México:
A actual conjuntura política e tendências subjacentes
por José Valenzuela Feijóo
[*]
I
No último quadrimestre do ano passado (2005), a popularidade de
López Obrador
(AMLO)
era impressionante. Superava por isso, por ampla
margem, os demais candidatos presidenciais.
Que factores explicavam essa superioridade? Podemos mencionar: a) capitaliza
o descontentamento que gera o funcionamento do esquema neoliberal (crescimento
zero, salários baixos, ocupação escassa,
desperdício e parasitismo, economia em decomposição).
Para isso, sua atitude pessoal (homem simples, honrado, progressista) e seus
programas no Distrito Federal em favor de pobres e idosos despertaram fortes e
extensas simpatias no povo simples; b) ao mesmo tempo beneficiou-se de uma
ampla cobertura mediática: suas conferências colocavam-no no
centro dos noticiários que iniciavam o dia e a grosseira campanha em
favor do desaforo [das suas imunidades] também o promovia nos media; c)
o persistente entorpecimento de Fox, o descontrolado arrivismo da sua esposa,
os roubos e escândalos da família mais próxima, etc
também provocavam um repúdio forte (inclusive, em parte, da
direita) contra a figura do primeiro mandatário e do seu círculo
mais imediato.
Para AMLO um momento importante foi a recusa ao desaforo. Para isso, para
além das considerações legais (neste caso inteiramente
secundárias), contou com o forte apoio popular que já havia
acumulado. Mas, ao mesmo tempo, sua posição fica assinalada por
um odor de boa moral que importa destacar. Em quase toda a opinião
pública surge a convicção de que se pretendia
deixá-lo fora da campanha presidenciais por artes manhosas e
trapaceiras. Ou seja, se através de votos não te posso vencer,
expulso-te da competição recorrendo ao atropelo trapaceiro.
Neste contexto, as camadas médias e até parte da classe alta
sentiram-se incómodas e incapazes de lutar em favor do desaforo: este
não conseguiu legitimar-se. Mas o factor chave sem dúvida foi a
impressionante mobilização popular que teve lugar nas
vésperas da decisão final. Esta foi tão ampla e
sólida que provocou pavor nas alturas do Poder: aprovar o desaforo
poderia despertar a "besta adormecida" terminar por sepultar o regime
existente. Esta foi uma grande lição:
políticos e partidos progressistas só podem avançar
enquanto se apoiarem na mobilização popular, no susto que esta
provoca na direita.
Não nos acordos palacianos com o inimigo de classe.
[1]
Por volta de Fevereiro-Março de 2006 AMLO continuava muito acima nas
preferências. E até um certo desânimo infiltra-se nas
fileiras da classe dominante, a qual começa a ensaiar o táctica
do "cerco amistoso". Ou seja, aceito-te como governante mas deves
negociar teu programa de acordo com nossos interesses.
Neste momento surge uma mudança (inicialmente não percebida) na
campanha eleitoral de AMLO. É assumida a táctica de não
se mover, de evitar pronunciamentos radicais, de aproximar-se e tranquilizar a
direita. Ou seja, a classe dominante: banqueiros, grandes industriais e meios
monopólicos, capital estrangeiro. Como quem diz, surge o empenho em
obter um certificado de boa conduta por parte dos de cima. O que implica uma
das duas: os de cima esquecem seus interesses classistas objectivos ou o
candidato esquece-se dos interesses classistas objectivos dos de baixo. Algo
assim como suprimir, com candura, o conflito de classes.
Pois bem, enquanto AMLO e sua equipe optavam pelo caminho do "menino bem
educado", a direita respondia-lhe com uma campanha propagandística
de uma violência extrema.
[2]
O desdobramento mediático foi impressionante: mobilizam-se
rádios e televisão, chegando a duas mensagens por minuto em cada
estação. Desenha-se um quadro de terror e não se vacila
em utilizar as mentiras mais soezes. Convém sublinhar: não
há aqui apenas a expressão do que é uma ideologia
conservadora que recusa o progressismo de AMLO. A questão vai mais
além pois não se vacila em sustentar que dois mais dois é
igual a cinco. Trata-se em suma de uma direita que escapa ao conservadorismo
tradicional, que incorpora no seu acervo o cinismo mais descarado, a
violência e a mais completa falta de escrúpulos. O que
também nos indica que o PAN passou a ser controlado por um grupo no qual
se combina um catolicismo primitivo, ultramontano, de corte franquista
(Calderón e o PAN estão muito ligados a Aznar), com estilos
mafiosos de corte siciliano. É a característica do grupo
conhecido como "Yunque" (ao qual pertence o actual presidente do PAN,
um ser primitivo como poucos e que poderia ser uma mistura
"terceiro-mundista" e
cristera
[NT 1]
do Ku-klux-kan e do franquismo clerical).
[3]
Neste contexto do último período também foram surgindo
diversos conflitos definitórios que convém recordar.
Primeiro, aquele que foi dirimido nas alturas do poder. Trata-se de uma lei
geral que regula os meios de comunicação e o espaço
electrónico. É a chamada "Lei Televisa", pois
consolida e acentua para longo tempo, em termos até grosseiros, o
controle monopólico dos media. Em si mesma, a lei é escandalosa.
Mas tornou-se ainda mais escandaloso o apoio unânime que conseguiu do
PRD (o partido de AMLO) na Câmara dos Deputados e que permitiu sua
promulgação final. A razão deste apoio foi muito
grosseira: tentar que o monopólio televisivo não fizesse
campanha contra AMLO e que, perante este gesto de amizade, retrucasse o
carinho. A candura, ou antes a estultícia do gesto, foi descomunal e
já se começam a observar os seus frutos: se AMLO sai da linha
caem-lhe em cima todas as hienas da selva televisiva e radial.
[4]
Por outras palavras, nem sequer se cumpre isso do "pão para hoje
e fome para amanhã". O pão nem sequer hoje te dão.
A menos que te alinhes claramente nas fileiras da direita. Por exemplo:
apoiando o investimento estrangeiro, o tratado de livre comércio, a
autonomia do banco central, a desregulamentação económica,
etc. Ou seja, concedo-te algum espaço e não te ataco, mas desde
que passes a defender o credo neoliberal. E de passagem advirto-te: se
não fizeres assim cairá teu "rating" nos
inquéritos.
Segundo: na fábrica Sicartsa localizada em Michoacán
desenvolve-se uma greve que não é curta e que, entre outras
medidas, reclama respeito à autonomia sindical e que o governo
não imponha líderes que além de corruptos são
simples e lamentáveis marionetas do poder. Esclareçamos: o
líder assediado pela patronal e pelo governo não é
precisamente um monge franciscano e matérias de dinheiro, mas
além de roubar é capaz de sacar aos empresários
determinados benefícios em favor dos trabalhadores. O que, no actual
contexto neoliberal, já não parece adequado. Frente à
greve, o poder (estatal e federal) envia tropas para desalojar violentamente os
trabalhadores e restabelecer "a ordem e o estado de direito". As
imagens que se viram recordam as do Iraque ocupado e/ou as de uma guerra civil.
Os operários, comprovando sua capacidade organizativa e valor, resistem
e acabam por impedir a entrada das tropas. Trata-se, talvez, do êxito
mais importante em matéria de lutas classistas dos
últimos anos. Como reagem AMLO e sua equipa perante esta batalha?
Apelam ao diálogo, calam-se frente à violência estatal e
praticamente fogem dos operários em greve. Não devem
"contaminar-se" com a luta classista e não devem ser
confundidos com esses "revoltosos". Por outras palavras, apoiamos os
pobres assim, enquanto pobres simples mas quanto à classe
operária organizada e em pé de luta, a conversa já
é outra. Ou seja, "somo outros" e "não nos
confundam com aqueles".
Terceiro: nos últimos dias ocorre outro arrebentamento, agora em
Texcoco. Aqui, os protagonistas são pequenos comerciantes e camponeses.
O sítio em que vendiam foi concedido a uma grande cadeia comercial e
devem transferir-se para outro lugar. Recusam a medida em entrincheiram-se no
lugar. Resposta: chegam forças estatais e federais para restabelecer a
ordem. Num primeiro momento são repelidas. Mas no dia seguinte, em
número de três mil, limpam o lugar. Há morte, feridos e
dezenas de detidos. E novamente observamos cenas próprias de uma guerra
civil, ainda que de um lado haja paus e pedras mais alguns facões e do
outro um grande poder de fogo e soldados profissionais. Aqui, os que se
rebelam não são parte do proletariado industrial: são,
basicamente, pequena burguesia rural, semi-camponeses. Mas a violência
estatal é semelhante. Qual foi a reacção de AMLO e
companhia? Passar a demarcar-se deste movimento, assinalando que eles
são partidários da "via pacífica".
Convém também observar: no caso de Michoacán associam-se
o Poder federal (nacional) com o poder estatal (i.e. provincial), aqui dirigido
por um conspícuo membro do PRD: L. Cárdenas. No estado do
México, onde se localiza Texcoco, dá-se uma
associação semelhante, ainda que aqui a autoridade regional
máxima pertença ao PRI. A lição é clara: o
Estado é o Estado, qualquer que seja a modalidade que assuma e qualquer
que seja a pessoa que se encarregue da sua administração. Para
muitos isto fora esquecido, mas a realidade tornou a confirmar: o Estado, na
sua mais pura essencialidade, é um aparelho de repressão, uma
"organização especial da violência" encarregada
de preservar a ordem económica e social vigente. Ou seja, uma
instituição ao serviço da classe dominante.
Concluamos esta parte. Qual o balanço deste período?
Ao começar o mês de Maio os inquéritos indicam uma queda
abrupta nas preferências por AMLO e uma análoga subida em favor de
Calderón. Na maioria, seria Calderón o dianteiro. Naturalmente,
a quantidade de empresas de inquérito que vendem "resultados"
é impressionante: neste campo, a corrupção costuma ser
descomunal. Contudo, o que parece certo é que no princípio de
Maio o que fora grande vantagem de AMLO diluiu-se e hoje as diferenças
são mínimas. Pode ser que AMLO ainda esteja em primeiro lugar,
mas isto não é um juízo muito seguro. Aquilo que, sim,
é seguro é que verificou-se uma descida significativa nas
preferências eleitorais a seu favor.
[5]
II
Do exposto emergem diversos e importantes problemas. Um deles é o do
papel que podem desempenhar os meios de comunicação em massa na
conformação das preferências políticas da
população. E, mais em geral, na cultura e ideologia que manejam
os diversos grupos sociais.
Partimos de uma constatação: no México, os
"mass-media" configuram uma estrutura altamente monopolizada e
estão controlados pela classe dominante na sua fracção
mais direitista. Ou seja, no sentido mais estrito da palavra, funcionam como
instrumentos ideológicos ao serviço da classe dominante. Isto,
num duplo sentido: um, como instrumento que difunde a ideologia conservadora e
que, com os ajustes do caso, fá-la penetrar maciçamente nos meios
populares. Diríamos que esta é a sua função
genérica e de mais longo prazo. Para o que utiliza as telenovelas e
inclusive os programas de espectáculos: música, futebol, etc.
Dois: sua missão de prazo mais curto e que implica uma
intervenção praticamente directa nas contendas eleitorais. Os
noticiários e programas de entrevistas concentram esta
função.
A eficácia dos media, especialmente da televisão, é
enorme. Na Idade Média, a igreja e seus curas exerciam um
domínio quase irrestrito sobre a população: com missas,
sermões, confissões e ameaças de fogo eterno moldavam
consciências e regulavam condutas em favor do sistema. Hoje, é a
televisão que cumpre esse papel e fá-lo com uma eficácia
ainda maior. Ao ponto que se costuma dizer que é capaz de transformar o
negro em branco.
[6]
Se nos colocarmos no contexto dos de baixo, e nos fixamos no espaço da
consciência, poderemos observar um conflito entre duas forças.
Uma, aquela que provem da própria realidade que experimentam os
trabalhadores, a que os empurra para a reivindicação e a
rebelião contra o sistema. Por outro, está a força dos
media e a propaganda, a que busca apoderar-se da consciência popular,
nela introduzir modos congruentes com os interesses da classe dominante e,
dessa forma, uma visão distorcida que dê lugar a condutas de
integração e/ou de aceitação do sistema. Qual o
factor que domina? Não há uma resposta única e o que se
pode sustentar com bastante segurança é: a) na ausência
de uma organização política independente e em tempos de
grande passividade social, o que domina é o factor propaganda. Em suma,
funciona a "falsa consciência de classe"; b) em
períodos de grande mobilização social e de
agudização dos conflitos, tende a predominar o factor realidade
objectiva. Obviamente, aqui também costuma operar uma
organização política mais ou menos desenvolvida.
A ideia mais importante a sublinhar é:
o povo pode sacudir o peso da ideologia dominante (exemplo: do impacto
alienante dos meios televisivos) só num contexto de amplas lutas e
mobilizações.
Em contrapartida, em períodos de "paz social", o que impera
(quase por definição) é a ideologia dominante.
Alguém poderia certamente perguntar o que vem primeiro: a paz social ou
a ideologia dominante? E ainda que isto pudesse parecer o jogo do ovo e da
galinha, atrevemo-nos a assinalar que é o factor ideologia o que
determina a passividade. Mas então, como removê-la de cima? O
que costuma acontecer é que em certos momentos e nesta ou naquela zona
do sistema, tal domínio se rompe. Isto em virtude de que a
própria realidade objectiva por vezes empurra muito fortemente contra
tal domínio: por exemplo, quando surgem momentos de crise e o
desemprego e os salários baixos massificam-se. Nestes casos, o protesto
e a indignação são praticamente espontâneos e o
funcionamento da ideologia dominante torna-se mais difícil. Logo, por
estas ligações e rupturas pode-se começar a colar uma
ideologia mais congruente com a situação objectiva da classe. Em
breve, a reivindicação e o movimento dos de baixo estala a
ideologia dominante e, ao mesmo tempo, facilitar o desenvolvimento de uma
ideologia própria. Além de que o desenvolvimento desta ideologia
também ajuda a impulsionar essas mobilizações.
Para nossos propósitos, podemos concluir: no actual contexto mexicano,
o recurso à passividade política e o afã de
"portar-se bem" e preservar a chamada "paz social",
"estado de direito", etc, só pode contribuir para o
domínio da ideologia da classe no poder.
III
Na campanha eleitoral de AMLO deram-se, especialmente no último tempo,
determinados erros. Ou seja, há coisas que poderiam ter sido feitas
melhor. Mas o problema principal não radica nesta componente subjectiva
e sim em razões de carácter estrutural. Por isso mesmo, seria
enganoso falar de erros. O problema não está na capacidade maior
ou menor das pessoas e sim na posição classista dessas pessoas,
nas virtudes e limitações que derivam de tal
posição. E o que temos aqui é a existência de um
bloco progressistas popular encabeçado por segmentos da burguesia
média e pequena, que combate contra um duro bloco de poder, o que dirige
e se beneficia do modelo neoliberal: capital financeiro especulativo, grandes
consórcios monopólicos exportadores e capital estrangeiro. A
este bloco há que atacá-lo e defenestrá-lo através
de um bloco popular dirigido por um segmento da burguesia nacional. E
repitamos: as pessoas que encabeçam o bloco podem gozar de um
coeficiente intelectual muito elevado e/ou de um poder carismático
notável, mas isso não impede que incorram em condutas que
poderiam parecer tolas. Por que? Pela posição classista que
ocupam e pelo contexto no qual se processa o actual contexto político.
Quais são estas limitações de ordem estrutural? Por que
se verificam?
Recordemos um texto especialmente agudo: "à burguesia
convém mais que as mudanças necessárias num sentido
democrático-burguês se produzam mais lentamente, mais
gradualmente, mais cautelosamente, de um modo menos resoluto, por meio de
reformas, por meio de reformas e não por meio da
revolução, que estas mudanças sejam o mais prudentes
possíveis em relação às 'honradas'
instituições da época do feudalismo (tais como a
monarquia), que estas mudanças desenvolvam o menos possível a
acção independente, a iniciativa e a energia
revolucionárias do povo simples, ou seja, dos camponeses e
principalmente dos operários, pois de outro modo a estes últimos
lhes será tanto mais fácil 'mudar o fuzil de ombro', como dizem
os franceses, ou seja, dirigir contra a própria burguesia a arma que
puser em suas mãos a revolução burguesa, a liberdade que
esta lhes dê, as instituições democráticas que
brotem no terreno desmatado do feudalismo". Em suma, "a burguesia
é incapaz de uma democracia consequente".
[7]
O problema e a contradição que aqui se perfila é claro:
para triunfar perante um inimigo que é muito forte, a burguesia deve
aliar-se com os sectores populares (camponeses, operários, pequena
burguesia), promover sua organização e mobilizá-los em
extensão e profundidade. Além de que quanto mais poderoso for o
bloco do poder, tanto mais radical deverá ser a
mobilização dos de baixo. Se isto não se verifica,
não poderá vencer na sua luta política. Mas,
helás!, se recorre a essa imprescindível
mobilização dos de baixo, passa a despertar a "besta"
ou o "demónio". Ou seja, sectores sociais a classe
operária em particular que ao mobilizar-se e desenvolver
força política podem acabar por sepultar essa mesma burguesia.
Por outras palavras, pode ser vencida pelos de cima se for tomada pela timidez
e pelo temor dos de baixo, ou ser vencida pelos de baixo se for tomada pelo
ódio aos de cima. Tal é o Scila e Caribdis em que se move a
burguesia.
Nos dilemas, em muitos casos talvez na maioria deles, nos tempos actuais
costuma-se impor a alternativa da conciliação com os de
cima. Por outras palavras, entre a subordinação classista e o
desaparecimento como classe, opta-se pelo primeiro. Ainda que se diga isto,
ajustemos o juízo: tal disjuntiva extrema só opera na parte mais
alta do processo. Como regra, nas partes mais intermédias do caminho, a
opção do aniquilamento classista fica fora do horizonte vital.
Por isso, o que ocorre é uma negociação entre os
interesses populares e os da burguesia democrática. E avança-se
mais no programa democrático quanto mais fortes forem os segmentos os
populares. E vice-versa.
A situação mexicana certamente não é igual à
que tinha "in mente" Lenin. No caso russo (circa 1905), as tarefas
básicas apontavam para a destruição da ordem
económica e política de carácter feudal que ainda era
dominante no país. Por isso mesmo, o bloco progressista estava
integrado, ao menos em potência, por camponeses, operários e
capitalistas. E o retardatário pela nobreza latifundiária. No
nosso caso, o bloco dominante
já é burguês.
Nele se inscrevem o grande capital financeiro, os grandes capitalistas
monopólicos nacionais e o capital estrangeiro. E contra ele, ao menos
num sentido potencial (como possibilidade que abre a situação
económica objectiva), teríamos a burguesia nacional média
e pequena (inclusive a grande que opera em função do mercado
interno), a pequena burguesia assalariada e independente, os sectores
camponeses e a classe operária. Quanto à pequena burguesa (por
vezes qualificada como "camadas médias") convém pelo
notar. Nas actuais condições mexicanas, tornou-se extremamente
extensa e heterogénea. A extensão cresce (ou seja, cresce o seu
peso percentual em relação tanto à população
total como à população activa) em virtude da
decomposição da classe operária (que chega a perder peso
absoluto) e inclusive da burguesia mais pequena. E a heterogeneidade, pois na
categoria encontramos situações que são bastante diversas
em termos de tipo de ocupação, sector económico,
património, nível de rendimento, precariedade laboral,
níveis de educação, etc.
Em suma, no caso mexicano: i) o inimigo não é o feudalismo e sim
um segmento capitalista; ii) por isso mesmo, no bloco progressista não
está toda a burguesia e sim apenas uma parte dela; iii) no caso russo
de 1905, o papel e a presença do capital estrangeiro não tem a
importância que tem realmente no caso mexicano actual; iv) podemos
acrescentar: na Rússia de Lenin a força política dos de
baixo era bastante superior à que hoje podemos ver no México.
O bloco social e político que encabeça AMLO corresponde em algum
grau ao bloco opositor potencial antes delineado. Dizemos em algum grau pois
nem toda a população que do ponto de vista objectivo
(i.é,, económico) o integra alinha-se politicamente com AMLO. A
margem de não alinhados (e que aderem a outras opções
políticas) nos dá uma ideia do grau de consciência
política, ainda muito desenvolvida, que existe no país. Por
outras palavras, o bloco político de AMLO ainda possui uma margem de
crescimento possível que é bastante elevada.
A pergunta que se segue seria: "qual é a
força dirigente
deste bloco? Ou seja, que interesses classistas representa de modo
privilegiado AMLO e seu círculo mais próximo? Quando se trata de
caracterizar o perfil classista dos dirigentes políticos não
basta assinalar sua situação de classe efectiva. Aqui, o
critério relevante é outro: examinar o comportamento
prático efectivo desses dirigentes e, a partir de tal comportamento,
deduzir o carácter de classe com que operam esses grupos
políticos dirigentes. Recordemos a colocação de Marx:
"não se deve crer que os representantes democráticos
são todos shopkeepers (merceeiros) ou pessoas que se entusiasmam com
eles. Podem estar a um mundo de distância deles, por sua cultura e sua
situação individual. O que os faz representantes da pequena
burguesia é que não vão mais além, quanto à
mentalidade, de onde vão os pequeno burgueses quanto ao modo de vida;
que, portanto, vêm-se teoricamente impulsionados pelos mesmos problemas e
pelas mesmas soluções que impulsam àqueles, praticamente,
o interesse material e a situação social. Tal é, em
geral, a relação que existe entre os
representantes políticos e literários
de uma classe e a classe por eles representada".
[8]
O que Marx coloca para a pequena burguesia vale também para outras
classes ou fracções de classes.
Dito isto, podemos responder: a partir da sua conduta política efectiva
podemos sustentar que AMLO representa os interesses da burguesia mexicana que
trabalha para o mercado interno e que não desfruta de
posições monopolistas. Por isso mesmo, em termos de tamanho,
podemos supor que se trata de uma burguesia média e que tem pouca ou
nenhuma ligação com o capital estrangeiro. Isto, no sentido de
não possuir a propriedade da própria empresa, de não ter
directórios interconectados e semelhantes. Ainda que tendo
ligações indirectas de carácter contraditório. Por
exemplo, em termos de produzir para os mesmos mercados (a empresa estrangeira
pode tomar quotas crescentes das vendas e, no limite, deslocar de todo a
empresa autóctone), de comprador-vendedor (possíveis
situações de monopsónio), de acesso ou não ao
crédito, etc. Desta posição estrutural deriva-se (se
houver congruência classista) um programa político de corte
burguês, democrático e nacional.
Acrescentemos: esta fracção da burguesia tem interesses que
não são idênticos
às outras classes e fracções de classe que integram hoje
o bloco popular. Mas sim
são convergentes, no período actual,
com os interesses desses outros grupos: operários, camponeses e, muito
em especial, com os diversos segmentos da pequena burguesia. A
convergência não suprime o conflito, o qual pode chegar a ser
insuperável. Por exemplo, a longo prazo (e por vezes também a
curto) entre a classe operária e a burguesia (seja pequena ou
média) coloca-se uma contradição objectiva que é
irresolúvel em termos da preservação da
relação capital-trabalho. Por outras palavras, "hoje
podemos marchar unidos contra o inimigo comum. Amanhã, uma vez
derrotado esse inimigo, passaremos a ver-nos as caras". Importa
não esquecer esta situação, pois a perspectiva do
amanhã incide inevitavelmente no tipo de relações que hoje
se tende a estabelecer: o que faço hoje não é
independente do que espero que possa suceder no futuro.
Seja como for, no momento actual o dominante é (ou deveria ser) o
aspecto da convergência. E neste sentido, também se pode
sustentar que para os sectores populares (operários, camponeses, camadas
médias), o triunfo de López Obrador é absolutamente vital.
Tomemos o caso da classe operária: seu objectivo final deve ser a
abolição das relações capitalistas de propriedade e
tudo o que dela deriva. Mas se quiser avançar nessa
direcção, primeiramente deve desmatar o caminho. O que hoje
significa defenestrar o domínio do capital financeiro nacional e
internacional (além disso, intimamente associados). E se não for
capaz disso, muito menos será capaz de aceder à meta superior.
Mais ainda, supor que hoje está na ordem do dia "tomar de
assalto" o conjunto da ordem burguesa para assim passar a construir um
ordenamento socialista, mais que um acto de audácia política
seria uma simples de manifestação de aventureirismo
irresponsável.
Concluamos esta parte. Para os de baixo, o que significa apoiar AMLO? Em
poucas palavras, este apoio implica não passividade e sim o
desdobramento de uma mobilização muito activa, única forma
de o movimento poder superar as vacilações estruturalmente
condicionadas da burguesia democrática e ao mesmo tempo
única rota pela qual se pode desenvolver a consciência de classe e
passar a estar em condições de vencer o actual bloco no poder.
Acrescentemos: nesta mobilização o papel da classe
operária torna-se vital. Mas, será possível esta
mobilização?
IV
O que se passa com a classe operária?
No México, a classe operária esteve historicamente mediatizada.
Ao terminar a revolução, começa um processo de
corporatização e de subordinação da classe ao
poder, algo que se consolida durante o governo do general Cárdenas. A
integração não foi gratuita: apesar de dirigentes
sindicais corruptos
(charros)
enriquecerem e gestionarem a subordinação da classe, esta
não deixou de obter alguns benefícios em termos de
prestações sociais e salários mais elevados. Além
disso, com a economia e a indústria crescem em altos ritmos,
também cresce a ocupação operária. Com a
emergência do modelo neoliberal, a partir de 1982, esta
situação altera-se. O salário real despenha-se e
estende-se a desocupação, aberta e disfarçada.
Além disso, a partir do governo e utilizando por vezes o
exército, destroem-se as organizações sindicais
charras
mais fortes. Com isto não se avança a democracia sindical e sim
a simples indefensão dos trabalhadores. Se a isto se acrescentar a
total ausência de um partido político capaz de representar a
classe operária, pode-se compreender a tremenda debilidade
orgânico-politica da classe durante este período.
Mas há algo mais. Durante a fase neoliberal a ocupação
industrial desce inclusive em termos absolutos. O que acaba por arrastar a
descida numérica da própria classe operária. Por fim,
temos que a porção que representa a classe operária na
ocupação total desce abruptamente. O que cresce é a
porcentagem de ocupação informal: trabalhadores informais, por
conta própria, ambulantes, etc. Além disso, no interior dessa
classe operária já numericamente diminuída, desce o peso
dos ocupados na grande indústria e eleva-se o dos que trabalham em
estabelecimentos pequenos e médios. Além disso, continuou a
estender-se, em todos os níveis, a peste da chamada "flexibilidade
laboral", o trabalho precário, temporário e desprotegido.
Em suma, além dos políticos, há factores económicos
objectivos que afectam negativamente o peso político da classe
operária. Algo que, de resto, parece ser inerente ao padrão
neoliberal.
Avancemos outro passo. No México, a diminuição do peso
quantitativo da classe operária une-se ao aumento da pobreza a
nível nacional. Certamente a classe operária fica empobrecida,
mas a porcentagem de pobres que não pertence à classe
operária é o que aumenta em teremos quase exponenciais. A
razão é muito clara: a força de trabalho que a
indústria capitalista não é capaz de absorver, mais que
transformar-se em exército industrial de reserva (ou seja, funcionar
como reserva para satisfazer as necessidades oscilantes da
acumulação) acaba por sair do circuito do capital (suas
possibilidades de emprego produtivo tendem a zero) e passam a incorporar o
grande oceano da "informalidade": uma espécie de pequena
burguesia transitória, decomposta e alumpenada. São os que vivem
do pequeno comércio, do comércio informal
(ambulantaje),
também do roubo, do assalto e do
narcomenudeo
[NT 2]
. Trata-se de sectores mais ou menos desclassificados nos quais se podem
esperar fortes acesso de rebeldia e, ao mesmo tempo, escassa força
orgânica e nula capacidade política em termos de longo prazo
estratégico. Ou seja, zero capacidade de condução
política. E convém também indicar algo que, apesar de
não ter ocorrido, é uma possibilidade sempre presente nestes
segmentos sociais: a de servir de base de apoio ou "carne de
canhão" para eventuais movimentos políticos de
orientação fascista ("populismo de direita".
Neste contexto, temos: a) uma boa parte do bloco popular, numericamente
majoritário, o qual é integrado pelas diversas e variegadas
formas que hoje assume a pequena burguesia; b) neste âmbito, apesar do
seu enfraquecimento, a classe operária, ao menos em potência,
continua a possuir um potencial de direcção política muito
importante. Na realidade, é o único sector social que pode
competir no futuro com uma condução democrático-burguesa;
c) seja como for, entre o acto e a potência ainda há uma enorme
distância. Mas uma distância que, de acordo com a
experiência histórica, a classe poderia percorrer num lapso de
tempo não demasiado longo. Ou seja, não existem impossibilidades
absolutas ou obstáculos insuperáveis para que a classe avance
para uma condição de "classe em si". E os recentes
movimentos, especialmente o mineiro, mostram-nos que ao contrário dos
preconizado por intelectuais apaniguados, a classe está ali e sua
capacidade de luta também.
O levantamento de Sicartsa mostrou muitas coisas. Entre outras: i) que a
classe ainda é dirigida por líderes que não respondem aos
seus interesses classistas efectivos. Contudo, trata-se de líderes que
a classe elegeu e está disposta a defender. Algo que a esquerda
não deve esquecer: não é com imposições
mafiosas e violentas (pior se vierem da direita governante) que a classe vai
encontrar líderes melhores. É com o seu convencimento e para
isso há que trabalhar politicamente no interior da classe,
acompanhá-la na sua vida e nas suas lutas, embeber-se e aprender dela e
também ensinar-lhe. Em resumo, não esquecer que a classe
operária liberta-se a si própria ou não se liberta; ii)
que a classe operária não desapareceu e que continua a possuir
uma capacidade de luta e de organização que nenhum outro sector
popular possui. Ali, na cidade de L. Cárdenas, a força bruta
policial foi repelida e não pode impor os seus desígnios; iii)
que a classe operária, quando luta e se levanta, ficou dramaticamente
só. Aquilo que deveria ter sido saudado com grande felicidade provocou
antes temor. Ou indiferença. A direcção do PRD e o
próprio AMLO, perante o levantamento de Sicartsa, saíram pelos
fundos. E Marcos, rei do regateio, fez algo semelhante. Este é um dos
maiores dramas da situação actual: a única classe que
pode dar um conteúdo radical ao movimento popular e que tem capacidade
organização é desprezada pelas actuais
direcções políticas. Mas se consultássemos o Dr.
Freud talvez não falasse de desprezo e sim de medo.
V
Suponhamos que Calderón, o candidato do PAN, acabe por triunfar. O que
podemos esperar neste caso?
O projecto manejado por este candidato assegura, no fundamental, a continuidade
do modelo neoliberal em curso. Mas convém investigar alguns
possíveis matizes ou variantes. A título introdutório
digamos que Calderón não é um estadista: sua visão
do país é curto-prazista e algo superficial. Não é
um pensador e move-se em termos de um sentido comum direitista. Tão
pouco aponta para uma visão global estratégica que revele a
imagem de uma sociedade diferente da actual. Sua inteligência é
mediana (o que já o coloca muito acima de Fox) e possui um manejo da
política superior ao de Fox. Mas estes dados, que apontam para a
personalidade do dirigente, não são os mais relevantes. A chave,
como sempre, devemos buscá-la no provável curso objectivo que
poderia seguir o país. Para abreviar, vamos concentrar-nos no curso que
poderia seguir a economia.
Para Calderón, o problema crucial radica no emprego. E sustenta que seu
governo assumirá como tarefa central a resolução deste
problema muito agudo. As orientações seriam as que se seguem.
Primeiro: incentivar o investimento e o crescimento. Trata-se de estimular o
investimento privado, nacional e estrangeiro. Mas não o público.
Segundo: o que fazer para incrementar o coeficiente de investimento? A
proposta é bastante simples: i) assegurar a estabilidade do ambiente
económico e político. Para o que oferece aplicar a lei sem
contemplações. Em suma, busca-se a "confiança"
dos investidores potenciais; ii) desregular e desburocratizar (suprimir
papelório) o caminho que segue o investimento privado; iii) reduzir a
taxa impositiva que afecta o capital; iv) controlar salário (evitar
aumentos "desmedidos") e assegurar uma taxa de lucro atraente.
Terceiro: ainda que o tema não se discuta, parece evidente que se
supõe que o novo e acrescido investimento vai funcionar com uma
densidade de capital relativamente baixa e, por isso, terá uma alta
capacidade de absorção ocupacional.
Pode esta política ter êxito?
Quanto ao primeiro ponto, surge desde já uma dúvida: a proposta
esquece que, pelo menos no país, o investimento público costuma
funcionar como força motriz ou "locomotora" do investimento
privado na sua componente nacional. Por isso, na ausência deste factor
de arrastamento, a resposta do investimento privado poderia não ser
tão dinâmica. Em suma: pode-se assegurar que se verá
afectada negativamente.
Quanto ao segundo ponto, a chave radica em assegurar uma taxa de lucro atraente
para o capital. Para isso, a atenção é posta na
dimensão "custos de produção" e no factor de
segurança (reduzir a incerteza do investimento). Mas aqui surge um
problema maior: supondo que realmente se reduzam os custos, esquece-se que a
rentabilidade depende não só da relação
preços-custos. Também influi o nível de vendas e seu
impacto nas capacidades produtivas ociosas. O ponto é simples e
conhecido: o empresário pode manejar uma relação
preços-custos extremamente favorável, mas se não encontrar
mercados de vendas adequados e crescentes enfrentará problemas de
realização. O que acabará por limitar suas
decisões de investimento. Na postura de Calderón evidencia-se a
filiação neoclássica dos seus assessores: crêem na
Lei de Say e esquecem totalmente o papel da procura na
determinação dos níveis do investimento e do rendimento
nacional. E quanto à "segurança" ou
criação de um "clima favorável", já nos
vêem demonstrando o que implica: perante qualquer protesto, aplica-se a
coacção directa.
Quanto ao terceiro ponto, trata-se de um bom desejo e nada mais. O grosso do
investimento, se se verificar, provem das grandes empresas, e estas não
vão incorporar tecnologias atrasadas e sim as mais adiantas que possam
conseguir. E estas, diríamos que por definição, utilizam
pouca mão-de-obra. Se assim não fizessem, seus níveis de
produtividade seriam afectados negativamente e, por isso, seu poder para
competir nos mercados externos experimentaria uma forte
deterioração. Algo que, naturalmente, em nada condiz com os
proclamados desejos de desenvolver uma forte capacidade para penetrar nos
mercados externos. O que, por sua vez, significa que o possível poder
de penetração deverá, de modo quase fatal, apoiar-se na
redução dos custos salariais.
Em geral, o que podemos esperar neste campo é: i) níveis de
investimento mais ou menos medíocres. Ou seja, semelhantes ao das
últimas duas décadas nas quais imperou o padrão
neoliberal; ii) que o investimento provenha do capital estrangeiro e das
grandes corporações nacionais que possuem capacidade exportadora;
iii) que tal investimento aplique tecnologias intensivas em capital e muito
pouco empregadoras de mão-de-obra. Em consequência, o que podemos
esperar, muito ao contrário do que se proclama, é um agravamento
do problema ocupacional.
Juntamente com a agudização do problema ocupacional pode-se
prognosticar um aumento no grau já forte de heterogeneidade estrutural
que afecta a economia nacional. Junto a um sector moderno que funciona com
altos níveis de produtividade, baixa ocupação e boa
capacidade exportadora encontraremos um sector atrasado em que pululam pequenas
empresas com baixos níveis de produtividade e muito baixos
salários. Além disso, podemos esperar um ulterior crescimento do
sector informal e da migração para os EUA. Por outras palavras,
a grande maioria da população ver-se-á ainda mais
marginalizada, mover-se-á entre trabalhos temporários muito
instáveis e a desocupação aberta, operando com
níveis de rendimento muito baixos.
A situação poderia ser explosiva. Não só pelas
tentativas de rebeldia que se pode esperar surgirem nos sectores mais
marginalizados. Também é provável que nos grandes
núcleos industriais os trabalhadores que ainda possuem uma
organização sindical forte recusem a sofreguidão por
congelar salários e por incorporar as normas do trabalho
precário. Frente a isto, os apelos de Calderón a gerar um clima
de "segurança e respeito à lei" serão traduzidos
em repressão aberta. O ataque aos operários da Sicartsa
já foi um primeiro anúncio do que pode vir aí. O que
acaba de suceder em Texcoco também. E qualquer análise cuidadosa
das colocações do candidato conservador poderá verificar
que existe uma clara sofreguidão em aplicar uma mão dura
irrestrita. Por outras palavras, podemos esperar que o país
"avance" para um regime autoritário e repressivo. Na
realidade, o afã de preservar um padrão de
acumulação que não gera crescimento nem melhores
níveis de vida tem de ser associado, necessariamente, a um regime de
repressão aos trabalhadores. Mas, será tão
iniludível o nexo com a repressão? Se o modelo for preservado, a
repressão seria desnecessária só se não houvesse
reclamações por parte dos afectados, que são a grande
maioria da população. Que estes assumam uma atitude passiva
parece difícil, mas não é impossível. A favor da
passividade actuam a mesma decomposição que o modelo provoca na
classe operária, a falta de organização que permeia os
sectores populares, o baixo nível de consciência classista e, por
isso mesmo, o impacto da ideologia dominante que penetra na cabeça dos
"de baixo" pela via dos meios de comunicação. Estes
factores puxam o protesto para baixo. Mas frente a eles está a
situação económica objectiva, que pressiona pela
reclamação. Neste contexto, é provável que
não surja um movimento popular sólido e radical (ainda que
embriões sim). Mas também é muito improvável que
não emerjam protestos, inclusive fortes. Podemos, então,
descartar tanto uma alternativa radical (de corte socialista ou do tipo de Evo
Morales), como uma passividade completa. Portanto, podem-se esperar movimentos
parciais (que não cheguem a ter uma expressão plenamente
nacional) e semi-conjunturais (i.e, reivindicações e
levantamentos que não se inserem numa estratégia a longo prazo)
que, apesar das suas carências, afectem seriamente a legitimidade do
regime. E frente aos quais teremos a resposta já anunciada: a
repressão sem misericórdia e sangrenta. Neste contexto, talvez
os que alguma vez foram de esquerda percebam novamente que o conflito e a luta
de classes continua a existir. Mas será preciso ver de que lado se
posicionam.
VI
O processo mexicano transcorre num quadro internacional que não se pode
esquecer. Na América Latina vêm surgindo governos
democráticos que em maior ou menor grau tratam de superar o
padrão neoliberal e que ensaiam romper com a brutal
subordinação que este modelo geral em relação ao
poder dos Estados Unidos. Para estes interesses imperiais, manter o
México na órbita própria e afastado dos Kirchner, Evo
Morales, Lula, Chávez e companhia torna-se vital. Se AMLO subir ao
governo, o bloco sulista progressista seria enormemente fortalecido com
consequente debilitamento relativo dos EUA. Em suma: é muito aquilo
que se joga no âmbito da correlação de poderes
mundiais na eleição mexicana. Se aqui ganhar o povo
também serão fortalecidos os povos de outras regiões e
países. E vice-versa. Muito se deveria discutir quanto a estes
aspectos, mas para não alongar mais estas notas limitamo-nos a assinalar
o ponto.
Concluamos.
É do interesse objectivo do povo mexicano (e de outros, especialmente na
América Latina) o triunfo de López Obrador. Mas para consegui-lo
o povo deve organizar-se e mobilizar-se activamente. Tanto para ganhar as
eleições como assegurar que, já no governo, mantenham-se a
aprofundem-se os conteúdos democráticos e nacionalistas do
programa.
E se chegasse a ocorrer o triunfo eleitoral de Calderón, as
exigências de organização e mobilização
seriam talvez maiores. Tratar-se-ia, neste caso, de evitar e/ou combater um
regime autoritário e repressivo. Ou seja, de lutar contra a ditadura,
já aberta, do grande capital transnacional e dos seus satélites
internos.
Notas
1- Por vezes se diz que o susto pode provocar uma reacção
violenta e ditatorial. E que, para evitá-la, há que limitar as
exigências. Em suma, "não assustar". O que equivale a
auto-anular-se como sujeito político. A reacção adequada
é muito outra: se surgir a ameaça golpista o povo deve organizar
seu poder armado para vencer também neste terreno.
2- "Pensei que me amariam, / mas não fui amado. / Não fui
amado por uma única grande razão; / porque não podia
ser". Fernando Pessoa.
3- Recordemos Brecht a descrever os cartazes de um desfile da direita:
"Pela liberdade dos ricos / pela valentia contra os indefesos / pela honra
dos assassinos / pela grandeza da imundície / pela imortalidade da
infâmia / pela continuação da era dourada". Cf. B.
Brecht, "Apogeu e queda da cidade de Mahagonny", Nueva Visión,
B. Aires, 1981.
4- Acontecem até coisas divertidas. Exemplo: AMLO qualifica Fox de
"chachalaca" (papagaio), algo que provoca risos e brincadeiras
espontâneas nos de baixo. Mas de imediato surgem os jornalistas
"liberais" e "progressistas" que se sentem violados no
devido respeito para com a "institucionalidade" o Senhor Presidente.
Dizem que isso não vale e começa de imediato uma feroz campanha
contra o terrível perigo que implica o vocábulo
"chachalaca". Quase de imediato surgem "inquéritos"
que mostram uma queda no "rating" de AMLO. Por que? As resposta
desses media é imediata e "sisuda": "por haver
transgredido as regras do bom comportamento". É a técnica
do "recolhimento" por meio da qual o teu inimigo acaba por fazer
campanha em favor das tuas ideias e interesses.
5- Advirta-se também: se na
percepção
pública o resultado fosse ajustado, a execução de uma
fraude eleitoral (algo não descartável) resultaria menos
visível.
6- No dizer de Chomsky, "a propaganda é para a democracia o que o
cacete é para o estado totalitário". Ver seu Media
Control: The Spectacular Achievements of Propaganda. Seven Stories Press,
2004.
7- V. I. Lenin, Dos tácticas de la socialdemocracia en la
revolución democrática, en O.E., Tomo I, pág. 508.
Edit. Progreso, Moscú, 1976.
8- C. Marx, El dieciocho de Brumario de Luis Bonaparte, en
Marx-Engels, Ob. Esc., Tomo I, pág. 434. Progreso, Moscú, 1973.
Notas do tradutor
1- "Cristeros" foram terroristas da extrema-direita que na
década de 1920 assolaram zonas rurais do México. Assassinavam
personalidades progressistas acusadas de ateísmo e cortavam orelhas de
professores que alfabetizavam filhos de camponeses.
2- "Narcomenudeo:" posse, comércio ou fornecimento de
estupefacientes ou psicotrópicos, quando pela quantidade e
apresentação ou forma de embalagem for determinado que é
para distribuição em doses individuais.
[*]
Economista, professor da Universidad Autónoma Metropolitana (UAM-I,
México), autor de
Dos crisis: Japón y Estados Unidos
(UAM, 2003, 247p., ISBN 970-701-401-6),
Las ciencias sociales: Sinrazón y filosofía romántica
(UAZ, 2004, 144 p, ISBN 970-722-293-X),
Explotación y despilfarro
(PyV, 1999, 263 pgs., ISBN 968-856-766-3).
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
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