Aspectos de classe nos Estados Unidos

por John Bellamy Foster [*]

Clique a imagem para assinar a 'Monthly Review'. Se bem que a guerra de classe seja contínua na sociedade capitalista, não há dúvida de que nas últimas décadas ela assumiu nos Estados Unidos uma forma muito mais virulenta. Num discurso apresentado em 2004 na New York University, Bill Moyers destacou que

A guerra de classe foi declarada uma geração atrás numa forte brochura polémica de William Simon, que logo se tornou secretário do Tesouro. Ele apelava à classe financeira e dos negócios, com efeito, a que recuperasse o poder e os privilégios que haviam perdido na depressão e no New Deal. Eles ouviram a mensagem, e começaram a seguir uma guerra de classe subreptícia contra o resto da sociedade e contra os princípios da nossa democracia. Eles começaram a sucatear o contrato social, a cortar suas forças de trabalho e salários, a esquadrinhar o globo à procura de trabalho barato, e a retalhar a rede de segurança social que era suposta proteger o povo de dificuldades para além do seu controle. A Business Week colocou isto directamente naquele tempo [no número de 12 de Outubro de 1974]: "Algumas pessoas obviamente terão de viver com menos ... será uma pílula amarga para muitos americanos engolir a ideia de ficar com menos de modo a que o big business possa ter mais". [1]

Os efeitos desta ofensiva implacável da parte dos interesses estabelecidos contra o resto da sociedade são cada vez mais evidentes. Em 2005 o New York Times e o Wall Street Journal publicaram uma série de artigos focando as classes nos Estados Unidos. Este raro reconhecimento aberto da importância da classe pela elite dos media pode ser atribuído em parte a rápidos aumentos na desigualdade do rendimento e da riqueza na sociedade americana ao longo do último par de décadas — associado aos efeitos dramáticos dos cortes fiscais de Bush, que beneficiaram primariamente a riqueza. Mas ele também tem origem num conjunto de novos estudos estatísticos que demonstraram que a mobilidade de classe intergeracional nos Estados Unidos está muito abaixo daquela que era suposta anteriormente, e que os Estados Unidos é uma sociedade mais determinada pela classe (class-bound) do que as suas congéneres da Europa Ocidental, com excepção da Grã-Bretanha. Nas palavras de The Wall Street Journal (13/Maio/2005):

Embora os americanos ainda pensem da sua terra como um lugar de oportunidades excepcionais — em contraste com a Europa determinada pela classe — a evidência sugere outra coisa. E académicos têm, ao longo da última década, vindo a ver a América como uma sociedade menos móvel do que outrora haviam acreditado. Ainda no fim da década de 1980 economistas argumentavam que não passava muito privilégio de pai para filho, talvez tão pouco como 20 por cento. Por aquela medida, um neto de um homem rico teria muito pouca vantagem sobre um neto de um homem pobre ... Mas ao longo dos últimos 10 anos, melhores dados e mais processamento de números levaram economistas e sociólogos a um novo consenso: As escadas rolantes da mobilidade movem-se muito mais vagarosamente. Um corpo substancial de investigação revela que pelo menos 45 por cento das vantagens dos pais em rendimentos é passada para os seus filhos, e talvez até mesmo 60 por cento. Com a estimativa mais elevada, não é apenas quanto dinheiro os seus pais têm que importa — mesmo a riqueza do seu tataravô pode dar-lhe uma vantagem apreciável hoje.

Como observou outrora Paul Sweezy, "a auto-reprodução é uma característica essencial de uma classe, distinguindo-a de um mero estrato". [2] O que é claro a partir dos dados recentes é que as classes superiores nos Estados Unidos são extremamente eficazes em reproduzirem-se a si próprias — num grau que não lembra qualquer comparação histórica óbvia na história do capitalismo moderno. Segundo o New York Times (14/Novembro/2002), "Bhashkar Mazumber do Federal Reserve Bank of Chicago ... descobriu que cerca de 65 por cento das vantagens em rendimentos dos pais era transmitida para os filhos". Tom Hertz, um economista da American University, declara que "enquanto poucos negariam que é possível começar pobre e acabar rico, a evidência sugere que este feito é mais difícil de cumprir nos Estados Unidos do que em outros países de alto rendimento". [3] O facto de que os ricos estão a ficar tanto relativamente como absolutamente mais ricos, e de que os pobres estão a ficar relativamente (se não absolutamente) mais pobres, nos Estados Unidos de hoje, está abundantemente claro para todos — embora a verdadeira extensão desta tendência desafie a imaginação. Ao longo dos anos 1950 a 1970, por cada dólar adicional ganho por aqueles nos 90 por cento da base dos receptores de rendimentos, aqueles nos 0,01 por cento do topo recebiam um adicional de US$ 162. Em contraste, de 1990 a 2002, para cada dólar obtido por aqueles nos 90 por cento da base, aqueles nos 0,01 por cento da cúspide (hoje cerca de 14 mil famílias) ganhavam US$ 18.400 adicionais. [4]

A riqueza é sempre muito mais desigualmente dividida do que o rendimento. Em 2001 os 1 por cento do topo dos possuidores de riqueza representavam 33 por cento de toda a riqueza líquida nos Estados Unidos, duas vezes a riqueza líquida total dos 80 por cento da base da população. Medida em termos de riqueza financeira (o que exclui o património líquido das casas ocupadas pelos proprietários), em 2001 os 1 por cento do topo possuíam mais de quatro vezes tanto quanto os 80 por cento da base da população. Entre 1983 e 2001, estes mesmos 1 por cento do topo retinham 28 por cento do ascenso no rendimento nacional, 33 por cento do ganho total em valor líquido, e 52 por cento do crescimento global em valor financeiro. [5]

No entanto, uma considerável porção da população ainda parece concordar com a aceitação de diferenciais substanciais em recompensas económicas com base na concepção de que isto representa retorno pelo mérito e de que todas as crianças têm uma oportunidade de competir para ascender ao topo. Os Estados Unidos, conta-nos a visão convencional recebida, ainda são a "terra da oportunidade". Os novos dados sobre a mobilidade de classe, contudo, indicam que isto está longe de ser o caso e que as barreiras a separarem classes estão a endurecer.

Como as vantagens de classe são passada de uma geração para a outra é naturalmente muito difícil de determinar — mesmo porque os privilégios de classe são demasiados numerosos. A desigualdade de classe manifesta-se em riqueza, rendimento e ocupação, mas também em educação, consumo e saúde — e cada um destes elementos estão entre os meios através dos quais são transmitidas as vantagens/desvantagens de classe. As desigualdades de classe, explicou Sweezy,

não são apenas, ou talvez nem mesmo primariamente, uma questão de rendimento: [em certos ambientes sociais] um considerável conjunto de rendimentos diferenciais seria compatível com todas as crianças terem na vida oportunidades substancialmente iguais. Mais importante é um certo número de outros factores, os quais são menos bem definidos, menos visíveis, e impossíveis de quantificar: as vantagens de vir de um ambiente familiar mais "cultivado", acesso diferencial a oportunidades educacionais, a posse de "ligações" nos círculos daqueles que possuem posições de poder e prestígio, a auto-confiança que os filhos absorvem dos seus pais — a lista poderia ser expandida e elaborada. [6]

Estes bens intangíveis são difíceis de medir, mas numa sociedade capitalista tendem a interagir com grandes diferenciais em rendimento e propriedade e portanto deixam aqui seus traços quantitativos. É toda esta constelação de vantagens de classe correlacionada em linhas gerais com rendimento e riqueza, mas não simplesmente redutível a estes elementos, que permite aos privilegiados manterem suas posições de status económico e poder intergeracionalmente mesmo no contexto de uma sociedade que à superfície parece ter muitas das características de uma meritocracia. O próspero obtem melhor educação, desfruta melhor saúde, tem mais oportunidades para viajar, beneficia de um conjunto mais vasto de serviços pessoais (derivado da compra dos serviços laborais de outros), etc — tudo isto traduz-se em vantagens de classe passadas aos seus filhos.

O facto de existirem fortes barreiras a restringir a mobilidade de classe para cima é naturalmente o primeiro ponto a ser considerado em análise de classe — uma vez que sem isto as classes seriam inexistentes. Contudo, o significado histórico real de classe vai muito além disto. Classe não é simplesmente acerca das oportunidades de vida de um dado indivíduo ou de uma família; é o motivo principal na constituição da sociedade moderna, governando tanto a distribuição de poder como o potencial para a mudança social. Ela permeia, portanto, todos os aspectos da existência social.

Actualmente não há uma teoria de classe bem desenvolvida em todos os seus aspectos, o que permanece talvez como o maior desafio único enfrentado pelas ciências sociais. Na verdade, o fracasso em avançar nesta área pode ser visto como um sintoma da estagnação geral das ciências sociais ao longo de grande parte do século XX. No entanto, a maior parte das análises marxistas de classe tomam como ponto de partida a famosa definição de classe de Lenin:

Classes são grandes grupos de pessoas que diferem uns dos outros pelo lugar que ocupam num sistema historicamente determinado de produção social, pela sua relação (na maior parte dos casos fixada e formulada na lei) para com os meios de produção, pelo seu papel na organização social do trabalho e, consequentemente, pelas dimensões da fatia de riqueza social de que dispõem e pelo modo de aquiri-la. [7]

Tal como todas as definições breves de classe, esta tem as suas fraquezas, uma vez que não é capaz de levar em conta a natureza dinâmica das relações de classe. Como argumentou Sweezy, um tratamento sistemático da classe e da luta de classe "precisa também abranger pelos menos o seguinte: a formação de classes em conflito com outras classes, o carácter e o grau da sua auto-consciência, suas estruturas organizacionais internas, os modos como elas geram e utilizam ideologias para fomentar seus interesses, e os seus modos de reprodução e auto-perpetuação". [8] Se estamos a falar de uma "classe dominante", então os modos pelos quais esta classe domina a economia e o estado precisam ser entendidos. Além disso, é crucial verificar como a classe articula-se em relação a outras relações sociais e formas de opressão, tais como raça e género.

Uma investigação de classe conduz-nos então à análise da sociedade como um todo, suas relações de poder, conflito e mudança. Este número especial da Monthly Review pretende descobrir muitos dos aspectos de classe nos Estados Unidos de hoje como meio de explorar as lutas essenciais do nosso tempo. Os artigos aqui incluídos são todos escritos da perspectiva da classe trabalhadora (e da classe média mais baixa) e estão portanto orientados primariamente para o entendimento das condições cambiantes de exploração experimentadas pelo povo na base da sociedade. Mas eles são escritos também do ponto de vista da luta de classe. Ao focar classe e luta de classe nosso propósito subjacente é claro: não simplesmente interpretar o mundo, mas mudá-lo.

Notas
1- Bill Moyers, “This is the Fight of Our Lives,” keynote speech, Inequality Matters Forum, New York University, June 3, 2004, http://www.commondreams.org/views04/0616-09.htm/ .
2- Paul M. Sweezy, “Paul Sweezy Replies to Ernest Mandel,” Monthly Review 31, no. 3 (July–August 1979), 82.
3- Tom Hertz, Understanding Mobility in America, Center for American Progress (April 26, 2006), i, 8, http://www.americanprogress.org/ .
4- Correspondents of The New York Times, Class Matters (New York: Times Books, 2005), 186.
5- Edward N. Wolff, “Changes in Household Wealth in the 1980s and 1990s in the U.S.,” (April 27, 2004, draft), forthcoming in Wolff, International Perspectives on Household Wealth (Brookfield, Vermont: Edward Elgar), http://www.econ.nyu.edu/user/wolffe/ .
6- Aqui os comentários de Sweezy eram destinados principalmente a sociedades pós-revolucionárias mas ele deixou claro que as mesmas questões relacionadas com a reprodução de classe aplicavam-se a sociedades capitalistas. Inseri uma breve qualificação em parênteses rectos para evitar qualquer má interpretação relativa ao contexto específico no qual foi escrito. Ver Paul M. Sweezy, Post-Revolutionary Society (New York: Monthly Review Press, 1980), 79–80.
7- V. I. Lenin, Selected Works (Moscow: Progress Publishers, 1971), 486.
8- Sweezy, “Paul Sweezy Replies to Ernest Mandel,” 79.


[*] Editor da Monthly Review, autor de Naked Imperialism: The U.S. Pursuit of Global Dominance .

O original encontra-se em http://www.monthlyreview.org/0706jbf.htm

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
07/Jul/06