiros, em comparação com o resto do mundo . A desvalorização externa só afecta portanto os preços "absolutos" e não os preços "relativos". É o conjunto dos preços (e o salário é um preço) do país (x) que baixa em 20% no caso de uma desvalorização externa de 20%. Os encargos financeiros [5] baixam tanto como as receitas. É essa a razão principal pela qual uma política que jogue com a taxa de câmbio é muito superior a uma política que jogue com os salários. [6] Com efeito, a desvalorização interna só é equivalente à desvalorização externa se, e somente se, os encargos financeiros (e outros encargos não comprimíveis) forem nulos.

É por isso que, na prática, as desvalorizações internas (uma redução de salário) se traduzem em quedas importantes da procura interna e num choque importante no nível de actividade, com um profundo aumento do desemprego. Em contrapartida, no que diz respeito à procura exterior, os efeitos da desvalorização interna são iguais aos da desvalorização externa. Mesmo quanto a isso, porém, é preciso que:

  1. A redução dos salários não afecte a produtividade relativa (produtividade comparada à dos concorrentes). Ora, a imposição de uma redução do salário pode ter efeitos de desencorajamento na mão-de-obra. Mais ainda, quando se é confrontado com um recuo da procura, isso pode provocar uma queda do investimento correlativa à redução dos salários, o que vai deteriorar rapidamente as condições de produtividade. [7]

  2. A procura externa possa substituir de modo equivalente a redução da procura interna.

Quanto à desvalorização externa , supõe que as quantidades importadas sejam elásticas relativamente ao seu preço (uma subida do preço provocando uma redução mais do que proporcional da quantidade). Portanto é preciso que essa desvalorização induza uma melhoria em volume do comércio externo, melhoria duma ordem de grandeza tal que mais do que compense a subida do preço das importações. [8] Se a elasticidade dos preços das importações for superior a 1, haverá um aumento da produção com a desvalorização externa . Do mesmo passo, supõe-se que o consumo de produtos do país (x) pelo lado da exportação (a procura externa efectiva) aumentará mais do que a descida dos preços correspondente à desvalorização externa . Note-se que, com uma elasticidade de 1,4 (ou seja, muito inferior aos 2,85 da hipótese duma desvalorização interna) teríamos:

  • (i) Para a procura interna (fixada em 35% da massa salarial) uma contracção da quantidade de 1,4 mas uma subida dos preços de 1,2, ou seja uma redução de 16,6% do montante total, e portanto de 5,8% do montante da massa salarial (a produção interna passando assim de 35% para 40,8%). Calculado em PIB, este acréscimo é de 40,8/35, ou seja 16,6%. Assumindo-se que 50% do PIB se destina a procura interna efectiva, isso equivale a 8,3% (ou 4,15% do PIB total).
  • (ii) Para a procura externa, se se estimar que metade do PIB é exportada, temos então 50% x (1,4/1,2), ou seja, um aumento de 8,3% do PIB exportado, ou 4,15% do PIB total.

Uma desvalorização externa de 20% provoca pois, em teoria, uma subida de 8,3% do PIB. Na realidade, as coisas não são assim tão simples, porque essa subida dos volumes de produção, e por consequência do emprego, provoca uma subida dos salários reais que limita os efeitos da desvalorização externa. Além disso, as elasticidades internas e externas não são simétricas. Lembremos que o INSEE calculou em 2008 que uma variação de 10% do nível do euro provocava uma variação de 1% do PIB da França. [9] Na realidade, uma desvalorização de 20% deveria provocar uma subida imediata de cerca de 3% do PIB real (e, com a inflação induzida, uma subida de 6% a 8% do PIB nominal). A análise das desvalorizações destes últimos vinte anos mostra que esta subida se manterá enquanto se mantiver a distância dos preços, e do custo salarial real. Dado que a desvalorização externa se traduz numa forte subida dos lucros e numa mudança das condições de competitividade do território, sendo os incitamentos para investir importantes (por exemplo, se as empresas souberem que o governo tem a intenção de manter a distância entre os preços internos e os preços externos), essa desvalorização será acompanhada por uma subida do investimento e traduzir-se-á em efeitos de ganhos de produtividade importantes. Nesse caso, torna-se possível ultrapassar a distância de competitividade com alguns países sem ter que recorrer a novas desvalorizações.

III. E agora, para onde ir e que fazer?

Já todos devemos ter percebido que não há solução possível, numa austeridade "microeconómica" e numa desvalorização interna. No entanto, são essas as políticas que foram escolhidas em França, e também na Europa. Os seus efeitos são, infelizmente, muito previsíveis.

  • (A) O emprego. O emprego é a primeira das variáveis sobre a qual a actual política económica terá efeitos enormes. Em 2012, a UNEDIC declara que o número dos desempregados indemnizados aumentou de 322 mil. Este mesmo organismo espera um aumento de 179 mil para 2013. [10] Esta última estimativa deve ser entendida como representando a "versão reduzida" do aumento do desemprego. Isso suporia que o aumento se estabilizasse em torno de 15 mil por mês, e estamos longe disso. A OFCE estimava em Setembro passado que a subida do desemprego seria de 243 mil pessoas em 2013, e que se atingiria 11% da população activa no final do ano. [11] Na realidade, tendo em conta o abrandamento extremamente forte do crescimento na Alemanha, e a depressão em curso em países como a Espanha e a Itália, é provável um número compreendido entre 240 mil e 300 mil para 2013. Bem entendido, isso não inclui os efeitos das últimas decisões, como o acordo entre a MEDEF e a CFDT. Este acordo, na realidade, vai destruir um pouco mais o emprego em França, contrariamente ao que pretende o ministro do Trabalho. [12] . Com efeito, se as empresas francesas quiserem repor as suas margens e a taxa de auto-financiamento no quadro do euro, só poderão fazê-lo à custa de um importante choque sobre o emprego. A subida do desemprego deverá assim continuar em 2014 e poderemos atingir entre os 12,5% e 13% da população activa no desemprego, ou seja, um total de 3,75 a 3,9 milhões de desempregados. A inversão da curva do desemprego prometida pelo Presidente da República para 2014 não tem qualquer hipótese de se transformar em realidade. Devemos notar que aquele já inflectiu a sua previsão porque, no Verão de 2012, prometia essa inversão para o segundo semestre de 2013… Se, doravante, forem tomadas novas medidas de redução dos rendimentos (salários, prestações sociais) no decurso de 2013, o que é provável na medida em que será impossível cumprir os objectivos de défice e de dívida pública proclamados pelo governo, o movimento da subida do desemprego poderá ampliar-se e poderemos atingir os 3,7 milhões a partir do final de 2013 e os 4,2 milhões (ou seja, 14%) no final de 2014.

  • (B) O crescimento. O governo persiste em previsões de crescimento para 2013 que são perfeitamente irrealistas. É evidente que a economia francesa não terá 0,8% de crescimento. Recordemos que esta previsão é fruto de modelos econométricos que utilizam um multiplicador das despesas públicas de 0,5 enquanto todos os estudos mostram que este é largamente superior a 1 (é de 1,7 em Espanha e de 2,2 em Itália). Por outras palavras, a diminuição das despesas e os aumentos de impostos terão um efeito muito mais prejudicial do que os economistas do partido socialista fazem crer. A hipótese mais moderada é a de que fiquemos nos 0,0% este ano. Mas o agravamento da situação na Alemanha, a continuação e o aprofundamento da deterioração em Espanha e na Itália, as pressões concorrenciais renovadas em países como o Japão, que estão em vias de desvalorizar fortemente a sua divisa (-7% num mês) conduzem ao abandono do cenário "moderado". A França, para cúmulo, defronta-se com uma fraqueza importante do investimento, com um movimento de desendividamento das famílias (o qual traduz a amplitude atingida pelos custos financeiros nos respectivos orçamentos) e é evidente que o aumento do desemprego terá repercussões na evolução do salário e do rendimento real, mesmo sem incluir novas medidas autoritárias. É hoje muito mais provável, e na verdade seguro, que venhamos a conhecer uma recessão de -0,5%. Isso implica uma diferença de 1,3 pontos em relação às previsões governamentais, ou seja, 26 mil milhões que faltarão no PIB e 11,7 mil milhões que faltarão nas receitas fiscais.

  • (C) A crise da zona Euro. A zona Euro lançou uma grande operação de marketing político que impressionou, durante algum tempo, os mercados financeiros. Mas a realidade mantém-se sombria.

    1. O Banco Central Europeu afirmou a sua vontade de intervir de modo radical. Dispõe, teoricamente, de capacidades consideráveis de empréstimos aos Estados da zona euro. No entanto, a verdade é que nenhum país parece estar com pressa em pedir a ajuda da Europa. Assim, a Espanha, apesar das suas necessidades, continua a tergiversar. Além disso, o BCE está limitado pelo constrangimento de esterilização que lhe foi imposto pela Alemanha. Esse constrangimento significa que, por cada euro utilizado para sustentar um país, o BCE terá que retirar do mercado um euro. Isso limitará seriamente as suas capacidades reais de intervenção. Além disso, o BCE não deseja reduzir de modo demasiado substancial as taxas de juro dos países em dificuldades. No fim das contas, as condições de financiamento mantêm-se muito desfavoráveis nos países periféricos.

    2. O mercado de capitais mantém-se congelado na zona euro, e estamos hoje muito abaixo da situação de 1999 em matéria de unificação do mercado das dívidas.

    3. A União Bancária, que é um nome pomposo para uma realidade mais prosaica, recupera hoje uma supervisão bancária limitada. Só estão envolvidos 200 bancos. Também aqui, a Alemanha conseguiu que os seus bancos regionais não fossem abrangidos por este sistema. Esta supervisão única deve ser da responsabilidade do BCE. É acompanhada pela possibilidade de o Mecanismo Europeu de Estabilidade (ou MES) operar uma recapitalização directa dos bancos em dificuldade. Mas isto, na realidade, é limitado. Os riscos assim assegurados pelo MES serão apenas os que forem assumidos a partir do início de 2014. Na realidade não se fez nada para gerir a situação actual dos bancos, que continua muito degradada. A correlação entre risco soberano e risco bancário mantém-se assim presente, enquanto a solvabilidade dos bancos continua a degradar-se em inúmeros países.

    4. Não foi tomada nenhuma medida estrutural para gerir a crise de competitividade interna na zona euro, crise que, no entanto, está na origem da crise de endividamento. Não há nenhum mecanismo que permita ajudar os países em dificuldade, através do financiamento de investimentos, a fazer convergir a sua competitividade com a competitividade da Alemanha. O plano de relançamento de 120 mil milhões de euros, que foi decidido em Junho de 2012 e que serviu de pretexto para o voto no TSCG, na realidade só comporta uma reduzida parte de novas despesas, consistindo essencialmente num aumento de 10 mil milhões de euros do capital do Banco Europeu de Investimentos para que este possa alargar a sua capacidade de investimento. Os efeitos são microscópicos. Simultaneamente, a dimensão do orçamento da UE para 2013 foi reduzida e o crescimento da zona euro mantém-se negativo (-0,5%).

Compreende-se porque é que a Chanceler alemã declarou nos seus votos ao Bundestag que a crise da zona Euro estava longe de ter acabado e que o ano de 2013 seria pior do que o ano de 2012! Também se mede melhor porque é que, nessas condições, as diferentes soluções que estão hoje a ser ensaiadas, com evidentes "efeitos de moda", são na melhor das hipóteses malhar em ferro frio e na pior terão efeitos contraproducentes. A economia francesa vai mal, e irá ainda pior em 2013 e em 2014. A única medida que permitiria inverter esta tendência seria a saída da zona euro e uma desvalorização de pelo menos 25%.

Notas

[1] Artigo 18 e 19 do projecto de acordo de 11 Janeiro 2013 intitulado: ACCORD NATIONAL INTERPROFESSIONNEL DU 11 JANVIER 2013 POUR UN NOUVEAU MODELE ECONOMIQUE ET SOCIAL AU SERVICE DE LA COMPETITIVITE DES ENTREPRISES ET DE LA SECURISATION DE L'EMPLOI ET DES PARCOURS PROFESSIONNELS DES SALARIES [Acordo Nacional Interprofissional de 11 de Janeiro 2013 para um Novo Modelo Económico e Social ao Serviço da Competitividade das Empresas e da Segurança do Emprego e dos Percursos Profissionais dos Salários]

[2] O que supõe um ajustamento hipoteticamente perfeito dos diferentes mercados. Logo por azar, predomina aqui a rigidez, em parte por causa das assimetrias de informação, em parte por causa duma instabilidade intrínseca das preferências individuais. Sobre o primeiro ponto, ver B.C. Greenwald et J.E. Stiglitz, "Toward a Theory of Rigidities" in American Economic Review, vol. 79, n°2, 1989, Papers and Proceedings, pp. 364-369. J.E. Stiglitz, "Toward a general Theory of Wage and Price Rigidities and Economic Fluctuations" in American Economic Review, vol. 79, n°2, 1989, Papers and Proceedings, pp. 75-80. Sobre o segundo ponto, J. Sapir, Quelle économie pour le XXIe siècle?, Odile Jacob, Paris, 2005, capítulo 1.

[3] P. Artus, "Est-il possible de déprécier le taux de change réel sans déprécier le taux de change nominal? Une question cruciale pour la zone euro", FLASH-Économie, NATIXIS, n°544, 22 août 2012

[4] G.A. Akerlof, W.T. Dickens et G.L. Perry, "The Macroeconomics of Low Inflation" in Brookings Papers on Economic Activity, n°1/1996, pp. 1-59

[5] Supondo, no caso do euro, que os encargos tenham sido feitos no quadro de contratos de direito francês, o que implica que, qualquer que seja a divisa "unidade de contabilização", se sairmos do euro, os contratos sejam redenominados em francos. É evidentemente o caso de 98% das dívidas familiares, de 85% da dívida pública e de quase 90% da dívida das empresas.

[6] P. Artus, "Dévaluer en cas de besoin avait beaucoup d'avantages", FLASH-Économie, NATIXIS, n°365, 29 Maio 2012.

[7] P. Artus, "La baisse des salaires réels dans beaucoup de pays européens y accroît-elle l'offre de biens et services ou y réduit-elle la demande de biens et services?", FLASH-Économie, NATIXIS, n°756, 5 Novembro 2012.

[8] O que é o caso da França, da Grécia, de Portugal e da Irlanda. P. Artus, "Quels pays seraient les gagnants d'un fort recul de l'euro?", FLASH-Économie, NATIXIS, n°245, 1 Abril 2011.

[9] F. Cachia, "Les effets de l'appréciation de l'Euro sur l'économie française", in Note de Synthèse de l'INSEE, INSEE, Paris, 20 Junho 2008.

[10] CAPITAL, "Le nombre de chômeurs va encore exploser cette année selon l'Unédic", Capital.fr, 14/01/2013, URL: www.capital.fr/carriere-management/...

[11] CAPITAL, "Le chômage va battre tous les records l'an prochain en France, s'alarme l'OFCE", Capital.fr, 19/10/2012, URL: www.capital.fr/carriere-management/...

[12] Declaração de Michel Sapin, sábado 12 Janeiro na RTL.

17/Janeiro/2013

Capa de 'É preciso sair do euro?' N.T.

MEDEF – Movimento das Empresas de França
CFDT – Confederação Francesa Democrática do Trabalho
INSEE – Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Económicos
UNEDIC – União Nacional Interprofissional para o Emprego na Indústria e Comércio
OFCE – Observatório Francês das Conjunturas Económicas
TSCG – Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governação

[*] Doctorat d'État em economia, autor de Faut-il sortir de l’euro? e de La Démondialisation . Actualmente dirige o Centre d'Études des Modes d'Industrialisation (CEMI-EHESS).

O original encontra-se em http://russeurope.hypotheses.org/738 . Tradução de Margarida Ferreira.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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