O ruir do "campo socialista"
Implosão ou terceira guerra mundial?
1. "Implosão": um mito apologético do imperialismo
Reflictamos no modo como o imperialismo americano conseguiu engolir a
Nicarágua. Submeteu-a ao bloqueio económico e militar, ao
controlo e à conspiração por parte dos seus
serviços secretos, à colocação de minas nos portos,
a uma guerra não declarada, mas sangrenta, suja e contrária ao
direito internacional. Perante tudo isto, o governo sandinista viu-se obrigado
a tomar medidas limitadas de defesa contra a agressão externa e a
reacção interna. E logo a administração EUA se arma
em defensora dos direitos democráticos espezinhados pelo
"totalitarismo" e desencadeia a sua potência de fogo
multi-mediático contra o governo sandinista, no âmbito de uma
campanha que, se viu em primeiro plano a hierarquia católica, não
deixou de arrastar algumas boas almas da "esquerda". A liberdade de
manobra de Ortega perante a agressão foi sendo progressivamente reduzida
e anulada. Enquanto o estrangulamento económico e a cruzada
ideológica corroíam a base social de consenso do governo
sandinista, as pressões militares e o terrorismo (alimentado por
Washington) dos contras enfraqueciam a vontade e a capacidade de
resistência. O resultado: eleições em que o imperialismo
pôde fazer valer até ao fundo o seu super-poder financeiro e
multi-mediático; já dessangrado e exausto, mais que nunca de faca
apontada à garganta, o povo nicaraguense decidiu "livremente"
ceder aos seus agressores. Não é diferente a táctica posta
em acção contra Cuba. Bem, convém agora levantar uma
questão: o ruir (pelo menos momentâneo) do regime sandinista
é o resultado de uma "implosão"? Pode ser assimilado a
"implosão" ou "colapso" o derrube, que desde
há decénios o imperialismo americano persegue, de Fidel Castro e
do socialismo cubano?
Neste caso, é imediatamente evidente o carácter mistificador de
categorias que pretendem configurar como um processo meramente espontâneo
e totalmente interno uma derrocada ou uma crise que não podem ser
desligados da formidável pressão exercida a todos os
níveis pelo imperialismo. Contudo, a categoria de
"implosão" já não resulta persuasiva se, em vez
da Nicarágua e Cuba, for aplicada à parábola do
"campo socialista" no seu conjunto. Já em 1947, no momento em
que formula a política da "contenção", o seu
teórico, George F. Kennan explicita que é preciso influenciar
"os desenvolvimentos internos da Rússia e do movimento comunista
internacional", e não só por meio da "actividade de
informação" dos serviços secretos, que no entanto -
sublinha o autorizado conselheiro da embaixada americana em Moscovo e da
administração EUA - não deve ser descurada. Em termos mais
gerais e mais ambiciosos, trata-se de "aumentar enormemente as
tensões
(strains)
sob as quais terá de actuar a política soviética",
de modo a "promover tendências que deverão no fim encontrar a
sua saída ou na ruptura ou no amolecimento do poder
soviético". A que normalmente, com um singular eufemismo, é
chamada "implosão" aqui é definida com precisão
uma "ruptura"
(break-up)
que é tão pouco espontânea que pode ser prevista,
programada e activamente promovida com mais de quarenta anos de avanço.
No plano internacional, as relações de força
económicas, políticas e militares são tais
prossegue ainda Kennan que o Ocidente pode exercer algo parecido com um
"poder de vida e de morte sobre o movimento comunista" e sobre a
União Soviética.
[3]
2. Nas origens da guerra-fria
O ruir do "campo socialista" portanto terá de ser colocado
dentro de uma impiedosa prova de força. É a chamada guerra-fria.
Esta investe todo o planeta e prolonga-se por decénios. Nos
inícios dos anos 50, as suas modalidades são assim explicitadas
pelo general americano James Doolittle: "Não há regras nesse
jogo. Já não são válidas as normas de comportamento
humano aceitáveis até agora... Devemos... aprender a subverter,
sabotar e destruir os nossos inimigos com métodos mais inteligentes,
mais sofisticados e mais eficazes do que os por eles usados contra
nós".
[4]
A estas mesmas conclusões chega Eisenhower, o qual não foi por
acaso que passou do cargo de supremo comandante militar na Europa para o de
presidente dos EUA. Estamos em presença de uma prova de força que
não só é conduzida, de um lado e do outro, sem
exclusão de golpes (espionagem, conspiração, golpes de
Estado, etc), mas que em diversas ocasiões se transforma, em
várias áreas do globo, numa verdadeira guerra. É o que
acontece por exemplo, na Coreia. Em Janeiro de 1952, para desbloquear a
situação de empate nas operações militares, Truman
acaricia uma ideia radical que chega a transcrever numa nota do seu
diário: poder-se-ia fazer um ultimato à URSS e à China
Popular, esclarecendo antes que a falta de obediência "significa que
Moscovo, São Petersburgo, Mukden, Vladivostok, Pequim, Xangai, Port
Arthur, Dairen, Odessa, Estalinegrado e todas as instalações
militares ou industriais na China e na União Soviética seriam
eliminadas"
(eliminated).
[5]
Não se trata apenas de uma reflexão privada: durante a guerra da
Coreia, em várias ocasiões a arma atómica foi brandida
contra a República Popular da China; e a ameaça resulta tanto
mais crível devido à lembrança, ainda viva e
terrível, de Hiroshima e Nagasaki.
Não há dúvida de que com a dissolução, ou
melhor, com o
break-up,
da URSS em 1991 se concluiu a guerra-fria. Mas quando começou?
Já está claramente em curso enquanto ainda se mantém aceso
o segundo conflito mundial. Hiroshima e Nagasaki são destruídas
quando é já claro que o Japão está disposto a
render-se; mais do que um país já derrotado, o recurso à
bomba atómica tem em mira a URSS: é esta a conclusão a que
chegam autorizados historiadores americanos, na base de uma
documentação indesmentível. A nova arma terrível
não pode ser experimentada com efeitos demonstrativos numa zona deserta,
mas tem de ser já lançada sobre duas cidades, de modo que os
soviéticos compreendam imediatamente e até ao fundo a realidade
das relações de força e a determinação
estado-unidense de não recuar perante nada. E com efeito, Churchill
já se declara pronto, em caso de necessidade, a "eliminar todos os
centros industriais russos", enquanto o secretário de Estado dos
EUA Stimson acalenta por algum tempo a ideia de "obrigar a União
Soviética a abandonar ou a modificar radicalmente todo o seu sistema de
governo".
Verifica-se assim um paradoxo. A opor-se ou a mostrar-se relutantes ao projecto
de bombardeamento são os chefes militares, sobretudo da marinha.
"Bárbara" foi considerada a nova arma: ela atinge
indiscriminadamente "mulheres e crianças", não é
melhor que as "armas bacteriológicas" e que os "gases
venenosos" proibidos pela Convenção de Genebra. Ainda por
cima, o Japão está "já derrotado e pronto a
render-se". Estes chefes militares ignoram que a arma atómica na
realidade tem em mira a União Soviética, o único
país agora em condições de contrariar o programa,
explicitamente enunciado por Truman numa reunião de gabinete de 7 de
Setembro de 1945, de fazer dos EUA o "gendarme e xerife do mundo". A
notícia da horrível destruição de Hiroshima e
Nagasaki provoca inquietação e inclusivamente
indignação na opinião pública americana, e eis que
em 1947 Stimson intervém totalitariamente com um artigo sensacionalista
por todos os meios de informação para difundir a lenda e a
mentira segundo a qual aquelas duas matanças indiscriminadas tinham sido
necessárias para salvar milhões de vidas humanas. Na realidade
sublinha ainda o historiador americano aqui citado era preciso
bloquear de todas as maneiras a onda de críticas com o fim de habituar a
opinião pública à ideia da absoluta normalidade do recurso
à arma atómica (e de novo era avisada a URSS).
[6]
No Japão verifica-se outro facto decisivo para compreender a
guerra-fria. Na sua agressão contra a China o exército imperial
tinha-se manchado de crimes horríveis, utilizando não poucos
prisioneiros como cobaias para a vivissecção e outras atrozes
experiências e empregando contra a população civil armas
bacteriológicas. Aos responsáveis e aos membros da famigerada
unidade 731, a estes criminosos de guerra, os EUA garantem a impunidade em
troca da entrega de todos os dados recolhidos. No âmbito da guerra-fria
que agora se delineia, juntamente com as armas atómicas apontam-se
também as bacteriológicas.
Vemos assim os inícios da guerra-fria entrelaçarem-se com a fase
final da segunda guerra mundial. Na realidade, para ver como se
entrelaçam não é preciso esperar por 1945. É
esclarecedora a declaração feita por Truman logo a seguir
à agressão nazi da URSS. Neste momento os Estados Unidos
formalmente ainda não entraram em guerra, mas já estão de
facto alinhados ao lado da Grã-Bretanha. Compreende-se portanto que o
futuro presidente dos EUA se preocupe em explicitar que não quer
"em caso algum ver Hitler vencedor". Contudo, por outro lado
não hesita em declarar: "Se virmos vencer a Alemanha, devemos
ajudar a Rússia, e se virmos vencer a Rússia devemos ajudar a
Alemanha. Deixemos assim que se matem o mais possível". Isto
é, apesar da aliança de facto do seu país com a
Grã--Bretanha e portanto, indirectamente, com a URSS, Truman exprime
todo o seu interesse ou entusiasmo pelo dessangramento do país nascido
da revolução de Outubro. Nesse mesmo período de tempo,
exprime conceitos semelhantes aos de Truman o ministro britânico Lorde
Brabazon: é verdade que será obrigado a demitir-se, mas conta o
facto de importantes círculos da Grã-Bretanha continuarem a
encarar como um inimigo mortal a União Soviética com a qual
contudo são formalmente aliados.
[7]
Tornando-se vice-presidente em 1944 e presidente no ano seguinte, Truman
empenha-se em realizar o programa enunciado no verão de 1941. Deve-se
acrescentar que o objectivo do enfraquecimento (ou do dessangramento) da URSS
também não parece ter sido estranho a Franklin Delano Roosevelt
(o qual, não por acaso, durante um ano teve como seu vice Truman).
Quando se torna claro que seria a União Soviética e já
não a Grã-Bretanha a emergir no fim da guerra "como o
principal opositor a uma "pax americana" global", Roosevelt
observa um historiador alemão alterou de modo radical a
sua estratégia militar: "A consequência de deixar que a
União Soviética fizesse o esforço maior para a
vitória sobre a Alemanha teve expressão na decisão de
predispor no seu conjunto só 89 divisões em vez das 215 previstas
pelo Victory Programm deslocando o baricentro do armamento americano para a
marinha e a aviação com a finalidade de construir uma
potência naval e aérea superior".
[8]
Talvez se tenha de começar ainda mais atrás, e é
significativo que André Fontaine, na sua História da guerra-fria,
tenha partido da revolução de Outubro, que na realidade foi
combatida com uma guerra-fria e quente. Se examinarmos o período que vai
de Outubro de 1917 a 1953 (ano da morte de Estaline), vemos a Alemanha e as
potências anglo-saxónicas alternar-se ou empenhar-se numa
espécie de estafeta. À agressão da Alemanha de Guilherme
II (até à paz de Brest-Litovsk) seguem-se as desencadeadas
primeiro pela Entente e depois pela Alemanha hitleriana, e por fim a verdadeira
"guerra-fria" que já tinha porém começado a
manifestar-se decénios antes, entrelaçando-se mesmo com os dois
conflitos mundiais.
3. Uma mistura fatal: o novo rosto da guerra
Em relação à URSS e ao "campo socialista" foi
posta em movimento a mesma mistura de pressões económicas,
ideológicas e militares com que a administração EUA
conseguiu provocar a queda do governo sandinista e espera provocar a
"ruptura" do sistema político-social cubano.
Este modo novo e mais articulado e sofisticado de fazer a guerra foi sendo
pouco a pouco elaborado precisamente no decorrer da longa prova de força
empreendida contra a sociedade nascida da revolução de Outubro.
Enviar soldados contra a Rússia soviética sublinha Herbert
Hoover, elevado expoente da administração americana e futuro
presidente dos Estados Unidos - significa expô-los "à
infecção de ideias bolcheviques". É melhor
avançar com o bloqueio económico em relação ao
inimigo e com a ameaça do bloqueio económico em
relação aos povos inclinados a deixar-se seduzir por Moscovo: o
perigo da morte por inanição fá-los-á recuperar o
bom senso. O primeiro-ministro francês, Georges Clemenceau, é de
imediato fascinado pela proposta de Hoover: reconhece que se trata de "uma
arma realmente eficaz" e que apresenta "maiores possibilidades de
sucesso que a intervenção militar". Indignado fica Gramsci
com a chantagem formulada pelos imperialistas: "Ou a bolsa ou a vida! Ou a
ordem burguesa ou a fome"!
[9]
Outra arma tem sido preparada a partir sobretudo da guerra fria propriamente
dita. Já em Novembro de 1945, o embaixador americano em Moscovo, William
A. Harriman, recomenda a abertura de uma frente ideológica e
propagandística contra a URSS: pode-se recorrer à difusão
de jornais e revistas, claro, mas "a palavra impressa" é
"fundamentalmente insatisfatória"; melhor é o recurso a
potentes estações de rádio capazes de transmitir em todas
as diversas línguas da União Soviética. Destas
estações de rádio é repetidamente recomendada e
celebrada a potência
[10]
. Há uma nova arma à disposição no gigantesco
choque que se vai iniciando. A rádio que servira ao regime nazi para
consolidar a sua base social de consenso é agora chamada a desagregar a
base social de consenso do regime soviético.
Juntamente com estas novas armas continuam a actuar de modo mediato ou imediato
as armas verdadeiras. O período que vai de 1945-46 a 1991 tem sido
autorizadamente definido como "uma terceira guerra mundial, embora de
carácter assaz particular"
[11]
. Com efeito, é impróprio definir "fria" uma guerra que
começou com Hiroshima e Nagasaki. Trata-se de uma guerra que não
só se torna periodicamente quente nas mais diversas áreas do
globo, mas que em certos momentos se arrisca a ser tão quente que
derrete ou quase o planeta. Até no que respeita ao confronto directo
entre os dois principais antagonistas, se a frente mais imediatamente evidente
é a da batalha político--diplomática, económica e
propagandística, nem por isso se deve perder de vista o terrível
braço de ferro militar que, mesmo sem chegar até ao choque
directo e total, decerto não é falto de consequências.
Trata-se de uma prova de força que actua em profundidade sobre a
economia e a política do país inimigo, sobre o conjunto da sua
configuração, é uma prova de força que tem em mira
e até consegue, como teremos ocasião de ver, corroer as
alianças, o "campo" do inimigo.
Com as coisas neste ponto, a categoria de "implosão" revela-se
como um mito apologético do capitalismo e do imperialismo: é
celebrada a sua indiscutível superioridade em relação a um
sistema social que, tanto em Moscovo como nas Caraíbas e na
América Latina, se desmorona ou cai em crise exclusivamente devido
à sua interna insustentabilidade, pela sua intrínseca
inferioridade. A categoria de implosão ou colapso não faz
senão coroar os vencedores. É verdade, ela encontrou largo
acolhimento também à esquerda, entre os comunistas, também
e sobretudo entre os que se comportam como ultracomunistas e
ultra-revolucionários; mas isto é só a prova da sua
subalternidade ideológica e política.
Denunciar a categoria de "implosão" não significa
renunciar a um balanço impiedoso da história do "socialismo
real" e do movimento comunista internacional. Pelo contrário,
só se torna possível um balanço a partir da tomada de
consciência da realidade da "terceira guerra mundial". Por
outro lado, para que este balanço impiedoso não seja de nenhum
modo confundido com a capitulação, é necessário
conduzir até ao fundo a crítica do comportamento sob o signo da
subalternidade e do primitivismo religioso que no movimento comunista ganhou
pé a partir da derrota.
Notas:
3- Hofstadter e Hofstadter, 1982, vol. III, ppg. 418-9
4- Ambrose, 1991, p. 377
5- Sherry, 1995, p. 182
6- Alperovitz, 1995, pp. 326-330, 260-1 e 460; quanto ao programa de Truman,
cf. Thomas, 1988, p. 187.
7- Thomas, 1988, p. 187
8- Hillgruber, 1991, pp. 350 e 352 nota
9- Cf. Losurdo, 1997, pp. 75-80
10- Thomas, 1988, p. 223
11- Hobsbawm, 1995, p. 268
Textos de Domenico Losurdo em resistir.info:
As raízes norte-americanas do nazismo
Negacionismo e liberdade de investigação
A suposta "não violência" do Dalai Lama é desmentida pela CIA
Acerca do liberalismo
Boicotar os Jogos Olímpicos de Pequim?
Quem recorre a escudos humanos: o Hamas ou Israel?
Os "Protocolos dos Sábios do Islão
O que significa hoje internacionalismo?
[*]
Capítulo 2 do seu livro
"Fuga da História? A
revolução russa e a revolução chinesa hoje",
trad. José Colaço Barreiros, ed. Cooperativa Cultural
Alentejana CRL, Beja, 176 pg., Agosto 2009, ISBN 978-972-99973-2-7.
A obra pode ser encomendada a
catarinaalmeida3@gmail.com
(14 + portes).
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
.
|