O imperialismo da razão neoliberal
por Pierre Bourdieu e Löic Wacquant
[*]
Em todos os países avançados, patrões, altos
funcionários internacionais, intelectuais de projeção nos
media e jornalistas do top, estão de acordo em falar uma estranha
novilíngua
[1]
cujo vocabulário, aparentemente sem origem, circula por todas as bocas:
globalização, flexibilidade,
governabilidade e em-pregabilidade,
underclass e exclusão, nova economia
e tolerância zero, comunitarismo
[2]
, multiculturalismo e os seus primos
pós-modernos, etnicidade,
minoridade, identidade,
fragmentação, etc.
A difusão dessa nova vulgata planetária da qual se
encontram notavelmente ausentes capitalismo, classe, exploração,
dominação, desigualdade, e tantos vocábulos decisivamente
revogados sob o pretexto de obsolescência ou de uma presumível
falta de pertinência é produto de um imperialismo
apropriadamente simbólico: os seus efeitos são tão
poderosos e perniciosos porque ele é veiculado não apenas pelos
partidários da revolução neoliberal - a qual, sob a capa
da modernização, entende reconstruir o mundo fazendo
tábua rasa das conquistas sociais e econômicas resultantes de cem
anos de lutas sociais, descritas agora como arcaísmos e
obstáculos à nova ordem nascente , mas também por
produtores culturais (pesquisadores, escritores, artistas) e militantes de
esquerda que, na sua maioria, continuam a considerar-se progressistas.
IMPERIALISMO CULTURAL
Como as dominações de gênero e etnia, o imperialismo
cultural constitui uma violência simbólica que se apóia
numa relação de comunicação coerciva para extorquir
a submissão e cuja particularidade consiste, neste caso, no fato de
universalizar particularismos vinculados a uma experiência
histórica singular, ao fazer com que sejam desconhecidos enquanto tal e
reconhecidos como universais
[3]
.
Desta forma, também no século XIX muitas questões ditas
filosóficas que eram debatidas em toda a Europa, como o tema
spengleriano da decadência, partiam de particularidades e
conflitos históricos próprios do universo específico dos
universitários alemães
[4]
, da mesma forma que hoje, inúmeros tópicos provenientes de
confrontos intelectuais ligados a particularidades e particularismos da
sociedade e das universidades norte-americanas se impuseram, aparentemente fora
de um contexto histórico, ao conjunto do planeta.
Definições e deduções. Esses lugares-comuns, no
sentido aristotélico de noções ou teses que servem de
argumento sobre as quais não se argumenta, devem o essencial da sua
força de convicção ao prestígio do seu ponto de
partida e ao fato de que, ao circularem continuamente entre Berlim e Buenos
Aires ou de Londres a Lisboa, estarem simultaneamente em toda parte e serem
poderosamente transmitidos por essas instâncias supostamente neutras do
pensamento neutro que são os grandes organismos internacionais.
Instâncias como o Banco Mundial, a Comissão Européia, a
Organização de Cooperação e de Desenvolvimento
Econômicos (OCDE), enfim, os bancos de idéias do
pensamento conservador (o Manhattam Institute, em Nova York, o Adam Smith
Institute, em Londres, a ex-Fondation Saint-Simon, em Paris, a Deutsche Bank
Fundation, em Frankfurt), as fundações de filantropia, as escolas
do poder (Science-Politique, em França, a London School of Economics, na
Inglaterra, a Harvard Kennedy School of Government, nos Estados Unidos, etc.) e
os grandes meios de comunicação, divulgadores infatigáveis
dessa língua geral, sem fronteiras, perfeita para dar a ilusão de
ultramodernismo aos editorialistas apressados e especialistas ciosos da
importação-exportação cultural.
Além do efeito automático da circulação
internacional das idéias que, pela sua própria lógica,
tende a ocultar as condições e os significados originais
[5]
, o jogo das definições prévias e deduções
escolásticas substitui a contingência das necessidades
sociológicas negadas pela aparência da necessidade lógica e
tende a ocultar as raízes históricas de todo um conjunto de
questões e de noções: a eficácia do
mercado (livre), a necessidade de reconhecimento das identidades
(culturais), ou ainda a reafirmação-celebração da
responsabilidade (individual), que serão decretadas
filosóficas, sociológicas, econômicas ou políticas,
segundo o lugar e o momento de recepção.
A MITOLOGIA DO SONHO AMERICANO
Planetarizados, globalizados, no sentido estritamente geográfico, e ao
mesmo tempo desparticularizados, esses lugares-comuns, ao serem ruminados pelos
meios de comunicação transformam-se num senso comum universal,
fazendo esquecer que, na maioria das vezes, eles apenas exprimem - de forma
truncada e irreconhecível, até por aqueles que os propagam -
realidades complexas e contestadas de uma sociedade histórica
particular, tacitamente constituída em modelo e na medida de todas as
coisas: a sociedade norte-americana da era pós-fordista e pós-
keynesiana. Esse único superpoder, essa Meca simbólica da Terra,
caracteriza-se pelo desmantelamento deliberado do Estado social e pelo
hiper-crescimento correlativo do Estado penal, o esmagamento do movimento
sindical e a ditadura da concepção de empresa fundada apenas no
valor-acionário, assim como nas suas
conseqüências sociológicas: a generalização dos
salários precários e da insegurança social, transformada
em motor privilegiado da atividade econômica.
É o que ocorre, por exemplo, com o debate vago e fraco em torno do
multiculturalismo, termo importado, na Europa, para designar o
pluralismo cultural na esfera cívica, enquanto nos Estados Unidos se
refere, no interior do próprio movimento pelo qual ele os mascara,
à exclusão contínua dos negros e à mitologia
nacional do sonho americano da oportunidade para todos,
correlativa da falência que afeta o sistema do ensino público num
momento em que a competição pelo capital cultural se intensifica
e quando as desigualdades de classe crescem vertiginosamente.
A DEMISSÃO DO ESTADO
O adjetivo multicultural encobre essa crise ao confiná-la,
artificialmente, apenas no microcosmo universitário e ao
expressá-la num registro ostensivamente étnico,
quando o seu verdadeiro desafio não é o reconhecimento das
culturas marginalizadas pelos cânones acadêmicos, mas antes o
acesso aos instrumentos de (re)produção das classes médias
e superiores, como a universidade, num contexto de demissão ativa e
massiva do Estado.
O multiculturalismo americano não é nem um conceito
nem uma teoria, nem um movimento social ou político ainda que
pretenda ser tudo isso ao mesmo tempo. É um discurso-écran cujo
estatuto intelectual resulta de um gigantesco efeito de alodoxia
[6]
nacional e internacional que engana tanto aqueles que estão nele como os
que não estão. Além do que é um discurso
norte-americano, embora pense e se apresente como universal, ao exprimir as
contradições específicas da situação de
universitários que, afastados de qualquer acesso à esfera
pública e submetidos a uma forte diferenciação no seu meio
profissional, não têm outro terreno onde investir a sua libido
política fora das disputas de campus disfarçadas de
epopéias conceituais.
AS DELÍCIAS DO RECONHECIMENTO CULTURAL
O que significa que o multiculturalismo leva consigo, para onde
quer que seja exportado, três vícios do pensamento nacional
norte-americano que são, (a) o grupismo, que reifica as
divisões sociais, canonizadas pela burocracia estatal, em
princípios do conhecimento e da reivindicação
política; (b) o populismo, que toma o lugar da análise das
estruturas e dos mecanismos de dominação pela
celebração da cultura dos dominados e do seu ponto de
vista - elevado ao nível de prototeoria em ação; (c)
o moralismo, que é um obstáculo à aplicação
de um materialismo racional sadio na análise do mundo social e
econômico, condenando-nos a um debate sem efeito nem fim sobre o
necessário reconhecimento das identidades enquanto, na
triste realidade do quotidiano, o problema não se situa de forma alguma
nesse nível
[7]
. Enquanto os filósofos se deliciam doutamente com o
reconhecimento cultural, dezenas de milhares de crianças de
classes e etnias dominadas são excluídas das escolas
primárias por falta de vagas (eram 25.000 só este ano, na cidade
de Los Angeles), e um jovem em cada dez provenientes de famílias que
ganham menos de 15.000 dólares anuais tem acesso aos campi
universitários, contra 94% das crianças de famílias que
dispõem de mais de 100 000 dólares.
Poder-se-ia fazer a mesma demonstração a propósito da
noção fortemente polissêmica de
globalização, que tem como efeito, se não como
função, vestir de ecumenismo cultural ou de fatalismo economista
os efeitos do imperialismo norte-americano e de fazer aparecer uma
relação de força transnacional como uma necessidade
natural. No termo de um retorno simbólico baseado na
naturalização dos esquemas do pensamento neoliberal cuja
dominação se impõe há vinte anos graças ao
trabalho dos
think tanks
(bancos de idéias) conservadores e dos seus
aliados nos campos político e jornalístico
[8]
, a moldagem das relações sociais e das práticas culturais
conforme o padrão norte-americano, imposta às sociedades
avançadas através da pauperização do Estado,
mercantilização dos bens públicos e
generalização da insegurança salarial, é aceita com
resignação como resultado obrigatório das
evoluções nacionais, quando não é celebrada com um
entusiasmo de carneirinhos. A análise empírica da
evolução das economias avançadas de longa
duração sugere no entanto que a
globalização não é uma nova fase do
capitalismo, mas antes uma retórica invocada pelos governos
para justificar a sua submissão voluntária aos mercados
financeiros. A desindustrialização, o crescimento das
desigualdades e a contradição das políticas sociais, longe
de serem a conseqüência fatal do crescimento das trocas externas,
como habitualmente se diz, resultam de decisões de política
interna que refletem a mudança das relações de classe a
favor dos proprietários do capital
[9]
.
A REFORMATAÇÃO DO MUNDO
Ao imporem ao resto do mundo categorias de percepção
homólogas às suas estruturas sociais, os Estados Unidos
reformatam o mundo à sua imagem: a colonização mental
operada através da difusão desses verdadeiros-falsos conceitos
apenas pode conduzir a uma espécie de Consenso de Washington
generalizado, e até espontâneo, como se pode observar
correntemente em matéria de economia, de filantropia ou de ensino de.
Efetivamente, esse discurso duplo fundamentado na crença que imita a
ciência, sobrepondo ao fantasma social do dominante a aparência da
razão (especialmente econômica e politológica), é
dotado do poder de realizar realidades que pretende descrever segundo o
princípio da profecia auto-realizadora: presente nos espíritos
daqueles que tomam decisões políticas ou econômicas e de
seus públicos, ele serve de instrumento de construção de
políticas públicas e privadas, ao mesmo tempo que é
instrumento de avaliação dessas políticas. Como todas as
mitologias da idade da ciência, a nova vulgata planetária
apóia-se numa série de oposições e
equivalências, que se sustentam e contrapõem, para descrever as
transformações contemporâneas das sociedades
avançadas: desenvestimento econômico do Estado e ênfase nas
suas componentes policiais e penais, desregulação dos fluxos
financeiros e desorganização do mercado de trabalho,
redução das proteções sociais e
celebração moralizadora da responsabilidade
individual:
MERCADO
|
ESTADO
|
liberdade
|
coerção
|
aberto
|
fechado
|
flexível
|
rígido
|
dinâmico, móvel
|
imóvel, paralisado
|
futuro, novidade
|
passado, ultrapassado
|
crescimento
|
imobilismo, arcaísmo
|
indivíduo, individualismo
|
grupo, coletivismo
|
diversidade, autenticidade
|
uniformidade, artificialidade
|
democrático
|
autocrático ("totalitário")
|
O imperialismo da razão neoliberal encontra a sua
realização intelectual em duas novas figuras exemplares da
produção cultural. Primeiramente o especialista que prepara, na
sombra dos bastidores ministeriais ou patronais ou no segredo dos think tanks
(bancos de idéias), documentos de um forte cunho técnico, e tanto
quanto possível construídos em linguagem econômica e
matemática. De seguida, o conselheiro em comunicação do
príncipe, trânsfuga do mundo universitário agora ao
serviço dos dominantes, cujo serviço é dar forma
acadêmica aos projetos políticos da nova nobreza de Estado e da
empresa. O modelo planetário e incontestado é o do
sociólogo britânico Anthony Giddens, professor da Universidade de
Cambridge, agora à frente da London School of Economics e pai da
teoria da estruturação, síntese
escolástica de diversas tradições sociológicas e
filosóficas.
UM CAVALO DE TRÓIA DE DUAS CABEÇAS
Pode perceber-se a encarnação por excelência do estratagema
da razão imperialista no fato de que é a Grã-Bretanha,
posta por razões históricas, culturais e lingüísticas
em posição intermediária, neutra, entre os Estados Unidos
e a Europa continental, que fornece ao mundo esse cavalo de Tróia de
duas cabeças uma política e a outra intelectual na
pessoa dual de Anthony Blair e Anthony Giddens, teórico
autoproclamado da terceira via, que afirma, textualmente, que
adoto uma atitude positiva em relação à
globalização; tento [sic] reagir às novas
formas de desigualdades, advertindo logo, porém, que os
pobres de hoje não são semelhantes aos de ontem, (...) assim como
os ricos não se parecem mais com aqueles que no passado o foram;
aceito a idéia de que os sistemas de proteção social
existentes, e a estrutura do conjunto do Estado, são a fonte dos
problemas, e não apenas a solução para
resolvê-los; enfatizo o fato de que as políticas
econômicas e sociais se encontram relacionadas, para afirmar ainda
que as despesas sociais devem ser avaliadas ao nível das suas
conseqüências para a economia no seu conjunto, e, finalmente,
preocupo-me com os mecanismos de exclusão que descobre
na base da sociedade, mas também no topo [sic], convencido
de que redefinir a desigualdade em relação à
exclusão nesses dois níveis é conforme a uma
concepção dinâmica da desigualdade
[10]
.
Os mestres da economia podem dormir tranqüilos pois encontraram o seu
Pangloss.
Notas
[1] Referência a 1984, de George Orwell. Designa o uso de
termos que desconsideram o vocabulário corrente e produzem termos que
tornam hermética a compreensão do fenómeno relatado. Isso
se dá na esfera política e filosófica.
[2] Comunitarismo é um conceito teorizado por Charles Taylor, Michael
Walzer, Alasdair McIntyre. Valoriza a comunidade como um bem em si, assim como
a igualdade e a liberdade, sendo o espaço no qual os indivíduos
podem se exprimir, partilhar valores. Os seus críticos vêem nesse
conceito a teorização dos guetos.
[3] É bom deixar claro que não detêm o monopólio na
pretensão ao universal. Diversos outros países a
França, a Grã-Bretanha, a Alemanha, a Espanha, o Japão, a
Rússia exerceram, ou tentam ainda exercer, nos seus
círculos de influência, formas de imperialismo cultural bastante
semelhantes. A grande diferença é que, pela primeira vez na
história, um único país se encontra em
posição de impor o seu ponto de vista ao mundo inteiro.
[4] Cf. Ringer, Fritz. The Decline of the Mandarins. Cambridge University
Press, Cambridge, 1969.
[5] Bourdieu, Pierre. Les Conditions Sociales de la Circulation Internationale
des Idées. Romanistische Zeitschrift für Literaturgeschichte. 14
-1/2, Heidelberg, 1990, p. 1-10.
[6] Alodoxia: o fato de tomar uma coisa por outra.
[7] Assim como a globalização das trocas materiais e
simbólicas, a diversidade das culturas não data do século
actual, já que ela é co-extensiva à história da
humanidade, como haviam observado já Émile Dürkheim e Marcel
Mauss na sua Note sur la notion de civilisation (Année
sociologique, nº 12, 1913, p. 46-50, III vol., Éditions de Minuit,
Paris, 1968).
[8] Cf. Dixon, Keith. Les Évangelistes du marché. Raisons d'agir
Éditions, Paris, 1998.
[9] Em relação à globalização
como projecto norte-americano visando a impor o conceito de
valor-acionário da empresa, ler, de Neil Fligstein,
Rhétorique et realités de la mondialisation,
Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, nº 119, setembro de
1997, p. 36-47.
[10] Estes trechos foram retirados do catálogo de
definições escolares de suas teorias e opiniões
políticas que Anthony Giddens propôs ao programa FAQs
(Frequently Asked Questions), no seu site na Internet.
_________
[*]
Pierre Bourdieu, do
Collège de France
, é autor de
A Reprodução Elementos para uma Teoria do Sistema de
Ensino; Razões Práticas; Economia das Trocas Simbólicas
, entre outros. Löic Wacquant, da Universidade de Berkeley,
é autor de
As Prisões da Miséria; Punir os Pobres
, entre outros.
O original em português encontra-se na
Revista Possibilidades
, publicação do NPM - Núcleo de
Pesquisa Marxista. Ano 1, num. 1, Jul./Set de 2004. páginas 24-28.
Tradução de Teresa Van Acker; revisão de Rui Bebiano.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info
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