O fim da União Europeia
por Jacques Sapir
Coralie Delaume e David Cayla acabam de publicar um ensaio importante pelas
edições Michalon intitulado
La Fin de l'Union Européenne
. Observemos logo de início a ausência de "?" no
título. Esta ausência equivale a um programa.
Trata-se de um livro importante e oportuno. A questão europeia
ocupará um lugar central na eleição presidencial
[francesa] deste ano. O impacto deste livro deveria portanto ser importante.
Mas é também um livro baseado num reflexão sólida e
muito bem argumentada. Conhecendo um pouco os autores, não se fica
surpreendido. Coralie Delaume, que anima o blog "l'arène nue",
já havia assinado um ensaio notável sobre a crise que experimenta
a União Europeia
[1]
. Quanto a David Cayla, é um dos jovens economistas mais talentosos da
sua geração.
Um livro bem construído
Este livro articula-se em torno de seis capítulos que, com rigor,
analisam as razões da morte da União Europeia. O primeiro destes
capítulos faz uma constatação, agora amplamente
partilhada, de que os referendos nos diferentes países resultaram em
rejeições da construção europeia tal como ela foi
executada pela UE. Os autores, aqui, recuam ao confisco dos resultados do
referendo de 2005 (p. 39) e tiram a conclusão de que se está na
presença de um "federalismo dissimulado" (p. 42). Na verdade,
também seria justo falar de um federalismo "furtivo" pois
não assumido. Eles apontam a Jean Monnet quanto à origem do
método e dedicam-se a uma edificante (mas não exaustiva) lista de
injúrias proferidas contra oponentes da UE pelas diversas cliques
europeístas. Concluem então no BREXIT e no êxito do
referendo britânico de Junho último, com uma magnífica
citação de George Bernanos proveniente da
Lettre aux Anglais
de 1946.
O segundo capítulo trata do drama grego. Eles mostram ali como a
eleição que deu o poder a uma coligação conduzida
pelo Syriza fez explodir toda a crise austeritária da UE e do seu
braço armado, o Eurogrupo (e a "troika"). Os dois autores
estabelecem de maneira rigorosa que nesta ocasião as
instituições de Bruxelas foram na realidade
contra
a letra dos tratados, porque estavam sob a hegemonia alemã. O artigo 4
do Tratado de Lisboa não foi, obviamente, respeitado (p. 91). Mas a UE
sabe mostrar-se minuciosa com os textos quando isso lhe convém, mas
reservando-se o direito de lançá-los para o lado quando considera
necessário. A demonstração aqui é a de um poder
supra-nacional
que se constituiu sem nenhum controle dos povos que ele pretende representar.
Não seria possível mostrar melhor a ilegitimidade fundacional da
UE, assim como porque ela quer a qualquer preço fazer com que o termo
"soberania" desapareça do vocabulário político.
O terceiro capítulo ataca os princípios do "mercado
único". Nossos autores fazem remontar a origem da ideia de
"mercado único" ao Plano Marshall e à
dominação americana sobre a Europa. Pode-se aqui lamentar que
não tenha utilizado o livro britânico que foi traduzido com o
título
La Grande Dissimulation
[2]
e que permaneçam demasiado restritos a uma leitura
"franco-francesa" do mercado único. Mas as consequências
económicas deste mercado único são perfeitamente
analisadas, quer se trate das consequências monetárias, em torno
do euro e de tudo o que ele implica, ou das desordens financeiras (a crise da
dívida soberana, analisada na p. 117), ou ainda dos efeitos de
polarização industrial induzidos por esta política. A
constatação é aqui esmagadora, mas isto não
é senão o começo.
Com efeito, este capítulo quatro mostra de maneira luminosa como a
União Europeia e o "mercado único" conduzem os
países a políticas não cooperativas que engendram a
fragmentação económica, e a seguir naturalmente a
política, da União Europeia. É neste capítulo que
se vê desenvolverem todas as consequências da
execução de uma política económica fundamentada
unicamente no livre comércio, que conduz países inteiros à
ruína, faz surgir um corte entre um "centro" e uma
"periferia" da UE e leva então à emergência do
fenómeno dito euro-divergência, que se vê manifestar-se
hoje, dentre outros, com a situação da Itália. Pelo meu
lado, tenho utilizado a expressão euro-divergência para descrever
a situação engendrada pelo euro e pelas regras europeias em
numerosas ocasiões desde os anos 2009-2010
[3]
. A crítica à lógica do
dumping
social ao qual se entregam os países da UE, quer directamente ou
indirectamente pelo expediente dos trabalhadores destacados (p. 149-153)
é extremamente esclarecedora. Mas a análise do caso da Irlanda e
de como este país conseguiu através do dumping fiscal trapacear
os seus números é também absolutamente apaixonante (p.
163). Isto põe em causa a estratégia económica subjacente
ao "mercado único", tal como eu indicava na minha
própria obra
La Démondialisation
[4]
.
Após esta longa excursão nas terras da economia, nossos autores
retornam à questão política no capítulo cinco, onde
analisam o défice democrático das instituições
europeias. A partir do exemplo da "lei trabalho" de 2016, mostram
como os governos se dobram às grandes orientações da UE,
os GOPE (p. 183). Mostram também como as instituições
ditam o direito, como o Tribunal de Justiça da União Europeia (p.
187), de maneira absolutamente destacada de toda soberania. E este é
efectivamente um problema crucial. A França, tendo aceite o
princípio da "superioridade" das directivas europeias
não pode mais senão actuar à margem efectuando as
"transposição" destas famosas directivas. Há
aqui uma negação de democracia.
O sexto e último capítulo intitula-se "Romper com a Europa
alemã e sair da lógica da confrontação". Pois
este é exactamente um dos eixos desta crítica radical e feroz da
UE. A União Europeia, longe de construir a paz (e sabe-se que a paz deve
tudo à dissuasão nuclear e nada à Europa), está em
vias de lançar os povos uns contra os outros. A dominação
alemã, já evocada por Jean-Luc Mélenchon em
Le Hareng de Bismarck,
produz na realidade um despertar da conflitualidade no seio dos países
da União Europeia. Assim como seus partidários apregoam a torto e
a direito que a Europa é a paz (assim como Louis-Napoléon
Bonaparte dizia que o Império é a paz), a realidade crua é
que a União Europeia reinstitui a guerra económica como modo de
regulação das relações entre os Estados europeus,
antes que esta guerra económica acabe por desembocar simplesmente na
guerra. Portanto é preciso dizer que a UE é a guerra.
A União Europeia, a democracia e a soberania
Este livro é portanto importante. É também muito bem
escrito. Encontram-se nele fórmula saborosas tais como
"...François Hollande, o homem que elevou a vacuidade consensual
à categoria de disciplina olímpica"
(p. 17). Para além destas fórmulas, este livro mostra que
obviamente a União Europeia não é a Europa. Duvidava-se
disso desde há uma boa vintena de anos. Que importa, a
demonstração está lá e ela é
irrefutável. A Europa é uma realidade cultural, é
também uma realidade geográfica, que inclui, é preciso
lembrar, uma parte da Rússia. É preciso pois retornar aqui
à relação antagónica mantida pelas
instituições de Bruxelas com a soberania, relação
que nada mostra melhor que a oposição agora frontal das
instituições da UE durante referendos nos países membros.
Esta relação é abordada tanto no primeiro capítulo
como no último desta obra. Se estes dois capítulos permitem
compreender
como
procede a União Europeia para esbulhar os Estados membros da sua
soberania, eles não dizem o porque do caso.
Uma refutação do papel fundamental da Soberania popular, e
perfeitamente convergente com o discurso mantido pela União Europeia,
foi tentada por um autor húngaro contemporâneo, Andras Jakab, de
resto amplamente homenageado por diversos prémios concedidos pela UE.
Após uma análise comparada das diversas
interpretações da soberania, ele adianta para o caso
francês que:
"A soberania popular pura foi comprometida por um abuso extensivo do
referendo sob o reinado de Napoleão I e de Napoleão III, tendo a
soberania nacional pura sido percebida como insuficiente do ponto de vista da
sua legitimação"
[5]
. Mas na realidade isto é sustentar que um abuso perverteria o
princípio assim abusado. Mas não pode ser assim senão se o
abuso demonstrasse uma
incompletude
do princípio e não da sua execução. Será
que viria ao espírito dos nossos contemporâneos destruir os
caminhos-de-ferro em nome da sua utilização pelos nazis no
genocídio de judeus e ciganos? Ora, este é exactamente o fundo do
raciocínio sustentado por Jakab.
Se o plebiscito é realmente um instrumento não
democrático, todo referendo, e é evidente, não é um
plebiscito. A confusão estabelecida pelo autor entre as duas
noções é muito perigosa e mesmo desonesta. A
prática que consiste em assimilar referendo a plebiscito, pois é
isto que está em causa no texto, é um erro lógico mas
é também uma confusão voluntariamente introduzida no
debate. A discussão prossegue sobre o âmbito que é preciso
atribuir à decisão do Conselho Constitucional referente à
Nova Caledónia onde se diz que
"a lei votada... não exprime a vontade geral senão no
respeito à Constituição"
[6]
. Aqui também se pratica de maneira voluntária a
estratégia da confusão. O que reconhecia o Conselho
Constitucional, no caso, é a superioridade lógica da
Constituição sobre a Lei. Não é de modo algum, como
pretende erradamente Jakab, o encadeamento da soberania. De facto, dizer que o
processo legislativo deve ser enquadrado por uma Constituição
não é senão repetir o
Contrato Social
de Rousseau
[7]
. O que está em causa é a isenção deste autor ao
recusar ou procurar limitar o conceito de Soberania.
Para chegar a este resultado ele recorre aos trabalhos de Hans Kelsen
[8]
. Sabe-se que, para este último, o direito de um Estado subordina-se ao
direito internacional, existindo este de maneira implícita
através de um sistema de "leis naturais" que seriam
próprias da condição humana, servindo então de
normas para o direito do Estados. Está-se aqui na presença de uma
norma de natureza transcendental
[9]
. Kelsen é fortemente influenciado pela lógica do neo-kantismo e
a
Grundnorm
[norma básica] aparece no cimo da pirâmide dos diferentes
níveis de leis. Mas as teses de Kelsen estão longe de encontrarem
a unanimidade junto aos juristas. É-lhe censurado, e não sem
algumas razões, um positivismo jurídico
[10]
que resulta num achatamento dos princípios do direito. Aqui se vê
bem desenvolver-se o "poder do juiz" contra o poder do
responsável político, ponto que Delaume e Cayla denunciam (p.
202).
Inversamente, pode-se considerar que o Direito Internacional decorre ao
contrário do Direito de cada Estado, que é um Direito de
coordenação
[11]
. Esta é a lógica desenvolvida por Simone Goyar-Fabre num artigo
datado de 1991 mas que permanece de uma actualidade luminosa
[12]
. Além disso a noção de "lei natural" coloca
aqui um verdadeiro problema na medida em que ela pretende estabelecer uma
especificidade radical da acção humana, um esquema no qual
é demasiado fácil ver uma representação
cristã (a "criatura" à imagem do seu
"criador"). Aceitar isto sem discussão equivaleria a
estabelecer o cristianismo como norma superior para a totalidade dos homens e,
por isso mesmo, negar a heterogeneidade religiosa com todas as
consequências dramáticas que isso implicaria. Delaume e Caya
observam igualmente que o discurso sobre a identidade surge porque é
negada a soberania, que é uma noção política (p.
215). O novelo de normas produzidas pela UE, e que se pretende fazer passar por
uma forma de soberania, acomoda-se muito bem à pior das
reivindicações identitárias.
Andras Jakab vê-se então obrigado a reconhecer que:
"infelizmente, do ponto de vista da definição de
noção, a soberania como tal não está definida em
nenhum tratado internacional (talvez porque um acordo sobre esta questão
seria impossível"
[13]
. Ele acrescenta, algumas linhas mais adiante:
"Mas a aceitação total do primeiro direito do soberano, ou
seja, a exclusividade, não é satisfatória à vista
dos novos desafios, nomeadamente a mundialização"
[14]
. Ao assim fazer ele desliza, no mesmo movimento, de uma posição
de princípio para uma posição determinada pela
interpretação que ele faz e que se pode refutar de
um contexto. Esta abordagem foi no entanto criticada a seu tempo por Simone
Goyard-Fabre:
"Que o exercício da soberania não possa ser feito
senão por meio de órgãos diferenciados, com
competências específicas e a trabalharem independentemente uns dos
outros, nada implica quanto à natureza da potência soberana do
Estado. O pluralismo orgânico (...) não divide a essência ou
a forma do Estado; a soberania é una e indivisível"
[15]
. O argumento que pretende fundamentar sobre a limitação
prática da soberania uma limitação do princípio
desta é, no fundo, de uma grande fraqueza. A mundialização
não pode servir para justificar a UE e isto é tanto assim que a
UE organiza o desmantelamento dos Estados face à
mundialização. Os Estados não pretenderam poder tudo
controlar materialmente, mesmo e inclusive sobre o seu território.
Não se pode confundir os limites ligados ao domínio da natureza e
a questão dos limites da competência do Soberano. É
portanto sobre este género de confusões que se constrói o
pensamento institucional da União Europeia.
A morte clínica da UE
Assim, nossos dois autores lavram a acta da morte clínica da
União Europeia. Mas convém desligar os aparelhos que a
mantém em estado de vida vegetativa. Ora, isto pode-se revelar mais
complicado do que se pensa.
Permanece o facto de que é preciso definir uma posição
política em relação à União Europeia.
Coralie Delaume e David Cayla preconizam desfazer o mercado único (p.
237), repudiar a Europa supranacional (p. 238) e reconstruir, contra a
União Europeia, uma "Europa dos projectos" (p. 241). Mas
vê-se bem que isto não poderá ser feito senão ao
preço de um novo referendo. Será preciso então fazer votos
para um referendo sobre o "FREXIT"?
A questão das prioridades coloca-se. Parece-me que a primeira das
prioridades, não tanto no plano dos princípios mas sim no da
política económica, é em primeiro lugar fazer explodir o
euro. Ora, para fazer isso não é necessário qualquer
referendo. Em contrapartida, é claro que para por em causa o primado do
Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e das directivas
sobre as leis francesas, será preciso necessariamente um referendo
anulando o Tratado de Lisboa e os outros tratados. Mas, se se efectuar
previamente a retirada unilateral da França da União
Económica e Monetária, ter-se-á assim desestabilizado o
conjunto da UE. Pois é claro que se a França saísse do
euro ela seria rapidamente seguida pela Itália, depois por Portugal,
Espanha e Grécia. Pode-se pensar que a Eslováquia e a
Finlândia aproveitariam para recuperar sua liberdade monetária.
Assim, tornar-se-ia possível formular de maneira diferente a
questão que seria colocada aos franceses e perguntar-lhes se dão
mandato ao governo para reescrever tratados europeus que garantissem a
soberania da França e a superioridade das leis francesas sobre as
directivas europeias ou, se isso não fosse possível, então
lavrar a acta da saída da França da UE. Tornar-se-ia
possível então convocar uma conferência europeia sobre
estas bases.
Mas é preciso compreender que não se destrói completamente
instituições senão quando se propõe outras
instituições para substituí-las. A UE não
será destruída senão quando seu sucessor for posto sobre
os trilhos. Convém reflectir nisso se se pretende evitar os erros que
conduziram a UE à sua morte actual.
[1] Delaume C.,
Europe Les Etats désunis,
, Paris, Editions Michalon, 2014.
[2] Booker C. et North R.,
La Grande Dissimulation
, Paris, Editions l'Artilleur, 2016.
[3] Sapir J., " From Financial Crisis to Turning Point. How the US
'Subprime Crisis' turned into a worldwide One and Will Change the World
Economy " in
Internationale Politik und Gesellschaft
, n°1/2009, pp. 27-44 ; Idem, " Is the Eurozone doomed to
fail ", pp. 23-27, in
Making Sense of Europe's Turmoil
, CSE, Bruxelles, 2012.
[4] Sapir J.,
La Démondialisation
, Paris, Le Seuil, 2011.
[5] Jakab A., " La neutralisation de la question de la
souveraineté. Stratégies de compromis dans l'argumentation
constitutionnelle sur le concept de souveraineté pour
l'intégration européenne ", in
Jus Politicum
, n°1, p.4, URL:
www.juspoliticum.com/La-neutralisation-de-la-question,28.html
[6] Décision 85-197 DC 23 Août 1985, Voir : Jacques Ziller,
" Sovereignty in France: Getting Rid of the
Mal de Bodin "
, in
Sovereignty in Transition
. éd. Neil Walker, Oxford, Hart, 2003.
[7]
Rousseau J-J.,
Du Contrat Social
, Flammarion, Paris, 2001.
[8]
Kelsen H., "La méthode et la notion fondamentale de la
théorie pure du droit "
Revue de Métaphysique et de Morale,
T. 41, No. 2 (Avril 1934), pp. 183-204.
[9] Kelsen H.,
Théorie générale des normes
, (traduction d'Olivier Beaud)
PUF, 1996, Paris.
[10] A. Hold-Ferneck, H. Kelsen,
Lo Stato come Superuomo, un dibattito a Vienna
, édité par A. Scalone, Il Mulino, Turin, 2002
[11] Dupuy R.J.,
Le Droit International
, PUF, Paris, 1963
[12] Goyard-Fabre S., " Y-a-t-il une crise de la
souveraineté? ", in
Revue Internationale de Philosophie
, Vol. 45, n°4/1991, pp. 459-498.
[13] Jakab A., " La neutralisation de la question de la
souveraineté. Stratégies de compromis dans l'argumentation
constitutionnelle sur le concept de souveraineté pour
l'intégration européenne ", op.cit., p. 11.
[14] Jakab A., " La neutralisation de la question de la
souveraineté. Stratégies de compromis dans l'argumentation
constitutionnelle sur le concept de souveraineté pour
l'intégration européenne ", op.cit., p. 12.
[15] S. Goyard-Fabre, " Y-a-t-il une crise de la
souveraineté? ", op.cit., p. 480-1.
06/Janeiro/2017
O original encontra-se em
russeurope.hypotheses.org/5577
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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