Os bancos centrais como bancarrotas de último recurso
O Federal Reserve é um "bad bank"
por Valentin Katasonov
[*]
O capitalismo moderno é referido como financeiro. Esta
característica tornou-se particularmente evidente ao longo das
últimas quatro décadas, a seguir à mutação
do padrão dólar-ouro (o sistema monetário de Bretton
Woods) para o padrão dólar-papel (o sistema monetário
Jamaica). O travão do ouro foi removido das impressoras do US Federal
Reserve System (FRS) e emergiu a possibilidade de imprimir um montante
ilimitado de dólares-papel. O problema de assegurar procura para o
produto saído das impressoras do FRS ficou na ordem do dia. Um dos
principais meios para resolver este problema foi o desenvolvimento
rápido dos mercados financeiros, que começaram a devorar os
dólares que estavam a ser produzidos em quantidades cada vez maiores.
Nos bons e velhos tempos 90 por cento de todas as transacções no
mercado de divisas global referiam-se ao comércio internacional, mas
agora esta percentagem caiu para 3 a 4 por cento na melhor das
hipóteses. O restante refere-se a operações no mercado da
própria divisa e em outros mercados financeiros a bolsa, o
mercado de crédito e o mercado de derivados financeiros.
Outra característica do moderno capitalismo financeiro é que o US
dólar e todas as outras divisas são moeda creditícia
e não é apenas e nem tanto o banco central que está
envolvido na sua emissão. Bancos comerciais que têm licença
para a produção da chamada moeda de depósito (não
cash) são responsáveis pelo grosso da emissão. A
emissão de moeda creditícia inevitavelmente dá origem a
dívida e esta dívida está a crescer com uma rapidez
surpreendente em todo o mundo. Ela está a comer todo o resto da economia
(o "sector real") tal como um cancro. A dívida global
já está próxima dos 300 por cento do PIB global e, em
termos reais, é aproximadamente de US$200 milhões de
milhões
(trillion).
Enquanto o principal problema do capitalismo anterior era a chamada
super-produção de mercadorias que provocavam crises
cíclicas recorrentes e uma queda nos preços de produtos da
economia real, o problema do moderno capitalismo financeiro é a
super-produção de moeda. O resultado tem sido uma queda nas taxas
de juro das operações bancárias activas e passivas
até ao ponto de se tornarem negativas. O sistema bancário
não pode existir por muito tempo em tais condições. Ao
aumentarem as suas emissões monetárias, os bancos estão
também a aumentar a sua instabilidade. O nível de cobertura das
suas obrigações está a cair e o risco de possíveis
bancarrotas está a crescer. O século XX testemunhou um certo
número de crises bancárias. No século XXI, a probabilidade
de tais crises bancárias está em crescimento.
Para melhorar a estabilidade do sistema bancário construído pelos
prestamistas globais de moeda, um sistema que lhes permite fazer moeda a partir
do nada
(from thin air),
foi acrescentado um elemento importante chamado "banco central".
Qualquer manual de teoria económica dirá que esta
instituição é o "prestamista de último
recurso". Ele lança aos bancos em vias de se afogarem uma
bóia de salvação sob a forma de empréstimos. Um
banco central não pode salvar a todos, naturalmente. Ele salva a
"elite" grandes bancos privados (os bancos que constituem a
"espinha dorsal). Diz-se que estes bancos são "demasiado
grandes para falir" e acredita-se geralmente que os bancos centrais, como
deuses, existirão para sempre.
Nas últimas décadas, contudo, afirmações como esta
estão a ser cada vez mais postas em causa. No mínimo, é de
recordar a crise financeira de 2007-2009 quando o Lehman Brothers, um dos
maiores bancos da Wall Street, entrou em bancarrota. Houve seis anos de
estabilidade desde então, mas o mundo passa o tempo, a cada dia,
à espera da segunda onda da crise financeira. Muitos acontecimentos
notáveis ocorreram no mundo financeiro neste período. Um deles
foi o programa da facilidade quantitativa
(quantitative easing, QE)
lançado pelo Federal Reserve dos EUA. O objectivo oficial do programa
era criar condições para a ressurreição da economia
americana a seguir à crise financeira e reduzir o desemprego. O meio
para alcançar este objectivo era aumentar a oferta monetária na
economia estado-unidense através da compra de títulos
(securities)
de bancos americanos. Estavam prontos a comprar a) títulos do Tesouro
dos EUA; e b) títulos apoiados por hipotecas. As autoridades dos EUA
declararam que isto melhoraria a liquidez de bancos americanos e a sua
capacidade para conceder crédito à economia do país.
Mas o que aconteceu realmente? Por um lado, bancos dos EUA conseguiram libertar
seus balanços dos títulos hipotecários, alguns dos quais
eram francamente lixo (tóxico); o preço real de mercado era mais
baixo do que o seu valor nominal. A compra do Federal Reserve de títulos
hipotecários foi uma bela prenda para bancos privados. Pelo outro lado,
contudo, a liquidez adicional recebida por estes bancos não foi dirigida
à economia real mas sim para onde seriam capazes de ganhar mais e mais
rapidamente. Nomeadamente, rumo a mercados financeiros para
operações especulativas. Ou então a moeda foi para
"refúgios seguros", para títulos do Tesouro e para
contas de depósito no FRS. No final das contas, o programa QE, o qual
tinha o objectivo proclamado de restaurar a economia, reduziu-se a nada mais do
que proporcionar aos bancos principais uma alimentação
suplementar e preparar o caminho para uma nova onda da crise financeira.
Durante o tempo todo as impressoras do Federal Reserve estiveram a trabalhar
mais arduamente do que alguma vez haviam trabalhado antes, mesmo durante os
anos dourados a seguir ao colapso do padrão gold exchange. O total dos
activos consolidados do Federal Reserve System (o balanço total dos 12
bancos da Reserva Federal que constituem o FRS) cresceu de US$832 mil
milhões em Janeiro de 2007 para US$4.500 mil milhões em
Março de 2015, portanto num factor de 5,4.
Tabela 1 Balanço consolidado do US Federal Reserve System em
18/Março/2015
ACTIVO
|
US$ mil milhões
|
%
|
PASSIVO
|
US$ mil milhões
|
%
|
Activos, total
|
4.495,9
|
100
|
Passivos, total
|
4.495,9
|
100
|
Incluindo:
|
|
|
Incluindo:
|
|
|
Títulos do Tesouro
|
2.459,8
|
54,7
|
Federal Reserve Notes
|
1.311,8
|
29,2
|
Títulos hipotecários
|
1.745,9
|
38,8
|
Contas de depósito
|
2.829,1
|
62,9
|
|
|
|
Capital próprio
|
57,5
|
1,3%
|
Como mostra a Tabela 1, os activos do US Federal Reserve System são em
grande medida constituídos por dois tipos de títulos os do
tesouro hipotecários. Este segundo tipo representa quase dois quintos de
todos os activos do Federal Reserve. Para comparação: em Janeiro
de 2007, 93,6 por cento de todos os activos do FRS eram representados por
títulos do tesouro e estes eram tanto Treasury bonds (60,3 por cento dos
activos) como Treasury bills (33,3 por cento). O títulos do Tesouro
são obrigações com uma maturidade de várias semanas
a um ano. Diga-se de passagem que os activos do FRS já não
incluem Treasury bills, só títulos do Tesouro a longo prazo. Na
linguagem de peritos profissionais em finanças, uma tal metamorfose
é chamada "diminuição na liquidez dos activos do
Federal Reserve".
Os passivos do Federal Reserve experimentaram uma transformação
radical. Hoje, as notas do Federal Reserve (ou papel-moeda) representam menos
de 30
por cento. A fatia do leão de todos os passivos é representada
pelas contas de depósito nas quais os bancos membros do FRS colocam seu
dinheiro. Este quadro é drasticamente diferente do que era no
começo de 2007. Naquele tempo, 98,6 por cento de todos os passivos eram
notas (moeda papel), ao passo que contas de depósito representavam uma
minúscula fatia de 1,4 por cento. De facto, elas não eram sequer
contas de depósito, mas contas de reserva
overnight
de bancos americanos membros do FRS que desempenhavam a função
técnica de meio de troca entre instituições financeiras
durante o
trading.
Tudo isto significa que o FRS começa rapidamente a parecer-se a um banco
comercial comum ao invés de um centro emissor de notas. Ainda por cima,
o Federal Reserve está a transformar-se num chamado "bad
bank". O conceito de "bad bank" emergiu entre autoridades
monetárias ocidentais durante a última crise financeira e
refere-se a uma organização financeira cujo balanço
está sobrecarregado com activos tóxicos de outros bancos,
primariamente bancos da "elite" ("principais"). Portanto
bancos da "elite" são capazes de manter a aparência de
que são confiáveis. O navio conhecido como Federal Reserve estava
sobrecarregado com activos "tóxicos" na forma de
títulos hipotecários devido à implementação
do programa QE. Aqueles que lançaram a ideia dos "bad banks"
trabalhavam com a premissa de que o FRS é um navio impossível de
afundar e capaz de aguentar quaisquer cargas. A natureza
"tóxica" destes activos é cuidadosamente ocultada pelo
facto de os títulos apoiados em hipotecas serem contabilizados a
preços inflacionados. O momento da verdade virá quando o FRS
tentar vendê-los no mercado. O valor de mercado será mais baixo do
que o valor contabilístico e mostrará uma perda. E mesmo que o
Federal Reserve mantenha estes títulos por tanto tempo quanto
possível, o momento da verdade acabará por chegar. Afinal de
contas, títulos hipotecários não são ilimitados,
mais cedo ou mais tarde a toxicidade destes títulos será
reflectida nos resultados financeiros do FRS (lucros e perdas). Este pormenor
desagradável do programa QE foi destacado pela agência de
notícias Bloomberg há mais de dois anos. A agência
encarregou a MSCI, os mesmos consultores aos quais o FRS pediu para executar
testes de stress em 19 dos principais bancos americanos, de analisar a
estabilidade do Federal Reserve. Verificou-se que naquele momento
(princípio de 2013), os activos do Federal Reserve montavam a
aproximadamente US$3 milhões de milhões. Se o programa QE for
reduzido gradualmente e o FRS se desfizer dos seus activos tóxicos
(dentro de três anos), o Federal Reserve estará a encarar perdas
totais que vão dos US$216 mil milhões a US$547 mil
milhões. Por outras palavras, a perda média anual seria igual a
US$72-182 mil milhões. É de notar que em anos anteriores (antes
do lançamento do programa QE), o lucro médio do Federal Reserve
estava sobretudo em torno dos US$70-80 mil milhões. Contudo, estes
cálculos foram há dois anos atrás. Hoje, o nível de
toxidade dos activos do Federal Reserve aumentou consideravelmente.
Os títulos hipotecários nos activos do Federal Reserve são
uma mina de acção retardada. Títulos do tesouro não
proporcionam o lucro requerido. Examinemos por exemplo títulos com uma
maturidade de cinco anos. Em Março de 2014, sua taxa anual de retorno
era 1,67 por cento, em 25 de Fevereiro de 2015 ela já equivalia a 1,54
por cento e um mês depois, em 25 de Março, a taxa havia
caído para 1,36 por cento. É de notar que esta queda na taxa de
juro em obrigações do Tesouro acompanha a redução
gradual do programa QE.
Enormes montantes de moeda nas contas depósito do Federal Reserve exigem
consideráveis pagamentos de juros a bancos clientes. Mas não
há nada para pagar. Desde Outubro de 2008, o FRS paga 0,25 por cento
sobre reservas bancárias; esta taxa é conhecida como IROR. A
introdução de uma taxa de juro zero está a ser discutida
actualmente é há mesmo discussões sobre a possibilidade de
estabelecer uma taxa de juro negativa sobre contas de depósito. Os
bancos centrais da Suécia e da Dinamarca já fizeram isto e o
Banco Central Europeu está a planear fazê-lo.
Isso recorda-me que o BCE anunciou o início do seu próprio
programa de facilidade quantitativa. O que equivale a dizer que começa a
comprar lixo (tóxico) de títulos de dívida dos estados
membros da UE por euros. O processo de "intoxicação" do
balanço do BCE começou, o qual poderá demonstrar-se letal
para este centro emissor (o segundo mais importante do mundo, após o
FRS).
Transferir perdas de um banco para outro não altera as perdas totais nos
sistemas bancário e financeiro. Os possuidores da moeda (os principais
accionistas do FRS) e seus serviçais (o governador do FRS, o
secretário do Tesouro dos EUA, conselheiros económicos da Casa
Branca) estão a tentar convencer o público de que através
de manipulações como programas de facilidade quantitativa seria
possível reduzir as perdas totais no sistema bancário. Não
funcionará. Na melhor das hipóteses, é possível
adiar a hora do ajuste de contas através da criação de
mais um "bad bank", mas mais cedo ou mais tarde todas as perdas
acabarão no balanço do banco central.
Chamo mais uma vez a atenção para o balanço do Federal
Reserve. O capital próprio do US Federal Reserve em
relação ao valor no balanço do mesmo é apenas de
1,3 por cento. E este capital simbólico não é representado
por ouro ou qualquer outra coisa de valor real, mas sim por registos
electrónicos. É a trivial magia negra financeira.
Do ponto de vista dos rácios de adequação do capital
desenvolvidos pelo Banco de Pagamentos Internacionais
(Bank for International Settlements, BIS)
para bancos (comerciais) comuns (Basileia II, Basileia III), o US Federal
Reserve System está completamente em bancarrota. Neste momento, toda a
gente no mundo das finanças está a tentar não perceber
isso, mas a situação não pode continuar a passar
desapercebida por muito tempo.
Aos bancos centrais (o FRS, o BCE e outros) tem sido assinalado o papel de
último elo na cadeia de "bad banks". Em algum ponto, o
prestamista de último recurso inevitavelmente se tornará na
bancarrota de último recurso. Será o acto final na estória
do capitalismo financeiro.
01/Abril/2015
Do mesmo autor:
Foreign Hostages Held by the US Federal Reserve
[*]
Economista.
O original encontra-se em
m.strategic-culture.org/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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