Não a uma Europa da bagalhoça
A UE quer destruir a viticultura europeia
por Raoul Marc Jennard
[*]
Há cento e um anos atrás, aqui mesmo em Maraussan, diante duma
multidão reunida a convite da então bem jovem Sociedade
Cooperativa dos Vinhateiros Livres, Jean Jaurès declarou "O que
dá a todo este Sul da vinha uma beleza incomparável é que
a força alegre da vida nele se exprime". Hoje sem dúvida
temos a força. Mas não estamos alegres. Estamos aqui reunidos
para exprimir a nossa cólera e manifestar a nossa
determinação. Há algumas semanas numa comissão do
Parlamento Europeu o representante da Comissão Europeia declarou:
"O que desejamos é uma desregulação completa do
mercado do vinho". E é essa mesma a intenção dessa
máquina de destruir o património europeu, que é a
Comissão Europeia. Pretendem defender a viticultura europeia, mas
recusam-se a protegê-la e esforçam-se por dissolvê-la no
mercado mundial dum vinho desnaturado já batizado, em inglês pois
claro, de "world wine".
Qual é o problema? Desde há seis anos a oferta de vinho é
superior à procura. Isto porque a Europa quase que importa tanto vinho
como o que exporta.
Porquê?
Duas razões. A primeira: estamos num país onde se estigmatizou
quase ao absurdo o consumo de vinho. Os poderes públicos fizeram-se
aliados da Coca-Cola no lugar dos vinhateiros, os quais, desde há 60
anos, empregam esforços enormes para privilegiar a qualidade. Como
consequência há menos um milhão de consumidores de vinho
que há seis anos atrás e 30% menos que há 25 anos.
Segunda razão: a concorrência mundial num sistema onde,
especialmente por iniciativa da Europa, o mercado mundializado e desregulado
é a lei. Fora da Europa onde as exigências de qualidade não
são objecto de regulamentação e onde os direitos de
plantação são ilimitados, as superfícies de vinhedo
aumentaram consideravelmente no decurso dos últimos vinte anos: na
África do Sul 29%, na Austrália 169%, nos Estados Unidos 26%, no
Chile 48%, na Nova Zelândia 240%, enquanto que diminuíram 16% na
Europa dos Quinze. Isto traduz-se por um aumento espectacular das
exportações de vinho desses países: África do Sul +
770%, Austrália + 500%, Chile + 270%, Estados Unidos + 160%.
Quais são as consequências?
Na presença duma oferta maior que a procura, na ausência de
protecção contra a concorrência desleal com vinhos que
não estão submetidos aos mesmos critérios, os
preços disparam e o trabalho deixa de ser remunerado de maneira
satisfatória. Todos vós sabeis como cada ano faltam pelo menos
1.000 euros por hectare, não para viver decentemente, mas para cobrir os
custos de exploração. No nosso Languedoc Roussillon, a primeira
região da Europa em superfície vitícola em
relação à superfície agrícola, há
mais de 24.000 explorações; 30.000 pessoas vivem directamente da
vinha. Mas pode-se chamar viver a isto?
Que propõe a Comissão Europeia?
Fazer conforme satisfaça aos Estados Unidos que desejam ver desaparecer
os nossos critérios de qualidade e às grandes companhias,
especialmente francesas e italianas, que desejam vender na Europa vinhos de
domínios vitícolas de que são proprietárias nos
países que já citei e onde não há nenhuma
exigência de qualidade. A Comissão Europeia avança com
quatro propostas que não são senão quatro agressões:
Primeira agressão:
Uma vez que a produção europeia é a maior do mundo
é necessário diminuí-la e arrancar em cinco anos 400 mil
hectares de vinha! Como se propõe ligar os subsídios de arranque
à situação económica dos viticultores, não
será sequer privilegiado o arranque onde os solos sejam menos bons. Esta
estratégia de arranque cego vai desperdiçar força de
trabalho, reorientar o regime fundiário em direcção
à especulação imobiliária e modificar os terrenos.
Inevitavelmente deixaremos de exportar mais que importamos. Sendo o saldo
actual das nossas exportações de vinho ainda equivalente à
venda de 100 Airbus! É assim que, em nome do liberalismo, se liquida uma
das riquezas do património agrícola e cultural da Europa. Porque
a supremacia do vinho europeu estaria ameaçada, a Comissão
não propõe nada mais que lhe pôr fim.
Segunda agressão:
A supressão dos mecanismos reguladores do mercado. Na mais pura
lógica liberal é preciso renunciar a qualquer
intervenção reguladora. A UE propõe então suprimir
os apoios à destilação, ao armazenamento e aos mostos para
fabricação de sumos de uva. Resultará daí que, mais
que hoje, será o mercado a fixar a cotação do vinho e que
uma estabilidade de preços se tornará quase impossível.
É preciso lembrar que a União Europeia não contraiu
nenhuma obrigação jurídica forçando-a à
supressão das subvenções à produção e
à exportação do vinho europeu e que invocar as regras da
OMC revela a falsidade do discurso.
Terceira agressão:
Renunciar à prova de qualidade da etiquetagem. A Comissão
Europeia ajusta a viticultura europeia à nomenclatura da OMC. Quer
suprimir as categorias que definem a qualidade, como a AOC (Appelation
d'Origine Contrôlée), e substituí-las por duas categorias:
os vinhos com indicação geográfica e os vinhos sem
indicação geográfica. Isto significa que a Europa deveria
renunciar às qualificações que não só
indicam a origem mas também garantem o respeito por um caderno de
encargos no qual se obriga a critérios como a cepeira
(encépagement),
a fiscalização dos rendimentos, os métodos de
vinificação, de armazenamento e de envelhecimento do vinho.
Renuncia-se às regras existentes para facilitar a venda de vinhos
não europeus, fazendo desaparecer a possibilidade de identificar a sua
qualidade. Mas que belo brinde para os contrabandistas. Para uma União
Europeia que não se cansa de declarar quanto trabalha no interesse dos
consumidores, eis a prova do contrário.
Quarta agressão:
Renunciar aos critérios de qualidade. A Comissão outorga-se a
competência, até aqui detida pelos governos, de definir as
práticas enológicas. Ela quer que os viticultores europeus
adoptem os métodos de vinificação dos seus concorrentes.
Quer que se permita ajuntar ao vinho aparas de carvalho, aromas
sintéticos, leveduras e cultivar bacelos aromáticos criados por
modificação genética. Quer que se possa misturar vinhos
europeus com vinhos vindos de outros continentes. Quer pôr fim à
interdição de vinificar mostos importados. É um verdadeiro
plano de desnaturação dos vinhos europeus o que a União
Europeia quer pôr em prática. Renunciam, para agradar aos Estados
Unidos, a tudo quanto faz a qualidade dos nossos vinhos, insultando assim o
trabalho de gerações de viticultores que, incansavelmente,
procuraram uma qualidade cada vez superior. O vinho, o nosso vinho, encerra em
si um sentido e uma originalidade. E é isso que eles querem destruir.
Sublinho que não existe actualmente nenhuma obrigação
pelas regras da OMC de negociar o abandono daquilo que faz a originalidade do
vinho europeu: um vinho proveniente exclusivamente da
fermentação do sumo da uva, seguida pelo trabalho engenhoso e
paciente do vinhateiro.
A esta formidável agressão contra a civilização
europeia do vinho qual é a resposta possível?
A crise que atinge a viticultura é, em bastantes aspectos,
comparável à da de 1907. Os nossos antepassados conseguiram fazer
ouvir o brado de desespero que lançaram. E conseguiram obter as reformas
indispensáveis. Por terem chamado à greve contra os impostos e
pela demissão das autarquias, os que se chamavam a si mesmos de
"pobres" enfrentaram os soldados de Clémenceau antes que estes
últimos pudessem fraternizar com os vinhateiros. É graças
a eles que a definição do vinho como produto natural foi
conseguida. Foram eles que iniciaram o movimento das adegas cooperativas.
Hoje a agressão é europeia, mas é europeia porque tem
cúmplices nacionais. Com efeito, o que quer que a Comissão
Europeia proponha, tem que ter o assentimento dos governos. Alguns dentre
nós sugerem um "Grenelle da viticultura". Não creio que
isso baste, porque o problema é ao mesmo tempo nacional e europeu.
Não nos podemos concentrar em soluções nacionais de
eficácia limitada, se não houver ao mesmo tempo um confronto com
as instituições europeias.
Eu disse bem, um confronto. Não há nada a esperar duma
Comissão Europeia que em todos os domínios pretende fazer
desaparecer o primado do interesse geral. Não há nada a esperar
duma Comissão Europeia que propõe, como política
única, a desregulação e a lei do mercado. Se há uma
ruptura que hoje se impõe, é a que consiste em dizer: acabou,
não aceitamos mais a ditadura duma Europa que se constrói contra
nós.
Outros já o fizeram e com bom sucesso. Lembrai-vos dos estivadores de
todos os portos da Europa. Deram-nos uma formidável lição
de combatividade; mostraram-nos que, unidos e determinados, podemos parar esta
máquina infernal.
Serão os viticultores menos determinados, menos numerosos ou a sua causa
menos justa que a dos estivadores?
A tal questão, é aos próprios vinhateiros que cabe dar a
primeira resposta: é necessário unir a viticultura camponesa
europeia e organizar uma resposta a nível europeu com uma
determinação sem falhas.
A segunda resposta, cabe a nós todos, vinhateiros e defensores da
civilização do vinho, dá-la. Temos que pedir
explicações aos eleitos nacionais e europeus, pedir
explicações ao governo francês e às
instituições europeias. Podemos pedir-lhes
explicações individual ou colectivamente: visitemos os
parlamentares e visitemos os governadores civis que são as orelhas do
governo. Organizemos concentrações como esta e
manifestações em Paris, Bruxelas e em Estrasburgo. Não
esperemos que os jornalistas venham a nós, eles não virão.
Vamos visitá-los às redacções dos jornais, das
rádios e das televisões para dizer uma verdade que eles passam em
silêncio.
Não nos contentemos com falsas respostas. Exijamos uma verdadeira
protecção da viticultura europeia. Proteger-se é um
direito. Hoje, em nome da mais selvagem das livres trocas, pretendem
interditar-nos a protecção. Uma União Europeia que
não protege as especificidades da Europa tem que mudar. Se não o
fizer, prova que não serve para nada.
Jaurès, aqui mesmo, regozijava-se com a jornada "radiante de
esperança" que passara em Maraussan. Que este 17 de Novembro seja
também para o país da vinha uma jornada de esperança.
Porque esta é uma jornada na qual, todos juntos, pretendemos ser dignos
dos nossos antepassados de 1907.
19/Novembro/2006
[*]
Investigador altermundialista, Membro do comité de proposta do Apelo
contra os piratas naufragistas do vinho, Maraussan, 17 de Novembro de 2006.
Apelo contra os piratas naufragistas do vinho
De que se trata? Nada menos que legalizar a nível europeu o
"arranjo" dos nossos vinhos de forma a torná-los
compatíveis com uma norma de consumo imaginada por especialistas de
marketing das grandes alcooleiras internacionais. Poder-se-á aromatizar
o vinho, retirar-lhe o álcool, ajuntar-lhe glicerol, fermentar na Europa
mostos concentrados da Argentina ou até mesmo importar sumo de fruta
para fabricar "vinhos" suecos! Poder-se-á misturar os
continentes e pôr em concorrência as misérias
a fim de lucrar com a exploração dos trabalhadores dos novos países produtores para pagarmos mais barato pelo vinho no supermercado
.
Apelo último contra os piratas naufragistas do vinho!
Ler, assinar a petição:
www.contrelesnaufrageursduvin.org
Ler também
Quand le "world wine" coulera à flots...
, por Thierry Brun, Politis.
O original encontra-se em
http://www.legrandsoir.info/article.php3?id_article=4353
Tradução de DF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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