A solução islandesa
A crise económica global, que se desenvolve desde meados de 2008,
continua o seu curso inexorável. Nas últimas semanas
assistimos a uma situação sem precedentes, não só
pelo facto de os EUA estarem à beira do incumprimento, mas pela
combinação desta situação com uma escalada sem
precedentes da crise da dívida na zona euro. Jogando no limite das suas
possibilidades os líderes europeu e os dos EUA chegaram a acordos
preliminares que parece só terem conseguido exacerbar a crise. Uma nova
recessão global está sendo anunciada, enquanto a única
certeza é que os trabalhadores e os povos continuam a pagar as
consequências.
Paralelamente, na Islândia, uma sucessão de acontecimentos
políticos desde 2008, impulsionados por fortes
mobilizações sociais forçaram a renúncia em bloco
do governo e eleições antecipadas, a convocação de
dois referendos populares que levaram à votação
maciça pelo não pagamento da dívida, e pela ida a tribunal
e a prisão temporária de banqueiros e funcionários e a
possibilidade de vir a haver uma nova Constituição. No entanto,
apenas nas redes alternativas (entre elas Rebelión) e alguns sites (como
o CADTM) tem circulado esta informação que, na sua maioria tem
sido ignorada pela comunicação tradicional.
Localizada no norte da Europa boreal, a Islândia é uma pequena
ilha, rodeada por ilhas e ilhotas ainda menores. Em conjunto, atingem uma
área de aproximadamente 103 mil km2 e abrigam 320 mil pessoas. A sua
economia dispõe de importantes fontes de energia hidráulica e
geotérmica, mas depende muito da indústria de pesca, que
corresponde a 40 por cento das suas receitas e emprega sete por cento da
força de trabalho.
Na década de 80 o governo sob pressão da onda thatcherista
lançou a privatização da pesca: impôs quotas
para as capturas e fez milionários alguns pescadores. Em paralelo,
juntou-se à política da "oferta", típica da
"Reaganomics", baixando impostos e desregulamentando mercados, ao
mesmo tempo que começou a difundir a política de
privatizações. Como se algo estivesse faltando, Milton Friedman
visitou repetidamente Reykjavik, a capital.
Apesar deste avanço neoliberal, o país continuou a apresentar
indicadores significativos. O estado garantia sob um regime de bem-estar
cuidados de saúde universais e ensino superior gratuito aos seus
habitantes. A esperança de vida estava entre as mais altas do mundo e a
taxa de desemprego era insignificante, não chegando a dois por cento. O
governo investiu em energia verde e em novas tecnologias, e em 2007 foi o
primeiro no Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD (Programa das
Nações Unidas), bem à frente de países como os
Estados Unidos, França e Reino Unido. Em 2009 foi descrito pela
Organização das Nações Unidas como o terceiro
país mais desenvolvido do mundo, sendo colocado o seu PIB per capita
entre os dez melhores.
Primeira expressão da crise
No entanto, a partir de 2003, o ano em que se concretiza a
privatização de três dos principais bancos (Kaupthing,
Glitnir e, especialmente, Ice-save), o país entra plenamente nos fluxos
financeiros internacionais. Tanto a banca como os banqueiros começaram
uma corrida desenfreada para expandir as suas actividades dentro e fora do
país. Foi impulsionada uma política de endividamento e
começou a incubar-se uma crise que explodiu em 2008. Esta crise é
considerada a primeira expressão da crise global que hoje desestabiliza
os centros económicos e financeiros do mundo.
Tudo começou quando, após a privatização dos
bancos, o governo promoveu uma política de "casa
própria", que os bancos apoiaram com empréstimos
hipotecários de fácil acesso e cujas taxas estavam ligadas
à evolução dos preços, mas não aos
salários. Ao mesmo tempo, o consumo foi incentivado com
empréstimos de curto prazo. Quando em 2008 o défice comercial
forçou à desvalorização da moeda nacional em 50 por
cento, a inflação disparou e as taxas (hipotecárias ou de
créditos comuns) ficaram impagáveis.
Para financiar todo esse festival creditício os bancos foram adquirindo
fundos do mercado mundial, especialmente na Grã-Bretanha e Holanda. No
momento da explosão, a dívida da banca superava em mais de dez
vezes o PIB nacional. Resultado: mais de um terço da
população agora está sobre-endividada; 13 mil casas foram
confiscadas e dezenas de milhares de famílias entraram na pobreza.
Para o senso comum tudo isto só foi possível graças
à conspiração fraudulenta de banqueiros,
empresários e políticos. Para alguns analistas, isto processou-se
através de um grupo de não mais de trinta pessoas. No entanto,
mesmo que este grupo tenha sido o instrumento de uma determinada
política não pode esconder que o que aconteceu na Islândia
é parte da crise mundial, que como sempre nas grandes conjunturas
explode pelo lado financeiro, mas as suas raízes estão na
economia produtiva.
No entanto, a resistência da população deste pequeno
país rompeu com a política do "possível" e tem
feito progressos significativos. A sequência destes eventos é
bastante significativa:
Em 2009, protestos e manifestações de rua, incluindo
"panelaços", rejeitaram o plano de ajustamento do FMI,
provocaram a demissão do governo e obrigaram a convocar
eleições antecipadas. O novo governo tentou impor por lei uma
reestruturação da dívida, que totaliza 3.500
milhões de euros, o que significa que cada família iria pagar 100
euros por mês durante 15 anos.
Em 2010, a população, de novo nas ruas, recusou esta
lei; o
então presidente decide não ratificá-la e convoca um
referendo popular. Noventa e três por cento dos eleitores disse
"não ao pagamento da dívida ". Em paralelo desenrola-se
uma investigação sobre as responsabilidades na crise, que conclui
com vários banqueiros e funcionários processados e presos, embora
libertados de imediato, enquanto outros fugiram do país. Um dos
banqueiros está ainda sendo procurado pela Interpol.
Em 2011, um novo referendo ratificou o "não
pagamento", por
60 por cento dos votos.
Reforma constitucional
Em numerosas ocasiões, a sociedade islandesa propoz-se substituir
a Constituição em vigor desde 1944, uma cópia da
dinamarquesa, que apenas mudou "rei" para "presidente". A
actual crise financeira estimulou esta necessidade e abriu o debate
político, pelo que o Parlamento decidiu criar a Assembleia Constituinte,
para a qual foram eleitos por voto popular 25 representantes (10 mulheres e 15
homens), entre os 522 com mais de 18 anos que se apresentaram. No entanto,
antes de começarem as deliberações, a
eleição foi invalidada pelo Supremo Tribunal por vícios
processuais. A Assembleia foi, então, transformada em Conselho
Constitucional, composto pelas mesmas pessoas antes eleitas, que
começaram a realizar reuniões no início de Abril em
três grupos, e que deviam apresentar as suas propostas nos fins de Julho
passado (até ao momento não se dispõe de nenhuma
informação sobre se isto se concretizou).
As reuniões têm sido públicas todas as
quintas-feiras o Conselho reúne-se e discute, numa transmissão ao
vivo na web. Os islandeses podem consultar e propor semanalmente novos artigos
e alterações para inclusão na Constituição,
e dar opinião sobre os mesmos. Desempenham aqui um papel decisivo as
redes sociais (Facebook, Twitter e Flickr), enquanto que no Youtube são
publicadas regularmente entrevistas com cada um dos 25 membros do Conselho, no
que a cultura popular tem chamado de "Democracia 2.0 ".
O sistema de aprovação final não está claramente
determinado. Supõe-se que o grupo de redacção
levará ao Conselho o projecto consensual da nova
Constituição e se ele aprovar, passa finalmente ao Parlamento. No
entanto, esse processo ainda não está claro e esta
indefinição tem levado a surgirem vozes de alerta, prevendo que
"... os políticos vão querer revê-la antes do
referendo", pelo que clamam para que "... as pessoas possam votar o
que escreveram , antes que os políticos metam a mão, considerando
que daqui vai sair um novo sistema com o qual queremos, entre outras coisas,
erradicar a corrupção".
Para além do resultado final deste confronto, a Islândia mostra
que é possível pensar em soluções alternativas, que
não é necessário salvar os bancos como um passo para
quaisquer outras medidas. Que é possível romper com o
"possibilismo" que o cerco neoliberal impõe e fazer com que
não sejam os do costume a pagar os custos. Que há um outro
caminho que envolve decisões não só económicas, mas
fundamentalmente políticas e democrática. A Islândia
é uma excepção, uma singularidade, uma raridade,
não só por deixar falir os seus bancos, perseguir os seus
banqueiros e funcionários ou decidir emendar a
Constituição, mas pela forma democrática e participativa
com que essas realizações se tornam possíveis
[*]
Membro do grupo EDI (Economistas de Izquierda)
O original encontra-se em
www.diarioreddigital.cl/...
. Tradução de Guilherme Coelho.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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