Como enfrentar os fundos abutres e o imperialismo financeiro
Vou começar imediatamente o tema, a partir de um olhar sobre os
"fundos abutres". Em primeiro lugar diria que os "fundos
abutres" são a versão extrema do capitalismo financeiro. A
versão extrema, isto é, que são a vanguarda e por
trás estão os batalhões, que se chamam Goldman Sachs,
Santander, J.P. Morgan, BBVA, City Bank, etc.
A sentença do juiz Griesa procura fazer retroceder a América
Latina à situação do final do século XIX e da
primeira parte do século XX, quando os Estados Unidos tinham a
possibilidade de intervir, assim como outros credores, de maneira direta para
forçar o pagamento da dívida.
Assim, pois, é um desafio muito importante ter colocado no programa,
como fizeram os organizadores, o tema em termos de alternativa da Doutrina
Drago |
[1]
|; efetivamente, é um elemento importante. De que trata a Doutrina
Drago? O chanceler Elías Jaua já mencionou e destacou a
contribuição de Drago no conflito da Venezuela com os credores em
1902.
Há, na realidade, duas doutrinas: a Doutrina Drago e a Doutrina
Calvo |
[2]
|. Ambos eram juristas argentinos. Calvo, o primeiro que emitiu a doutrina,
disse que os países da América Latina tinham que resolver os
litígios com estrangeiros via sua jurisdição nacional e
não podiam delegar à Justiça dos Estados Unidos ou de
qualquer outro país ditar uma sentença acerca de um
litígio.
Drago, que em 1902 era ministro de Relações Exteriores da
Argentina, retomou uma parte da Doutrina Calvo, fê-la sua e acrescentou
que não se podia utilizar a força militar para exigir o pagamento
de uma dívida externa. Na época, provocou um debate
diplomático porque, evidentemente, os Estados Unidos eram totalmente
contrários, tanto da Doutrina Drago como da Doutrina Calvo.
Enquanto isso, os países da América Latina nos anos 1920 e 1930
começaram a adotar e incorporar em suas Constituições
nacionais elementos das doutrinas Drago e Calvo.
E a ofensiva neoliberal desde a década de 1980 nestas terras consistiu
em destruir a aplicação dessa doutrina, o que faz com que, por
exemplo, na Constituição argentina ainda esteja claramente
presente a doutrina Drago e Calvo, mas, na prática, a partir da ditadura
cívico-militar de 1976, a Argentina renuncia, nos contratos de
emissão de bônus de dívidas, à sua soberania e
à sua imunidade. E a partir de então delega à
Justiça dos Estados Unidos a possibilidade de ditar sentença.
O que está ocorrendo com o juiz Griesa, é claro que devemos
condená-lo. Temos que condenar essa ingerência dos Estados Unidos
e do juiz em assuntos da Argentina, mas para enfrentar esta ingerência
é necessário que os países da América Latina
coloquem novamente em prática as doutrinas Calvo e Drago. Ou seja,
quando os países da América Latina emitirem bônus devem
deixar claro no contrato que em caso de litígio é a
Justiça local, a Justiça Federal, que vai dirimir o conflito.
Isso é fundamental. Seria um primeiro passo para enfrentar a
situação atual e evitar uma extensão da ofensiva tipo
Griesa contra outros países da América Latina.
Creio também que, falando de alternativas, é importante convencer
outros países da América Latina a seguirem o caminho escolhido
pela Bolívia, Venezuela e Equador, que decidiram sair do tribunal do
Banco Mundial |
[3]
Estes três governos, começando pela Bolívia, que toma essa
decisão em 2008, decidiram renunciar à sua
participação como parte do tribunal do Banco Mundial sobre
litígios em matéria de investimentos.
E seria muito bom para a América Latina que um país como a
Argentina tomasse essa mesma decisão. O Brasil tomou essa decisão
antes, já que não reconhece a competência do CIADI. Talvez
o Brasil seja dos países da América Latina que, por
tradição como superpotência regional, mais afirma a sua
soberania e assina poucos tratados que deleguem sua soberania a outras
jurisdições.
Mas, além disso... como destacou Luis Bilbao, abordar a
problemática dos "fundos abutres" nos obriga a retornar ao
tema da dívida externa. Uma dívida externa que, em grande parte,
é dívida ilegítima.
Uma parte da dívida contratada paga pela Argentina hoje é uma
herança da dívida contratada pela Junta Militar entre
1976-1983... É uma herança da dívida contratada por Carlos
Menem na década de 1990, quando implementou uma política
neoliberal brutal.
É uma herança da Megatroca organizada pelo Domingo Cavallo em
2001 quando era ministro da Economia do governo de De La Rúa... que caiu
sob a pressão da rua... da rua, em dezembro de 2001.
O que fez o presidente Rodríguez Saa, presidente durante uma semana, a
última semana de dezembro de 2001? Decide uma suspensão
unilateral do pagamento da dívida, manifestando (se recordo bem) que:
"enquanto não houver pleno emprego no país, suspendo o
pagamento da dívida".
O pagamento da dívida comercial (de cerca de 90 bilhões de
dólares) foi suspenso durante o período que vai de 2001 a 2005.
Graças a isto a Argentina conseguiu recuperar o nível
econômico e, aproveitando o aumento dos preços de suas
exportações, a partir de 2003, pôde investir em
desenvolvimento econômico e ter uma verdadeira recuperação.
Houve então a reestruturação da dívida, a partir de
2005, através da qual a Argentina realizou uma troca da dívida,
conseguindo com isso um significativo pagamento desta, mas, ao mesmo tempo,
aceitou reconduzir a delegação da jurisdição e a
renúncia à soberania, e aceitar a imunidade nos novos contratos.
E, depois, em 2010, reabriu a troca da dívida, com iguais
características.
Então, claro, denunciamos os "fundos abutres". Mas é
preciso dar-se conta de que se nós cometemos erros, os inimigos
vão se aproveitar desses erros. Podem apoiar-se nestes erros de
estratégia ou de tática para impor, na prática, seus
interesses.
Quero voltar ao tema da dívida, já que se converte, novamente, em
um poderoso instrumento de subordinação dos povos da
América Latina. Que será um instrumento, nos anos vindouros, para
impor novamente políticas neoliberais como se está fazendo na
Europa, de onde venho e que atualmente é o epicentro da ofensiva do
capital contra o trabalho, dos credores contra os devedores.
Creio que não se deve descartar uma nova crise da dívida externa
nos próximos anos, que pode afetar a América Latina por duas
razões: os Estados Unidos vão aumentar a taxa de juros em
nível internacional. Já é uma decisão, já
foi anunciado. O faz por etapas e, embora a taxa de juros ainda seja muito
baixa, o aumento virá nos próximos meses e anos, e isso
está absolutamente claro. E o outro tema é a
redução dos preços das matérias-primas. Isso
também é uma possibilidade para o futuro. Se coincidir um aumento
da taxa de juros internacional e uma baixa nos preços das
exportações de petróleo, de soja (da Argentina), de
minerais, etc., outra vez a América Latina pode cair na armadilha da
dívida pública soberana como aconteceu na década de 1980.
E para sair disso, creio que se deve combinar várias estratégias.
Estamos aqui discutindo alternativas.
Penso que a história nos demonstra que, por meio de atos soberanos
unilaterais baseados no direito internacional, um país pode obter o
respeito dos interesses do seu povo.
E isso remonta ainda ao século XIX, quando o primeiro presidente de raiz
indígena da América Latina, Benito Juárez, indígena
zapoteca, decidiu, em 1861, como presidente do México, suspender o
pagamento da dívida com a França e com Londres, o que implicou
depois uma intervenção militar francesa com vistas a impor o
imperador Maximiliano, que foi mais tarde derrubado pela resistência do
povo mexicano e resultou na vitória de Benito Juárez. Esse
imperador imposto por Napoleão III foi executado em 1867 pelo
Exército mexicano vitorioso contra a França.
Recordar também, porque estou fazendo um pouco de história, que
Karl Marx escreveu (em 1867) no capítulo 31 do Livro I de O Capital o
seguinte:
"A Dívida Pública, com outras palavras, é a
alienação do Estado, quer seja despótico, Constitucional
ou Republicano, marca com o seu selo a era capitalista. A dívida
pública opera como um dos agentes mais enérgicos da
acumulação primitiva. Com as dívidas públicas nasce
um sistema de crédito internacional que oculta muitas vezes uma das
fontes da acumulação primitiva capitalista".
Voltamos novamente à dívida pública, que pode
transformar-se nos próximos anos em um instrumento de
dominação.
Mas, passando para o século XX que, quando se iniciou a
revolução mexicana, em 1914, uma das primeiras decisões de
Emiliano Zapata e Pancho Villa foi a suspensão do pagamento da
dívida |
[4]
.
O México suspendeu o pagamento entre os anos 1914 e 1942 e conseguiu
impor aos credores uma redução da dívida de 90% tal como
existia em 1914, ou seja, sem nenhum juro agregado. Uma vitória total
que demonstra a importância de um ato soberano unilateral frente aos
credores.
Na década de 1930, 14 países da América Latina suspenderam
os pagamentos da sua dívida externa: Cuba, em 1933; o Brasil, com
Getúlio Vargas (1933), determinou a realização de uma
auditoria da dívida e conseguiu, a partir da mesma, uma
anulação da dívida através de uma
reestruturação em 1943, com uma redução de
60% |
[5]
.
E se fizermos uma comparação entre os países que
suspenderam o pagamento da dívida na década de 1930 e os que
continuaram pagando, são os que suspenderam o pagamento que, apesar das
represálias, conseguiram um crescimento mais alto que os outros
países.
Nos últimos anos, tomemos o caso do Equador. Fiz parte da
Comissão Presidencial de Auditoria da Dívida criada pelo
presidente Rafael Correa, em 2007 |
[6]
. A mesma foi integrada por 18 pessoas, 12 das quais eram equatorianos e seis
delas de outros países. Alejandro Olmos Gaona da Argentina, entre outros.
Esta Comissão analisou a dívida contratada pelo Equador entre
1976 e 2006 e após 14 meses de trabalho remeteu o resultado ao governo
de Rafael Correa
[7]
que, em novembro de 2008, decidiu suspender o pagamento de maneira unilateral
de uma parte da dívida comercial. Tinha o dinheiro para pagar, mas
disse: "É uma dívida ilegítima; não há
razão para pagar uma dívida ilegítima" e conseguiu
impor aos credores, baseado no resultado da auditoria, uma
redução de 70% em junho de 2009. Aqui houve uma diferença
entre as decisões tomadas na Argentina dos anos 2000 e o Equador, que
fez uma auditoria e, a partir do resultado da mesma, uma recompra de
títulos (não uma troca) recomprando a 30 centavos de dólar
os títulos da dívida externa.
Desta maneira, não houve a possibilidade de que o Equador fosse levado a
juízo pelos Estados Unidos, já que os títulos deixaram de
existir. Não houve troca. Do que cabe tirar uma importante
lição.
Terceiro exemplo: a Europa converteu-se, como já se mencionei, no
epicentro de uma brutal ofensiva neoliberal capitalista dos últimos
anos. A Grécia converteu-se em um país similar aos da
América Latina ou da Ásia dos anos 1980-1990. Ou seja, submetido
aos ditames do Fundo Monetário Internacional e dos credores.
Há uma experiência pouco conhecida, tanto na Europa como no resto
do mundo. É o caso da Islândia que, em 2008, viu a bancarrota
total de seu sistema bancário, a exemplo do que havia acontecido no
Equador em 1999. A Islândia, com uma mobilização popular
muito forte, decidiu não pagar a sua dívida externa ao Reino
Unido e Países Baixos.
O Reino Unido protestou de maneira muito espalhafatosa contra a decisão
unilateral do não pagamento e considerou a Islândia como um
país terrorista equivalente à Al Qaeda, congelando os haveres da
Islândia no Reino Unido.
Apesar disso, a partir de uma mobilização popular e de dois
referendos, a população deste país obrigou o seu governo a
não pagar a dívida desde 2008 até a data, tanto ao Reino
Unido como aos Países Baixos, convertendo-se em um ato soberano
unilateral, que permite à Islândia um crescimento econômico
maior que o resto da Europa. E podemos comparar a Islândia, que se
rebelou contra os credores, com a Grécia, que aceitou a
dominação por parte dos credores e que, em consequência,
tem uma queda do PIB de 20%, comparável ao que teve a Argentina entre
1999 e final de 2001 e início de 2002.
Então, um argumento muito forte é que os países têm
o direito de adotar ou tomar atos soberanos unilaterais.
Imaginar que uma justiça internacional vá dar razão
à Venezuela, à Argentina, ao Equador é sonhar com um mundo
que ainda não existe. Devem-se tomar atos soberanos unilaterais. Os
Estados Unidos fazem-no todos os dias. Eles tomam atos soberanos unilaterais
cada dia, por más razões: embargo contra Cuba ou o apoio a
Israel, por exemplo. Israel multiplica os atos soberanos unilaterais, que leva
quase ao genocídio do povo palestino. E, no entanto, não acontece
nada...
Por que não agir de maneira soberana, unilateral, mas fundado no
argumento do direito internacional, para respeitar a dívida social
contratada com os povos e, simultaneamente, acelerar em nível de
América Latina o lançamento do Banco do Sul, instituir o controle
do movimento de capitais lá onde não existe, manter ou instituir
o controle cambial, socializar a banca privada, decretar o monopólio
público sobre o comércio exterior?
Parece-me que Luis Bilbao terminou dizendo: não há
solução sem programa ou revolução socialista. Isso
faz parte da reivindicação socialista transitória rumo ao
Socialismo. É preciso ir além da denúncia do imperialismo
em nível teórico e dos fundos abutres, para pensar como fazer a
integração dos povos e voltar ao caminho indicado por Hugo
Chávez, quando apelava à criação do Banco do Sul,
à integração dos Povos e à
instauração de mecanismos de integração a favor dos
Direitos Humanos.
Muito obrigado pela atenção.
Notas
[1] A doutrina Drago recebe seu nome do ministro de Relações
Exteriores argentino, Luis María Drago, que a anunciou em 1902. O motivo
foi o bloqueio naval contra a Venezuela realizado pelas armadas do Reino Unido,
Alemanha e Itália diante do não pagamento da elevada
dívida externa acumulada pela Venezuela e cujo presidente, Cipriano
Castro, se negava a pagar. Apesar de que a doutrina Monroe o exigia, os Estados
Unidos se negaram a defender a Venezuela com o argumento de que não
ajudaria em casos de não pagamento de dívida. Diante disso, a
doutrina Drago estabeleceu que nenhum país estrangeiro poderia utilizar
a força para cobrar uma dívida. Embora a doutrina Drago tenha se
inspirado na também argentina doutrina Calvo, ambas não devem ser
confundidas.
[2] A Doutrina Calvo de Direito Internacional faz referência ao jurista
argentino Carlos Calvo (1824-1906). Esta assinala que quem vive em um
país estrangeiro deve realizar suas demandas atendo-se à
legislação local desse país, sem recorrer a
pressões diplomáticas nem intervenções armadas.
Quanto às vias diplomáticas internacionais, não se poderia
recorrer a elas antes de ter esgotado as vias jurídicas locais.
Várias Constituições da América Latina recolhem
esta doutrina Calvo.
[3] Este tribunal do Banco Mundial é o Centro Internacional para
Arbitragem de Disputas sobre Investimentos, CIADI.
[4] Ver Éric Toussaint, "México: o escândalo
silencioso
da dívida externa e do modelo neoliberal", publicado em julho de
2002,
cadtm.org/...
http://cadtm.org/Mexico-El-escandal..
.
[5] Éric Toussaint. "Retorno ao passado: colocação em
perspectiva da crise da dívida, em A bolsa ou a vida. A dívida
externa do Terceiro Mundo. As finanças contra os povos. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
[6] Ver
www.auditoriadeuda.org.ec/
[7] Ver o relatório final da CAIC
www.auditoriadeuda.org.ec/
26/Setembro/2014
[*]
Belga, historiador,
economista, cientista político, doutor em Ciências
Políticas, membro da Comissão Presidencial de Auditoria Integral
de Crédito Público (CAIC) do Equador, presidente do Comitê
Internacional pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo
(CADTM) e professor titular da Universidade de Liège (Bélgica).
Discurso pronunciado no Seminário Internacional "Alternativas ao
imperialismo financeiro e aos fundos abutres", em Caracas (Venezuela), no
dia 12 de agosto de 2014. Participaram como expositores deste fórum
internacional: Delcy Rodríguez, ministra da Comunicação e
Informação; Elías Jaua, chanceler da República
Bolivariana da Venezuela; Carlos Cheppi, embaixador da Argentina na Venezuela;
Éric Toussaint, CADTM; Luis Bilbao, Revista America XXI, Argentina.
O original encontra-se em
cadtm.org/Como-enfrentar-os-fundos-abutres-e
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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