Carta aos guantanamos

por Pedro Miguel

. Se estás na qualidade de detido em algum dos guantanamos espalhados pelo mundo, careces de contacto com o exterior. A visualidade do planeta acaba por reduzir-se às caras dos teus captores e às costas alaranjadas dos teus companheiros presos, aos barrotes da tua jaula, a tuas próprias mãos, quase sempre algemadas, e à imisericordiosa luz do Sol. Os sons reduzem-se às ordens que o teu guarda pronuncia num idioma quase sempre estranho, àqueles que tu mesmo emitas, de preferência em volume muito baixo, e ao zumbir de algum aparelho de segurança. E o mistério: O que comeste em Guantánamo? O que apalpaste e cheiraste ao longo destes anos?

Se tiveste a desgraça de cair nesse enclave no qual estás sem ser e és sem estar, seguramente já perdeste a noção do tempo. Para a frente não há prazos nem expectativas de nada, e para trás só tens um divisor de águas drástico entre tua vida anterior e esta morte lenta e rala sem mais clímaxes do que os interrogatórios. Aqui até os procedimentos de tortura foram concebidos para fazer parte de uma quotidianidade sem conteúdos. Mais do que acontecimentos isoláveis e definíveis (um ponta-pé, uma descarga eléctrica) são medidas contínuas de dor suportável e de incomodidade controlada: muitas horas na mesma posição corporal, muitas horas sem luz, muitas horas sem sombra, muitas horas com calor, muitas horas sem água.

Tiraram-te as referências das datas e dos acontecimentos. Não há prazo para que saias, nem anos ou meses ou semanas de condenação. Não há dia para o julgamento porque não há julgamento; não há encontro com o advogado porque não há advogado; não há momento de visita porque as visitas estão proibidas.

Privaram-te das tuas certezas de culpabilidade ou de inocência porque estas definem-se frente a uma acusação específica, e tu não estás acusado de nada em particular. Não há acusações concretas e isso te deixa sem margem para o arrependimento. Não há inimigo claro diante do qual sustentar tuas convicções. Estás aqui não porque hajas cometido uma acção terrorista, não porque hajas gritado uma palavra-de-ordem numa manifestação remota, não porque alguém se haja equivocado de sujeito, não porque um informante anónimo te detestasse. Estás aqui porque uma vontade desconhecida, abstracta, persistente, quer que estejas aqui porque assim convém aos seus interesses. E ponto.

Careces, certamente, de qualquer referência a normas, leis, constituições e garantias. Aos teus carcereiros é-lhes permitido tudo porque nenhuma lei os proíbe de nada. Aqui não imperam cartas magnas, nem códigos penais, nem convenções de Viena, nem Declaração Universal dos Direitos do Homem. Se apetecer a alguém, pode dar-te um beliscão, amputar-te uma extremidade ou arrancar-te a pele. Podem fazer que engulas um canivete suíço com 50 acessórios. Podem proibir-te que defeques durante um mês inteiro. Podem optar por cozer-te com fio cirúrgico as mãos às orelhas e os cotovelos aos quadris. Tu, em contrapartida, não tens nenhuma atribuição, nenhum direito específico. Não tens direito a nada de nada: nem a ter identidade, nome ou tempo, nem a viver nem a morrer, nem a rezar, a chorar, a fazer uma pirueta, a dormir ou a estar acordado.

Ao resto dos humanos também foi amputada uma parte essencial dos nossos direitos. Não podemos saber teu nome, teu número ou tua localização no planeta. Não temos poder algum para saber o que comes ou do que estás doente, quantos sois: quinhentos, quatro mil ou cinquenta mil guantanamos alaranjados e com o cabelo cortado à máquina zero, acocorados na jaula eterna, à espera de nada. Não podemos saber nem sequer se existes ou não existes, e naturalmente não podemos escrever-te uma carta, e menos ainda saudar-te ou dar-te um abraço. Foi-nos expropriada, também, a noção precisa dos nossos direitos e das nossas proibições: agora mesmo, quando escrevo estas linhas, ignoro se são motivo suficiente para que alguém, num escritório secretíssimo, me considere candidato à jaula que se encontra ao lado da tua.

Por hoje não és ninguém e não és quase nada: é uma parte incerta, uma excrecência insignificante da maquinaria que se chama "conservadorismo compassivo", ou brinquedo nas mãos de um necrófilo sem cérebro que se colocou, para desgraça de todos, no cargo mais poderoso do planeta.

Procura sobreviver ao nada no qual te afundaram. É a condição para que um dia, quando este pesadelo houver passado, recuperes tua condição humana, contes a tua história e faças estalar a verdade contra os teus verdugos. Fico à espera de notícias tuas.

07/Março/2006

O original encontra-se em http://www.jornada.unam.mx/2006/03/07/041a1mun.php

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10/Mar/06