México: A actual conjuntura política e tendências subjacentes

por José Valenzuela Feijóo [*]

I

No último quadrimestre do ano passado (2005), a popularidade de López Obrador (AMLO) era impressionante. Superava por isso, por ampla margem, os demais candidatos presidenciais.

Que factores explicavam essa superioridade? Podemos mencionar: a) capitaliza o descontentamento que gera o funcionamento do esquema neoliberal (crescimento zero, salários baixos, ocupação escassa, desperdício e parasitismo, economia em decomposição). Para isso, sua atitude pessoal (homem simples, honrado, progressista) e seus programas no Distrito Federal em favor de pobres e idosos despertaram fortes e extensas simpatias no povo simples; b) ao mesmo tempo beneficiou-se de uma ampla cobertura mediática: suas conferências colocavam-no no centro dos noticiários que iniciavam o dia e a grosseira campanha em favor do desaforo [das suas imunidades] também o promovia nos media; c) o persistente entorpecimento de Fox, o descontrolado arrivismo da sua esposa, os roubos e escândalos da família mais próxima, etc também provocavam um repúdio forte (inclusive, em parte, da direita) contra a figura do primeiro mandatário e do seu círculo mais imediato.

Para AMLO um momento importante foi a recusa ao desaforo. Para isso, para além das considerações legais (neste caso inteiramente secundárias), contou com o forte apoio popular que já havia acumulado. Mas, ao mesmo tempo, sua posição fica assinalada por um odor de boa moral que importa destacar. Em quase toda a opinião pública surge a convicção de que se pretendia deixá-lo fora da campanha presidenciais por artes manhosas e trapaceiras. Ou seja, se através de votos não te posso vencer, expulso-te da competição recorrendo ao atropelo trapaceiro. Neste contexto, as camadas médias e até parte da classe alta sentiram-se incómodas e incapazes de lutar em favor do desaforo: este não conseguiu legitimar-se. Mas o factor chave sem dúvida foi a impressionante mobilização popular que teve lugar nas vésperas da decisão final. Esta foi tão ampla e sólida que provocou pavor nas alturas do Poder: aprovar o desaforo poderia despertar a "besta adormecida" terminar por sepultar o regime existente. Esta foi uma grande lição: políticos e partidos progressistas só podem avançar enquanto se apoiarem na mobilização popular, no susto que esta provoca na direita. Não nos acordos palacianos com o inimigo de classe. [1]

Por volta de Fevereiro-Março de 2006 AMLO continuava muito acima nas preferências. E até um certo desânimo infiltra-se nas fileiras da classe dominante, a qual começa a ensaiar o táctica do "cerco amistoso". Ou seja, aceito-te como governante mas deves negociar teu programa de acordo com nossos interesses.

Neste momento surge uma mudança (inicialmente não percebida) na campanha eleitoral de AMLO. É assumida a táctica de não se mover, de evitar pronunciamentos radicais, de aproximar-se e tranquilizar a direita. Ou seja, a classe dominante: banqueiros, grandes industriais e meios monopólicos, capital estrangeiro. Como quem diz, surge o empenho em obter um certificado de boa conduta por parte dos de cima. O que implica uma das duas: os de cima esquecem seus interesses classistas objectivos ou o candidato esquece-se dos interesses classistas objectivos dos de baixo. Algo assim como suprimir, com candura, o conflito de classes.

Pois bem, enquanto AMLO e sua equipe optavam pelo caminho do "menino bem educado", a direita respondia-lhe com uma campanha propagandística de uma violência extrema. [2] O desdobramento mediático foi impressionante: mobilizam-se rádios e televisão, chegando a duas mensagens por minuto em cada estação. Desenha-se um quadro de terror e não se vacila em utilizar as mentiras mais soezes. Convém sublinhar: não há aqui apenas a expressão do que é uma ideologia conservadora que recusa o progressismo de AMLO. A questão vai mais além pois não se vacila em sustentar que dois mais dois é igual a cinco. Trata-se em suma de uma direita que escapa ao conservadorismo tradicional, que incorpora no seu acervo o cinismo mais descarado, a violência e a mais completa falta de escrúpulos. O que também nos indica que o PAN passou a ser controlado por um grupo no qual se combina um catolicismo primitivo, ultramontano, de corte franquista (Calderón e o PAN estão muito ligados a Aznar), com estilos mafiosos de corte siciliano. É a característica do grupo conhecido como "Yunque" (ao qual pertence o actual presidente do PAN, um ser primitivo como poucos e que poderia ser uma mistura "terceiro-mundista" e cristera [NT 1] do Ku-klux-kan e do franquismo clerical). [3]

Neste contexto do último período também foram surgindo diversos conflitos definitórios que convém recordar.

Primeiro, aquele que foi dirimido nas alturas do poder. Trata-se de uma lei geral que regula os meios de comunicação e o espaço electrónico. É a chamada "Lei Televisa", pois consolida e acentua para longo tempo, em termos até grosseiros, o controle monopólico dos media. Em si mesma, a lei é escandalosa. Mas tornou-se ainda mais escandaloso o apoio unânime que conseguiu do PRD (o partido de AMLO) na Câmara dos Deputados e que permitiu sua promulgação final. A razão deste apoio foi muito grosseira: tentar que o monopólio televisivo não fizesse campanha contra AMLO e que, perante este gesto de amizade, retrucasse o carinho. A candura, ou antes a estultícia do gesto, foi descomunal e já se começam a observar os seus frutos: se AMLO sai da linha caem-lhe em cima todas as hienas da selva televisiva e radial. [4] Por outras palavras, nem sequer se cumpre isso do "pão para hoje e fome para amanhã". O pão nem sequer hoje te dão. A menos que te alinhes claramente nas fileiras da direita. Por exemplo: apoiando o investimento estrangeiro, o tratado de livre comércio, a autonomia do banco central, a desregulamentação económica, etc. Ou seja, concedo-te algum espaço e não te ataco, mas desde que passes a defender o credo neoliberal. E de passagem advirto-te: se não fizeres assim cairá teu "rating" nos inquéritos.

Manifestação na Sicartsa. Segundo: na fábrica Sicartsa localizada em Michoacán desenvolve-se uma greve que não é curta e que, entre outras medidas, reclama respeito à autonomia sindical e que o governo não imponha líderes que além de corruptos são simples e lamentáveis marionetas do poder. Esclareçamos: o líder assediado pela patronal e pelo governo não é precisamente um monge franciscano e matérias de dinheiro, mas além de roubar é capaz de sacar aos empresários determinados benefícios em favor dos trabalhadores. O que, no actual contexto neoliberal, já não parece adequado. Frente à greve, o poder (estatal e federal) envia tropas para desalojar violentamente os trabalhadores e restabelecer "a ordem e o estado de direito". As imagens que se viram recordam as do Iraque ocupado e/ou as de uma guerra civil. Os operários, comprovando sua capacidade organizativa e valor, resistem e acabam por impedir a entrada das tropas. Trata-se, talvez, do êxito mais importante – em matéria de lutas classistas — dos últimos anos. Como reagem AMLO e sua equipa perante esta batalha? Apelam ao diálogo, calam-se frente à violência estatal e praticamente fogem dos operários em greve. Não devem "contaminar-se" com a luta classista e não devem ser confundidos com esses "revoltosos". Por outras palavras, apoiamos os pobres — assim, enquanto pobres simples — mas quanto à classe operária organizada e em pé de luta, a conversa já é outra. Ou seja, "somo outros" e "não nos confundam com aqueles".

Manifestação em Texcoco. Terceiro: nos últimos dias ocorre outro arrebentamento, agora em Texcoco. Aqui, os protagonistas são pequenos comerciantes e camponeses. O sítio em que vendiam foi concedido a uma grande cadeia comercial e devem transferir-se para outro lugar. Recusam a medida em entrincheiram-se no lugar. Resposta: chegam forças estatais e federais para restabelecer a ordem. Num primeiro momento são repelidas. Mas no dia seguinte, em número de três mil, limpam o lugar. Há morte, feridos e dezenas de detidos. E novamente observamos cenas próprias de uma guerra civil, ainda que de um lado haja paus e pedras mais alguns facões e do outro um grande poder de fogo e soldados profissionais. Aqui, os que se rebelam não são parte do proletariado industrial: são, basicamente, pequena burguesia rural, semi-camponeses. Mas a violência estatal é semelhante. Qual foi a reacção de AMLO e companhia? Passar a demarcar-se deste movimento, assinalando que eles são partidários da "via pacífica".

Convém também observar: no caso de Michoacán associam-se o Poder federal (nacional) com o poder estatal (i.e. provincial), aqui dirigido por um conspícuo membro do PRD: L. Cárdenas. No estado do México, onde se localiza Texcoco, dá-se uma associação semelhante, ainda que aqui a autoridade regional máxima pertença ao PRI. A lição é clara: o Estado é o Estado, qualquer que seja a modalidade que assuma e qualquer que seja a pessoa que se encarregue da sua administração. Para muitos isto fora esquecido, mas a realidade tornou a confirmar: o Estado, na sua mais pura essencialidade, é um aparelho de repressão, uma "organização especial da violência" encarregada de preservar a ordem económica e social vigente. Ou seja, uma instituição ao serviço da classe dominante.

Concluamos esta parte. Qual o balanço deste período?

Ao começar o mês de Maio os inquéritos indicam uma queda abrupta nas preferências por AMLO e uma análoga subida em favor de Calderón. Na maioria, seria Calderón o dianteiro. Naturalmente, a quantidade de empresas de inquérito que vendem "resultados" é impressionante: neste campo, a corrupção costuma ser descomunal. Contudo, o que parece certo é que no princípio de Maio o que fora grande vantagem de AMLO diluiu-se e hoje as diferenças são mínimas. Pode ser que AMLO ainda esteja em primeiro lugar, mas isto não é um juízo muito seguro. Aquilo que, sim, é seguro é que verificou-se uma descida significativa nas preferências eleitorais a seu favor. [5]

II

Do exposto emergem diversos e importantes problemas. Um deles é o do papel que podem desempenhar os meios de comunicação em massa na conformação das preferências políticas da população. E, mais em geral, na cultura e ideologia que manejam os diversos grupos sociais.

Partimos de uma constatação: no México, os "mass-media" configuram uma estrutura altamente monopolizada e estão controlados pela classe dominante na sua fracção mais direitista. Ou seja, no sentido mais estrito da palavra, funcionam como instrumentos ideológicos ao serviço da classe dominante. Isto, num duplo sentido: um, como instrumento que difunde a ideologia conservadora e que, com os ajustes do caso, fá-la penetrar maciçamente nos meios populares. Diríamos que esta é a sua função genérica e de mais longo prazo. Para o que utiliza as telenovelas e inclusive os programas de espectáculos: música, futebol, etc. Dois: sua missão de prazo mais curto e que implica uma intervenção praticamente directa nas contendas eleitorais. Os noticiários e programas de entrevistas concentram esta função.

A eficácia dos media, especialmente da televisão, é enorme. Na Idade Média, a igreja e seus curas exerciam um domínio quase irrestrito sobre a população: com missas, sermões, confissões e ameaças de fogo eterno moldavam consciências e regulavam condutas em favor do sistema. Hoje, é a televisão que cumpre esse papel e fá-lo com uma eficácia ainda maior. Ao ponto que se costuma dizer que é capaz de transformar o negro em branco. [6]

Se nos colocarmos no contexto dos de baixo, e nos fixamos no espaço da consciência, poderemos observar um conflito entre duas forças. Uma, aquela que provem da própria realidade que experimentam os trabalhadores, a que os empurra para a reivindicação e a rebelião contra o sistema. Por outro, está a força dos media e a propaganda, a que busca apoderar-se da consciência popular, nela introduzir modos congruentes com os interesses da classe dominante e, dessa forma, uma visão distorcida que dê lugar a condutas de integração e/ou de aceitação do sistema. Qual o factor que domina? Não há uma resposta única e o que se pode sustentar com bastante segurança é: a) na ausência de uma organização política independente e em tempos de grande passividade social, o que domina é o factor propaganda. Em suma, funciona a "falsa consciência de classe"; b) em períodos de grande mobilização social e de agudização dos conflitos, tende a predominar o factor realidade objectiva. Obviamente, aqui também costuma operar uma organização política mais ou menos desenvolvida.

A ideia mais importante a sublinhar é: o povo pode sacudir o peso da ideologia dominante (exemplo: do impacto alienante dos meios televisivos) só num contexto de amplas lutas e mobilizações. Em contrapartida, em períodos de "paz social", o que impera (quase por definição) é a ideologia dominante. Alguém poderia certamente perguntar o que vem primeiro: a paz social ou a ideologia dominante? E ainda que isto pudesse parecer o jogo do ovo e da galinha, atrevemo-nos a assinalar que é o factor ideologia o que determina a passividade. Mas então, como removê-la de cima? O que costuma acontecer é que em certos momentos e nesta ou naquela zona do sistema, tal domínio se rompe. Isto em virtude de que a própria realidade objectiva por vezes empurra muito fortemente contra tal domínio: por exemplo, quando surgem momentos de crise e o desemprego e os salários baixos massificam-se. Nestes casos, o protesto e a indignação são praticamente espontâneos e o funcionamento da ideologia dominante torna-se mais difícil. Logo, por estas ligações e rupturas pode-se começar a colar uma ideologia mais congruente com a situação objectiva da classe. Em breve, a reivindicação e o movimento dos de baixo estala a ideologia dominante e, ao mesmo tempo, facilitar o desenvolvimento de uma ideologia própria. Além de que o desenvolvimento desta ideologia também ajuda a impulsionar essas mobilizações.

Para nossos propósitos, podemos concluir: no actual contexto mexicano, o recurso à passividade política e o afã de "portar-se bem" e preservar a chamada "paz social", "estado de direito", etc, só pode contribuir para o domínio da ideologia da classe no poder.

III

Na campanha eleitoral de AMLO deram-se, especialmente no último tempo, determinados erros. Ou seja, há coisas que poderiam ter sido feitas melhor. Mas o problema principal não radica nesta componente subjectiva e sim em razões de carácter estrutural. Por isso mesmo, seria enganoso falar de erros. O problema não está na capacidade maior ou menor das pessoas e sim na posição classista dessas pessoas, nas virtudes e limitações que derivam de tal posição. E o que temos aqui é a existência de um bloco progressistas popular encabeçado por segmentos da burguesia média e pequena, que combate contra um duro bloco de poder, o que dirige e se beneficia do modelo neoliberal: capital financeiro especulativo, grandes consórcios monopólicos exportadores e capital estrangeiro. A este bloco há que atacá-lo e defenestrá-lo através de um bloco popular dirigido por um segmento da burguesia nacional. E repitamos: as pessoas que encabeçam o bloco podem gozar de um coeficiente intelectual muito elevado e/ou de um poder carismático notável, mas isso não impede que incorram em condutas que poderiam parecer tolas. Por que? Pela posição classista que ocupam e pelo contexto no qual se processa o actual contexto político.

Quais são estas limitações de ordem estrutural? Por que se verificam?

Recordemos um texto especialmente agudo: "à burguesia convém mais que as mudanças necessárias num sentido democrático-burguês se produzam mais lentamente, mais gradualmente, mais cautelosamente, de um modo menos resoluto, por meio de reformas, por meio de reformas e não por meio da revolução, que estas mudanças sejam o mais prudentes possíveis em relação às 'honradas' instituições da época do feudalismo (tais como a monarquia), que estas mudanças desenvolvam o menos possível a acção independente, a iniciativa e a energia revolucionárias do povo simples, ou seja, dos camponeses e principalmente dos operários, pois de outro modo a estes últimos lhes será tanto mais fácil 'mudar o fuzil de ombro', como dizem os franceses, ou seja, dirigir contra a própria burguesia a arma que puser em suas mãos a revolução burguesa, a liberdade que esta lhes dê, as instituições democráticas que brotem no terreno desmatado do feudalismo". Em suma, "a burguesia é incapaz de uma democracia consequente". [7] O problema e a contradição que aqui se perfila é claro: para triunfar perante um inimigo que é muito forte, a burguesia deve aliar-se com os sectores populares (camponeses, operários, pequena burguesia), promover sua organização e mobilizá-los em extensão e profundidade. Além de que quanto mais poderoso for o bloco do poder, tanto mais radical deverá ser a mobilização dos de baixo. Se isto não se verifica, não poderá vencer na sua luta política. Mas, helás!, se recorre a essa imprescindível mobilização dos de baixo, passa a despertar a "besta" ou o "demónio". Ou seja, sectores sociais – a classe operária em particular – que ao mobilizar-se e desenvolver força política podem acabar por sepultar essa mesma burguesia. Por outras palavras, pode ser vencida pelos de cima se for tomada pela timidez e pelo temor dos de baixo, ou ser vencida pelos de baixo se for tomada pelo ódio aos de cima. Tal é o Scila e Caribdis em que se move a burguesia.

Nos dilemas, em muitos casos – talvez na maioria deles, nos tempos actuais – costuma-se impor a alternativa da conciliação com os de cima. Por outras palavras, entre a subordinação classista e o desaparecimento como classe, opta-se pelo primeiro. Ainda que se diga isto, ajustemos o juízo: tal disjuntiva extrema só opera na parte mais alta do processo. Como regra, nas partes mais intermédias do caminho, a opção do aniquilamento classista fica fora do horizonte vital. Por isso, o que ocorre é uma negociação entre os interesses populares e os da burguesia democrática. E avança-se mais no programa democrático quanto mais fortes forem os segmentos os populares. E vice-versa.

A situação mexicana certamente não é igual à que tinha "in mente" Lenin. No caso russo (circa 1905), as tarefas básicas apontavam para a destruição da ordem económica e política de carácter feudal que ainda era dominante no país. Por isso mesmo, o bloco progressista estava integrado, ao menos em potência, por camponeses, operários e capitalistas. E o retardatário pela nobreza latifundiária. No nosso caso, o bloco dominante já é burguês. Nele se inscrevem o grande capital financeiro, os grandes capitalistas monopólicos nacionais e o capital estrangeiro. E contra ele, ao menos num sentido potencial (como possibilidade que abre a situação económica objectiva), teríamos a burguesia nacional média e pequena (inclusive a grande que opera em função do mercado interno), a pequena burguesia assalariada e independente, os sectores camponeses e a classe operária. Quanto à pequena burguesa (por vezes qualificada como "camadas médias") convém pelo notar. Nas actuais condições mexicanas, tornou-se extremamente extensa e heterogénea. A extensão cresce (ou seja, cresce o seu peso percentual em relação tanto à população total como à população activa) em virtude da decomposição da classe operária (que chega a perder peso absoluto) e inclusive da burguesia mais pequena. E a heterogeneidade, pois na categoria encontramos situações que são bastante diversas em termos de tipo de ocupação, sector económico, património, nível de rendimento, precariedade laboral, níveis de educação, etc.

Em suma, no caso mexicano: i) o inimigo não é o feudalismo e sim um segmento capitalista; ii) por isso mesmo, no bloco progressista não está toda a burguesia e sim apenas uma parte dela; iii) no caso russo de 1905, o papel e a presença do capital estrangeiro não tem a importância que tem realmente no caso mexicano actual; iv) podemos acrescentar: na Rússia de Lenin a força política dos de baixo era bastante superior à que hoje podemos ver no México.

O bloco social e político que encabeça AMLO corresponde em algum grau ao bloco opositor potencial antes delineado. Dizemos em algum grau pois nem toda a população que do ponto de vista objectivo (i.é,, económico) o integra alinha-se politicamente com AMLO. A margem de não alinhados (e que aderem a outras opções políticas) nos dá uma ideia do grau de consciência política, ainda muito desenvolvida, que existe no país. Por outras palavras, o bloco político de AMLO ainda possui uma margem de crescimento possível que é bastante elevada.

A pergunta que se segue seria: "qual é a força dirigente deste bloco? Ou seja, que interesses classistas representa de modo privilegiado AMLO e seu círculo mais próximo? Quando se trata de caracterizar o perfil classista dos dirigentes políticos não basta assinalar sua situação de classe efectiva. Aqui, o critério relevante é outro: examinar o comportamento prático efectivo desses dirigentes e, a partir de tal comportamento, deduzir o carácter de classe com que operam esses grupos políticos dirigentes. Recordemos a colocação de Marx: "não se deve crer que os representantes democráticos são todos shopkeepers (merceeiros) ou pessoas que se entusiasmam com eles. Podem estar a um mundo de distância deles, por sua cultura e sua situação individual. O que os faz representantes da pequena burguesia é que não vão mais além, quanto à mentalidade, de onde vão os pequeno burgueses quanto ao modo de vida; que, portanto, vêm-se teoricamente impulsionados pelos mesmos problemas e pelas mesmas soluções que impulsam àqueles, praticamente, o interesse material e a situação social. Tal é, em geral, a relação que existe entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe por eles representada". [8] O que Marx coloca para a pequena burguesia vale também para outras classes ou fracções de classes.

Dito isto, podemos responder: a partir da sua conduta política efectiva podemos sustentar que AMLO representa os interesses da burguesia mexicana que trabalha para o mercado interno e que não desfruta de posições monopolistas. Por isso mesmo, em termos de tamanho, podemos supor que se trata de uma burguesia média e que tem pouca ou nenhuma ligação com o capital estrangeiro. Isto, no sentido de não possuir a propriedade da própria empresa, de não ter directórios interconectados e semelhantes. Ainda que tendo ligações indirectas de carácter contraditório. Por exemplo, em termos de produzir para os mesmos mercados (a empresa estrangeira pode tomar quotas crescentes das vendas e, no limite, deslocar de todo a empresa autóctone), de comprador-vendedor (possíveis situações de monopsónio), de acesso ou não ao crédito, etc. Desta posição estrutural deriva-se (se houver congruência classista) um programa político de corte burguês, democrático e nacional.

Acrescentemos: esta fracção da burguesia tem interesses que não são idênticos às outras classes e fracções de classe que integram hoje o bloco popular. Mas sim são convergentes, no período actual, com os interesses desses outros grupos: operários, camponeses e, muito em especial, com os diversos segmentos da pequena burguesia. A convergência não suprime o conflito, o qual pode chegar a ser insuperável. Por exemplo, a longo prazo (e por vezes também a curto) entre a classe operária e a burguesia (seja pequena ou média) coloca-se uma contradição objectiva que é irresolúvel em termos da preservação da relação capital-trabalho. Por outras palavras, "hoje podemos marchar unidos contra o inimigo comum. Amanhã, uma vez derrotado esse inimigo, passaremos a ver-nos as caras". Importa não esquecer esta situação, pois a perspectiva do amanhã incide inevitavelmente no tipo de relações que hoje se tende a estabelecer: o que faço hoje não é independente do que espero que possa suceder no futuro.

Seja como for, no momento actual o dominante é (ou deveria ser) o aspecto da convergência. E neste sentido, também se pode sustentar que para os sectores populares (operários, camponeses, camadas médias), o triunfo de López Obrador é absolutamente vital. Tomemos o caso da classe operária: seu objectivo final deve ser a abolição das relações capitalistas de propriedade e tudo o que dela deriva. Mas se quiser avançar nessa direcção, primeiramente deve desmatar o caminho. O que hoje significa defenestrar o domínio do capital financeiro nacional e internacional (além disso, intimamente associados). E se não for capaz disso, muito menos será capaz de aceder à meta superior. Mais ainda, supor que hoje está na ordem do dia "tomar de assalto" o conjunto da ordem burguesa para assim passar a construir um ordenamento socialista, mais que um acto de audácia política seria uma simples de manifestação de aventureirismo irresponsável.

Concluamos esta parte. Para os de baixo, o que significa apoiar AMLO? Em poucas palavras, este apoio implica não passividade e sim o desdobramento de uma mobilização muito activa, única forma de o movimento poder superar as vacilações – estruturalmente condicionadas – da burguesia democrática e ao mesmo tempo única rota pela qual se pode desenvolver a consciência de classe e passar a estar em condições de vencer o actual bloco no poder. Acrescentemos: nesta mobilização o papel da classe operária torna-se vital. Mas, será possível esta mobilização?

IV

O que se passa com a classe operária?

No México, a classe operária esteve historicamente mediatizada. Ao terminar a revolução, começa um processo de corporatização e de subordinação da classe ao poder, algo que se consolida durante o governo do general Cárdenas. A integração não foi gratuita: apesar de dirigentes sindicais corruptos (charros) enriquecerem e gestionarem a subordinação da classe, esta não deixou de obter alguns benefícios em termos de prestações sociais e salários mais elevados. Além disso, com a economia e a indústria crescem em altos ritmos, também cresce a ocupação operária. Com a emergência do modelo neoliberal, a partir de 1982, esta situação altera-se. O salário real despenha-se e estende-se a desocupação, aberta e disfarçada. Além disso, a partir do governo e utilizando por vezes o exército, destroem-se as organizações sindicais charras mais fortes. Com isto não se avança a democracia sindical e sim a simples indefensão dos trabalhadores. Se a isto se acrescentar a total ausência de um partido político capaz de representar a classe operária, pode-se compreender a tremenda debilidade orgânico-politica da classe durante este período.

Mas há algo mais. Durante a fase neoliberal a ocupação industrial desce inclusive em termos absolutos. O que acaba por arrastar a descida numérica da própria classe operária. Por fim, temos que a porção que representa a classe operária na ocupação total desce abruptamente. O que cresce é a porcentagem de ocupação informal: trabalhadores informais, por conta própria, ambulantes, etc. Além disso, no interior dessa classe operária já numericamente diminuída, desce o peso dos ocupados na grande indústria e eleva-se o dos que trabalham em estabelecimentos pequenos e médios. Além disso, continuou a estender-se, em todos os níveis, a peste da chamada "flexibilidade laboral", o trabalho precário, temporário e desprotegido.

Em suma, além dos políticos, há factores económicos objectivos que afectam negativamente o peso político da classe operária. Algo que, de resto, parece ser inerente ao padrão neoliberal.

Avancemos outro passo. No México, a diminuição do peso quantitativo da classe operária une-se ao aumento da pobreza a nível nacional. Certamente a classe operária fica empobrecida, mas a porcentagem de pobres que não pertence à classe operária é o que aumenta em teremos quase exponenciais. A razão é muito clara: a força de trabalho que a indústria capitalista não é capaz de absorver, mais que transformar-se em exército industrial de reserva (ou seja, funcionar como reserva para satisfazer as necessidades oscilantes da acumulação) acaba por sair do circuito do capital (suas possibilidades de emprego produtivo tendem a zero) e passam a incorporar o grande oceano da "informalidade": uma espécie de pequena burguesia transitória, decomposta e alumpenada. São os que vivem do pequeno comércio, do comércio informal (ambulantaje), também do roubo, do assalto e do narcomenudeo [NT 2] . Trata-se de sectores mais ou menos desclassificados nos quais se podem esperar fortes acesso de rebeldia e, ao mesmo tempo, escassa força orgânica e nula capacidade política em termos de longo prazo estratégico. Ou seja, zero capacidade de condução política. E convém também indicar algo que, apesar de não ter ocorrido, é uma possibilidade sempre presente nestes segmentos sociais: a de servir de base de apoio ou "carne de canhão" para eventuais movimentos políticos de orientação fascista ("populismo de direita".

Neste contexto, temos: a) uma boa parte do bloco popular, numericamente majoritário, o qual é integrado pelas diversas e variegadas formas que hoje assume a pequena burguesia; b) neste âmbito, apesar do seu enfraquecimento, a classe operária, ao menos em potência, continua a possuir um potencial de direcção política muito importante. Na realidade, é o único sector social que pode competir no futuro com uma condução democrático-burguesa; c) seja como for, entre o acto e a potência ainda há uma enorme distância. Mas uma distância que, de acordo com a experiência histórica, a classe poderia percorrer num lapso de tempo não demasiado longo. Ou seja, não existem impossibilidades absolutas ou obstáculos insuperáveis para que a classe avance para uma condição de "classe em si". E os recentes movimentos, especialmente o mineiro, mostram-nos que ao contrário dos preconizado por intelectuais apaniguados, a classe está ali e sua capacidade de luta também.

O levantamento de Sicartsa mostrou muitas coisas. Entre outras: i) que a classe ainda é dirigida por líderes que não respondem aos seus interesses classistas efectivos. Contudo, trata-se de líderes que a classe elegeu e está disposta a defender. Algo que a esquerda não deve esquecer: não é com imposições mafiosas e violentas (pior se vierem da direita governante) que a classe vai encontrar líderes melhores. É com o seu convencimento e para isso há que trabalhar politicamente no interior da classe, acompanhá-la na sua vida e nas suas lutas, embeber-se e aprender dela e também ensinar-lhe. Em resumo, não esquecer que a classe operária liberta-se a si própria ou não se liberta; ii) que a classe operária não desapareceu e que continua a possuir uma capacidade de luta e de organização que nenhum outro sector popular possui. Ali, na cidade de L. Cárdenas, a força bruta policial foi repelida e não pode impor os seus desígnios; iii) que a classe operária, quando luta e se levanta, ficou dramaticamente só. Aquilo que deveria ter sido saudado com grande felicidade provocou antes temor. Ou indiferença. A direcção do PRD e o próprio AMLO, perante o levantamento de Sicartsa, saíram pelos fundos. E Marcos, rei do regateio, fez algo semelhante. Este é um dos maiores dramas da situação actual: a única classe que pode dar um conteúdo radical ao movimento popular e que tem capacidade organização é desprezada pelas actuais direcções políticas. Mas se consultássemos o Dr. Freud talvez não falasse de desprezo e sim de medo.

V

Suponhamos que Calderón, o candidato do PAN, acabe por triunfar. O que podemos esperar neste caso?

O projecto manejado por este candidato assegura, no fundamental, a continuidade do modelo neoliberal em curso. Mas convém investigar alguns possíveis matizes ou variantes. A título introdutório digamos que Calderón não é um estadista: sua visão do país é curto-prazista e algo superficial. Não é um pensador e move-se em termos de um sentido comum direitista. Tão pouco aponta para uma visão global estratégica que revele a imagem de uma sociedade diferente da actual. Sua inteligência é mediana (o que já o coloca muito acima de Fox) e possui um manejo da política superior ao de Fox. Mas estes dados, que apontam para a personalidade do dirigente, não são os mais relevantes. A chave, como sempre, devemos buscá-la no provável curso objectivo que poderia seguir o país. Para abreviar, vamos concentrar-nos no curso que poderia seguir a economia.

Para Calderón, o problema crucial radica no emprego. E sustenta que seu governo assumirá como tarefa central a resolução deste problema muito agudo. As orientações seriam as que se seguem.

Primeiro: incentivar o investimento e o crescimento. Trata-se de estimular o investimento privado, nacional e estrangeiro. Mas não o público.

Segundo: o que fazer para incrementar o coeficiente de investimento? A proposta é bastante simples: i) assegurar a estabilidade do ambiente económico e político. Para o que oferece aplicar a lei sem contemplações. Em suma, busca-se a "confiança" dos investidores potenciais; ii) desregular e desburocratizar (suprimir papelório) o caminho que segue o investimento privado; iii) reduzir a taxa impositiva que afecta o capital; iv) controlar salário (evitar aumentos "desmedidos") e assegurar uma taxa de lucro atraente.

Terceiro: ainda que o tema não se discuta, parece evidente que se supõe que o novo e acrescido investimento vai funcionar com uma densidade de capital relativamente baixa e, por isso, terá uma alta capacidade de absorção ocupacional.

Pode esta política ter êxito?

Quanto ao primeiro ponto, surge desde já uma dúvida: a proposta esquece que, pelo menos no país, o investimento público costuma funcionar como força motriz ou "locomotora" do investimento privado na sua componente nacional. Por isso, na ausência deste factor de arrastamento, a resposta do investimento privado poderia não ser tão dinâmica. Em suma: pode-se assegurar que se verá afectada negativamente.

Quanto ao segundo ponto, a chave radica em assegurar uma taxa de lucro atraente para o capital. Para isso, a atenção é posta na dimensão "custos de produção" e no factor de segurança (reduzir a incerteza do investimento). Mas aqui surge um problema maior: supondo que realmente se reduzam os custos, esquece-se que a rentabilidade depende não só da relação preços-custos. Também influi o nível de vendas e seu impacto nas capacidades produtivas ociosas. O ponto é simples e conhecido: o empresário pode manejar uma relação preços-custos extremamente favorável, mas se não encontrar mercados de vendas adequados e crescentes enfrentará problemas de realização. O que acabará por limitar suas decisões de investimento. Na postura de Calderón evidencia-se a filiação neoclássica dos seus assessores: crêem na Lei de Say e esquecem totalmente o papel da procura na determinação dos níveis do investimento e do rendimento nacional. E quanto à "segurança" ou criação de um "clima favorável", já nos vêem demonstrando o que implica: perante qualquer protesto, aplica-se a coacção directa.

Quanto ao terceiro ponto, trata-se de um bom desejo e nada mais. O grosso do investimento, se se verificar, provem das grandes empresas, e estas não vão incorporar tecnologias atrasadas e sim as mais adiantas que possam conseguir. E estas, diríamos que por definição, utilizam pouca mão-de-obra. Se assim não fizessem, seus níveis de produtividade seriam afectados negativamente e, por isso, seu poder para competir nos mercados externos experimentaria uma forte deterioração. Algo que, naturalmente, em nada condiz com os proclamados desejos de desenvolver uma forte capacidade para penetrar nos mercados externos. O que, por sua vez, significa que o possível poder de penetração deverá, de modo quase fatal, apoiar-se na redução dos custos salariais.

Em geral, o que podemos esperar neste campo é: i) níveis de investimento mais ou menos medíocres. Ou seja, semelhantes ao das últimas duas décadas nas quais imperou o padrão neoliberal; ii) que o investimento provenha do capital estrangeiro e das grandes corporações nacionais que possuem capacidade exportadora; iii) que tal investimento aplique tecnologias intensivas em capital e muito pouco empregadoras de mão-de-obra. Em consequência, o que podemos esperar, muito ao contrário do que se proclama, é um agravamento do problema ocupacional.

Juntamente com a agudização do problema ocupacional pode-se prognosticar um aumento no grau já forte de heterogeneidade estrutural que afecta a economia nacional. Junto a um sector moderno que funciona com altos níveis de produtividade, baixa ocupação e boa capacidade exportadora encontraremos um sector atrasado em que pululam pequenas empresas com baixos níveis de produtividade e muito baixos salários. Além disso, podemos esperar um ulterior crescimento do sector informal e da migração para os EUA. Por outras palavras, a grande maioria da população ver-se-á ainda mais marginalizada, mover-se-á entre trabalhos temporários muito instáveis e a desocupação aberta, operando com níveis de rendimento muito baixos.

A situação poderia ser explosiva. Não só pelas tentativas de rebeldia que se pode esperar surgirem nos sectores mais marginalizados. Também é provável que nos grandes núcleos industriais os trabalhadores que ainda possuem uma organização sindical forte recusem a sofreguidão por congelar salários e por incorporar as normas do trabalho precário. Frente a isto, os apelos de Calderón a gerar um clima de "segurança e respeito à lei" serão traduzidos em repressão aberta. O ataque aos operários da Sicartsa já foi um primeiro anúncio do que pode vir aí. O que acaba de suceder em Texcoco também. E qualquer análise cuidadosa das colocações do candidato conservador poderá verificar que existe uma clara sofreguidão em aplicar uma mão dura irrestrita. Por outras palavras, podemos esperar que o país "avance" para um regime autoritário e repressivo. Na realidade, o afã de preservar um padrão de acumulação que não gera crescimento nem melhores níveis de vida tem de ser associado, necessariamente, a um regime de repressão aos trabalhadores. Mas, será tão iniludível o nexo com a repressão? Se o modelo for preservado, a repressão seria desnecessária só se não houvesse reclamações por parte dos afectados, que são a grande maioria da população. Que estes assumam uma atitude passiva parece difícil, mas não é impossível. A favor da passividade actuam a mesma decomposição que o modelo provoca na classe operária, a falta de organização que permeia os sectores populares, o baixo nível de consciência classista e, por isso mesmo, o impacto da ideologia dominante que penetra na cabeça dos "de baixo" pela via dos meios de comunicação. Estes factores puxam o protesto para baixo. Mas frente a eles está a situação económica objectiva, que pressiona pela reclamação. Neste contexto, é provável que não surja um movimento popular sólido e radical (ainda que embriões sim). Mas também é muito improvável que não emerjam protestos, inclusive fortes. Podemos, então, descartar tanto uma alternativa radical (de corte socialista ou do tipo de Evo Morales), como uma passividade completa. Portanto, podem-se esperar movimentos parciais (que não cheguem a ter uma expressão plenamente nacional) e semi-conjunturais (i.e, reivindicações e levantamentos que não se inserem numa estratégia a longo prazo) que, apesar das suas carências, afectem seriamente a legitimidade do regime. E frente aos quais teremos a resposta já anunciada: a repressão sem misericórdia e sangrenta. Neste contexto, talvez os que alguma vez foram de esquerda percebam novamente que o conflito e a luta de classes continua a existir. Mas será preciso ver de que lado se posicionam.

VI

O processo mexicano transcorre num quadro internacional que não se pode esquecer. Na América Latina vêm surgindo governos democráticos que em maior ou menor grau tratam de superar o padrão neoliberal e que ensaiam romper com a brutal subordinação que este modelo geral em relação ao poder dos Estados Unidos. Para estes interesses imperiais, manter o México na órbita própria e afastado dos Kirchner, Evo Morales, Lula, Chávez e companhia torna-se vital. Se AMLO subir ao governo, o bloco sulista progressista seria enormemente fortalecido com consequente debilitamento relativo dos EUA. Em suma: é muito aquilo que se joga – no âmbito da correlação de poderes mundiais – na eleição mexicana. Se aqui ganhar o povo também serão fortalecidos os povos de outras regiões e países. E vice-versa. Muito se deveria discutir quanto a estes aspectos, mas para não alongar mais estas notas limitamo-nos a assinalar o ponto.

Concluamos.

É do interesse objectivo do povo mexicano (e de outros, especialmente na América Latina) o triunfo de López Obrador. Mas para consegui-lo o povo deve organizar-se e mobilizar-se activamente. Tanto para ganhar as eleições como assegurar que, já no governo, mantenham-se a aprofundem-se os conteúdos democráticos e nacionalistas do programa.

E se chegasse a ocorrer o triunfo eleitoral de Calderón, as exigências de organização e mobilização seriam talvez maiores. Tratar-se-ia, neste caso, de evitar e/ou combater um regime autoritário e repressivo. Ou seja, de lutar contra a ditadura, já aberta, do grande capital transnacional e dos seus satélites internos.

Notas
1- Por vezes se diz que o susto pode provocar uma reacção violenta e ditatorial. E que, para evitá-la, há que limitar as exigências. Em suma, "não assustar". O que equivale a auto-anular-se como sujeito político. A reacção adequada é muito outra: se surgir a ameaça golpista o povo deve organizar seu poder armado para vencer também neste terreno.
2- "Pensei que me amariam, / mas não fui amado. / Não fui amado por uma única grande razão; / porque não podia ser". Fernando Pessoa.
3- Recordemos Brecht a descrever os cartazes de um desfile da direita: "Pela liberdade dos ricos / pela valentia contra os indefesos / pela honra dos assassinos / pela grandeza da imundície / pela imortalidade da infâmia / pela continuação da era dourada". Cf. B. Brecht, "Apogeu e queda da cidade de Mahagonny", Nueva Visión, B. Aires, 1981.
4- Acontecem até coisas divertidas. Exemplo: AMLO qualifica Fox de "chachalaca" (papagaio), algo que provoca risos e brincadeiras espontâneas nos de baixo. Mas de imediato surgem os jornalistas "liberais" e "progressistas" que se sentem violados no devido respeito para com a "institucionalidade" o Senhor Presidente. Dizem que isso não vale e começa de imediato uma feroz campanha contra o terrível perigo que implica o vocábulo "chachalaca". Quase de imediato surgem "inquéritos" que mostram uma queda no "rating" de AMLO. Por que? As resposta desses media é imediata e "sisuda": "por haver transgredido as regras do bom comportamento". É a técnica do "recolhimento" por meio da qual o teu inimigo acaba por fazer campanha em favor das tuas ideias e interesses.
5- Advirta-se também: se na percepção pública o resultado fosse ajustado, a execução de uma fraude eleitoral (algo não descartável) resultaria menos visível.
6- No dizer de Chomsky, "a propaganda é para a democracia o que o cacete é para o estado totalitário". Ver seu “Media Control: The Spectacular Achievements of Propaganda”. Seven Stories Press, 2004.
7- V. I. Lenin, “Dos tácticas de la socialdemocracia en la revolución democrática”, en O.E., Tomo I, pág. 508. Edit. Progreso, Moscú, 1976.
8- C. Marx, “El dieciocho de Brumario de Luis Bonaparte”, en Marx-Engels, Ob. Esc., Tomo I, pág. 434. Progreso, Moscú, 1973.

Notas do tradutor
1- "Cristeros" foram terroristas da extrema-direita que na década de 1920 assolaram zonas rurais do México. Assassinavam personalidades progressistas acusadas de ateísmo e cortavam orelhas de professores que alfabetizavam filhos de camponeses.
2- "Narcomenudeo:" posse, comércio ou fornecimento de estupefacientes ou psicotrópicos, quando pela quantidade e apresentação ou forma de embalagem for determinado que é para distribuição em doses individuais.


[*] Economista, professor da Universidad Autónoma Metropolitana (UAM-I, México), autor de Dos crisis: Japón y Estados Unidos (UAM, 2003, 247p., ISBN 970-701-401-6), Las ciencias sociales: Sinrazón y filosofía romántica (UAZ, 2004, 144 p, ISBN 970-722-293-X), Explotación y despilfarro (PyV, 1999, 263 pgs., ISBN 968-856-766-3).

Este ensaio encontra-se em http://resistir.info/ .
24/Mai/06